segunda-feira, 25 de junho de 2012

Poemas do Viandante (280)

João Queiroz - Sem título (2000)

280. FENDIDAS AS MURALHAS ABRE-SE UM CAMINHO DE LODO

fendidas as muralhas abre-se um caminho de lodo
e caminhantes mais afoitos julgam antever o peloponeso
confiantes no azul oceânico que se desdobra ao olhar
não sabem que perigo a vista encerra
nem da avidez da terra trazem ideia fundada
julgam apenas ouvir o canto de alguma sereia
e sonham os braços quentes molhados de água fria

o mar cansou-se de marinheiros
deixou os barcos vazios a vogar sem destino
as velas quebradas e os porões sem préstimo
bandos de gaivotas recordam-me a infância
trazem-me um grito soterrado no peito
o prenúncio dos grandes incêndios se o verão aquece

sento-me e digo isto é a porta da enseada e espero
espero a tua vinda ao cair da tarde
espero na esperança de entardecer ao teu lado
e enumero as bem-aventuranças prometidas

a morte não tem regra no seu operar
e se alguma contabilidade a rege não a conheço
ela vem e cobre com o seu véu o solitário perdido
dá-lhe por companhia o mais jovial dos transeuntes
estabelece aliança entre famílias inimigas
e rapta subitamente o herdeiro de uma longa estirpe

por isso todos a veneramos no segredo do coração
a ela erguemos altares de pedra e aço
e cobrimos o mar de náufragos exaustos
ou suspendemos a mecânica solar para que ela chegue
quando tarde a tarde anoitecer

tudo em mim freme nesta noite de azeviche
e o meu sexo duro entra no teu corpo
na infalível certeza da tua compaixão
empunho a lira e dedilho-te pobre eurídice
quero-te sob o vento marítimo ou nas areias azuis 
conto-te os dedos como se fossem estrelas
e construo constelações na incerteza dessas mãos

ofereces-me o lodo do caminho para a paisagem oceânica
para depois me dizeres eu sou a tua morte
e vivo no teu coração desde que foste concebido
guio cada um dos teus desejos sob a tempestade da vida
e faço-te cantar os passos que dás no segredo do mundo
sou a tua vida e o teu mundo sou a luz que te alumia a noite
e as trevas que te fazem suportar o meio-dia
eu sou a que te espera quando te deitas com outra
e a outra com que te deitas ainda sou eu
pois além de mim nada há no mundo
apenas um véu de ilusão criado pela minha arte
uma armadilha disfarçada de labareda
a canção de amor que nenhum outono suportará

esquece a muralha aberta sobre o oceano
são doces as pradarias onde apascento o meu rebanho
sou a mais suave das pastoras
ofereço-te o seio e o sexo e o sangue
dou-te a beber o mênstruo
e os meus lábios embalar-te-ão 
para que sonâmbulo me digas meu amor
enquanto se ouve o suave balir das ovelhas
e em mim encontres o aprisco onde a eternidade te recolhe

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