domingo, 29 de julho de 2012

Poemas do Viandante (313)

313. DE QUE ME VALEM OS SENTIDOS

de que me valem os sentidos
se o que por eles vem está tocado de sombra
e deixa na boca um rasto amargo
como se tudo estivesse para acabar
e apenas restasse um sopro de escuridão
vindo pela fresta rasgada na parede
promessa adiada ou um sonho transfigurado

recolho-me no pensamento que me toca
e oiço o ribombar das águas no paredão
o mar vem solto fustigar o silêncio
e o mundo é uma luz dentro de mim
o seu brilho dói-me nas mãos
e se pergunto pelas horas
não há quem me dirija a palavra

há dias em que construo uma botânica
pequenas colecções de folhas
o irreprimível vício das taxionomias
se chegas ao abrigo de uma sentença
o meu coração debruça-se sobre a mentira
e conta uma a uma as pétalas de luz
que fulgem no incêndio desse olhar

retomo as informações que pelos sentidos
do mundo sob a máscara da verdade coligi
construo uma física precária
e com ela vou terra fora
sem bússola ou mapa que me guie
o sol ao pôr-se diz-me as trevas
e o coração anoitece dentro de mim

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Poemas do Viandante (312)

312. DEIXO A LUCIDEZ NA TERRA SECA

deixo a lucidez na terra seca
e colho flores silvestres
breves intimações de luz
num universo longínquo
feito de profecias sagazes
e de memórias dolorosas

um velho retrato de família
o livro aberto sobre a mesa
as primeiras canções iluminadas
pela voracidade da infância

construí um mundo rudimentar
tracei caminhos e fronteiras
e em lado algum vi o nome
que um dia descobri ser o teu

resta-me desfazer a geografia
e entregar cada imperativo
à necessidade que o criou
amadureço na luz de setembro
e se as vestes se rasgam
entro despido na água do mar

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Poemas do Viandante (311)

311. TODAS AS PEQUENAS CIDADES QUE VISITÁMOS

todas as pequenas cidades que visitámos
são portos de abrigo ou enseadas amenas
aí esquecemos o tumulto dos dias
as pragas vindas do deserto
o meu coração exíguo e sem dono ou destino

fórmulas para ser feliz não existem
disseste enquanto passavas a mão pelos cabelos
e a tarde trazia um sol irrevogável
sentença decisiva no curso dos astros
dor a invadir-me a pele e a explodir no ventre

caminho a teu lado preso na sombra
sou um caminhante secreto
e tudo o que me diz respeito é obscuro
e se procuras um sentido para as minhas palavras
encontras a luz vazia da contradição

cidades e campos ou a pura montanha
tudo se tornou indiferente
respiro o ar e não sei se é o mar que oiço
ou o vento esquivo da floresta
que me ateia a imaginação e deflagra a palavra

crianças gritam na paisagem
trazem nelas a dor da vida e não o sabem
e tu continuas na expectativa da minha existência
de o meu corpo ser um corpo
e que te ame segundo a norma que o hábito deu

sou apenas as palavras que escrevo
desisti da minha carne e dos meus ossos
abandonei os sentidos e a paixão da razão
tudo se resume a um léxico pobre
e a uma frágil gramática de sintaxe suspensa

quando cantam os pássaros nas árvores do jardim
cerro os olhos e sonho com o dicionário
palavras a seguir a palavras
o sentido inquieto e mutável
o desejo do teu sexo a abrir-se para mim

uso uma adversativa se anoitece
e trazes nas mãos uma taça de amoras silvestres
mas tudo em ti se estende para o meu abraço
e eu olho-te na incerteza de quem sou
e encontro no fundo de ti a solícita âncora

naqueles momentos em que tudo se suspende
quase oiço a voz de deus
leve e delida traça uma senda de palavras
e eu escrevo pois o altíssimo fala no deserto
e não oiço o que ele exausto me diz

toda a vida amei a deus sobre todas as coisas
mas era em cada coisa que o sentimento se fixava
nos olhos fugidios que assaltavam os meus
ou naquela face que se abria no seu mistério
e fascinado me fazia sonhar com o jardim do éden

o rio da minha vida nunca teve rumo
a jusante ou a montante apenas a floresta
o barco que me leva perdeu o barqueiro
deixou-me só e sem remos
anjo solitário e sem espada à porta do paraíso

poiso a minha mão na delicadeza da tua
e sei que o dia já foi mais claro
sorrio para à luz dos teus olhos
e oiço o crepúsculo a crepitar na vida
fogaréu na fresta inútil que ilumina a clareira

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Poemas do Viandante (310)

310. A NÉVOA MATINAL RETIRA-SE TARDIAMENTE

a névoa matinal retira-se tardiamente
após luta tormentosa o sol venceu a noite
e veio mostrar o fulgor do dia
os imperativos cintilantes do ofício da vida
aquilo que do subterrâneo chama os homens
os cativa e lhes rouba suor e sangue
a pequena porção de lágrimas a chorar

a tristeza com que velas a face
e todas as coisas que fogem ao teu desejo
são pequenos animais bravios na cidade
páginas em branco onde recusas ver a escrita
pequenas mensagens que a vida deixa
na pegada de uma história por acontecer
se são dias em que o sol tarde se levanta

alguém pega no telemóvel e fala e fala
um rumor de palavras numa corrente ébria
a pressa de dominar o dia e a semana
pequenos projectos em luta conta o destino
o terrível encontro em samarcanda
pois seja dia ou noite o obstinado anjo
veste-se de negro e sai para ganhar o pão

sobre mim vêm moscas e melgas
insectos fugidos da demência do inferno
abrem uma fissura na grande muralha
e entram silenciosos casa adentro
destroem sonhos e férteis desejos
agora grandes naufrágios no mar da vida
pobre metáfora sem dor ou consequência

encerro-me na solidão que me habita
e vejo o mundo fora do mundo
e tudo o que eu amo chega até mim
em fragmentos e pequenas imagens
são avisos e injunções ou pequenas ordens
que me dobram à exígua realidade
o exercício contumaz de uma cobardia

se pudesse ofereceria cursos de silêncio
o modo como os lábios se devem cerrar
e manter a língua presa na caverna da boca
ensinaria a constância de cismar calado
ser gato ou velho à espera da morte
naqueles jardins vazios e sem flores
bancos de madeira onde me sento e te espero

terça-feira, 24 de julho de 2012

Poemas do Viandante (309)

309. AINDA PODEMOS SONHAR REGATOS DE ÁGUA LÍMPIDA

ainda podemos sonhar regatos de água límpida
e caminhos de terra batida no segredo da floresta
mas são sonhos de citadinos exaustos
marcas ligeiras na palidez da face
a nostalgia de quem há muito perdeu o lugar
e do mundo apenas conhece o fluir do trânsito
a angústia das horas-de-ponta na vida assim desvivida

sonhos são exercícios de culpa trazidos pela noite
máscaras de veludo para amortecer a dor
um pequeno manual para actos de contrição
aprendemo-los na longínqua infância
como uma garantia contra o desvario
os espinhos que a vida traz
amuletos para a má-fortuna ou amor ardente

pego no sonho que me trouxeste
e abro-o para descobrir a sua verdade
a ferocidade da roseira coberta de espinhos
o sangue a golfar na raiz da vida
e todas as noite que terei para dormir
esquecido da cidade e dos que nela morrem
perdido na água pura da floresta que me espera

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Poemas do Viandante (308)

308. O PUDOR VINDO DO FIM DOS TEMPOS

o pudor vindo do fim dos tempos
tomava-te conta das faces
ardia suavemente se anoitecia
bago de romã e espiga de milho
murmúrio interior do sangue
no subterrâneo da vida

recapitulemos os dias de amor
a devassa do olhar
a esperança de uma promessa
longos passeios de mãos dadas
num mundo subitamente vazio
aberto aos desígnios do sentimento

se chovia na inclemência do inverno
a casa era um abrigo de seda
ali ouvia-te cantar
um hino em acção de graças
e uma oração nascia-te nos lábios
um relâmpago que me iluminasse o coração

domingo, 22 de julho de 2012

Poemas do Viandante (307)

307. NESTE VAZIO SEM NOME NASCE UMA LUZ

neste vazio sem nome nasce uma luz
entre um renque de árvores outonais
ilumina-te os passos se entardece
incendeia o coração de quem passa
e quer pôr os pés na areia limpa
para escutar a rebentação

colecciono sombras a arder nos teus dedos
guardo-as numa caixa trazida de longe
de uma terra sem noite e sem sol
de uma terra de arquitectura branca
e madeiras perfumadas
pelo odor bravio de uma selva azul

por vezes julgamos ser um limite
mas a estrada abre-se e rasga o horizonte
é sempre assim que acontece
se a matéria do teu trabalho é luz ou sombra
o fim nunca é o fim
e mal termina o canto outro recomeça

sábado, 21 de julho de 2012

Poemas do Viandante (306)

João Queiroz - Desenhos a carvão

306. NO SÍTIO ONDE O PERIGO SE ESCONDE

no sítio onde o perigo se esconde
há também o rumor de um anjo
e se caminhas febril na noite
um deus traz-te um sonho
água fria na concha da mão
ou o vento do espírito
para o corpo assim viajar

quando findo o calor vem o outono
um ar frio ecoa pelo bosque
não vale a pena desfolhar palavras
nem erguer uma vã teologia
bastam as ervas secas
e algumas pedras maduras
para o milagre continuar

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Poemas do Viandante (305)

João Queiroz - Desenhos a carvão

305. NÃO TENHO NESTE MUNDO

Para os meus filhos

não tenho neste mundo
outro melhor para vos dar
apenas o caminho vazio
na crosta da terra
sem marca de início
nem meta por destino
apenas flores no paul
e o vento frio do norte
não tenho neste mundo
uma aurora de rosas
ou um eterno recomeço
resta-vos pôr os pés na terra
e continuar a andar

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Poemas do Viandante (304)

João Queiroz - Desenhos a carvão

304. QUE FAÇO DESTE RISCO NO PAPEL

que faço deste risco no papel
ardil de um bosque
uma sombra ensanguentada na manhã
a tua pulsação na ânsia
do amor

deixo que chegues no traço enovelado
penso-te e és nuvem
sobre montanha alcantilada
céu denso e negro
água pura a chover sobre mim

uma luz indecisa ruboresce no oriente
e uma saraivada de pássaros acorda
as folhas na madrugada
as estrelas debandam
na estranha paisagem dos teus olhos

se me sento no chão ao teu lado
vejo de perfil a angústia
santuário inexplicável
noite tempestuosa
na serena mágoa do acontecer

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Poemas do Viandante (303)

João Queiroz - Desenhos a carvão

303. ERA UM TEMPO DE DESAMPARO

era um tempo de desamparo
estrada fora
ia preso à sujidade das  mãos
aos dedos grossos
levedados nos campos
as calças rotas sapatos cambados
um cordel por cinto

chegava à aldeia nos dias nublados
sem calor nem chuva
e batia à porta dos pobres
menos pobres
à espera de pão
uma moeda
a sopa fria vinho azedo

esquecera as violetas
e na face não havia sorriso
dor acusação
vinha no orgulho da pobreza
na liberdade da sombra
o chegar e partir
sem declinar nome ou ofício

voltava na privação e olhava-me
de olhos apagados
e eu quieto e hirto tremia
no silêncio da infância
na meia-luz da pérgula

toda a culpa
e toda a penúria ardiam em mim

terça-feira, 17 de julho de 2012

Poemas do Viandante (302)

João Queiroz - Desenhos a carvão

302. DESENHAVA CLAREIRAS NA FLORESTA

desenhava clareiras na floresta
e se o cansaço crescia
deixava-me ali dormir
exposto à luz
cerzido ao chão
esperava o milagre

se chovia
o corpo fundia-se na lama
o vento soprava
e a terra acolhia-me
mísero filho pródigo
ao pó devolve a flor recebida
a promessa de uma aurora
a esperança sôfrega de um amor

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Poemas do Viandante (301)

João Queiroz - Desenhos a carvão

301. DEIXO QUE ME TOQUES A MÃO

deixo que me toques a mão
e o peso da tua sombra
me abra os olhos
para a vastidão do céu
a pura alegria
da luz
no súbito raiar de uma estrela

deixo que cantes na noite
um presságio
as ervas secas no verão
tudo o que o amor tem
para esquecer

deixo que tragas um búzio
para escutarmos o azul do oceano
o rumor incerto das águas
todos os mistérios
que a alma esqueceu
ao inclinar-se
para o murmúrio da vida

domingo, 15 de julho de 2012

Poemas do Viandante (300)

João Queiroz - Desenhos a carvão 

300. ANIMA-ME O ENTARDECER

anima-me o entardecer
o lento movimento das mãos
o sóbrio rascunho de um nome
infeliz promessa rasurada
no verso da página

fecho o jornal
e dobro as notícias
para esconder do olhar
o desmando do mundo

projecto uma clareira
e preencho-a com o teu corpo
dispo-o
e o tempo escorre-te na pele
um regato de luz
uma ânsia de rio
o entardecer na planície do mar