Ramón Pérez Carrió - Descida às entranhas da luz
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1: 4-5)
Somos fascinados pela oposição entre luz e trevas. Um hábito ancestral leva-nos a ordenar o mundo em pares de opostos. Esse hábito é muito anterior ao texto de João. Este vai explorá-lo, estabelecendo duas relações entre luz e trevas. Em primeiro lugar, as trevas são o lugar onde a luz brilha intensamente (resplandece). Quanto maior a escuridão mais intenso é o brilho da luz. As trevas são o lugar da manifestação da luz. Em segundo lugar, as trevas não compreenderam a luz. Esta não compreensão deve ser lida, cumulativamente, como não entendimento (as trevas não entenderam a luz) e como não inclusão ou não abrangência (as trevas não incluíram a luz ou excluíram-na). A luz manifesta-se não apenas naquilo que não a entende como também no que a exclui, incapaz de a abranger.
Este jogo dialéctico é, em si mesmo, incompreensível. Contudo ele é antecedido por uma frase metafórica: a vida era luz dos homens. O que está em questão é muito mais que a tensão entre dois fenómenos ópticos (luz e trevas), ainda que tomados como metáforas da sabedoria e da insensatez. Se a luz surge como metáfora da vida, o leitor é levado a compreender, por analogia, as trevas como metáfora da morte. É na morte que a vida resplandece, mas é também a morte que não compreende a vida e a exclui. Este parece ser o núcleo central do mistério dos cristianismo, a afirmação de uma vida através da morte, de uma morte que a não compreende, que a exclui. Tudo está assente num paradoxo: a vida que se manifesta naquilo que a nega, que a exclui, mas que é, ao mesmo tempo o outro da vida, como se esta tivesse de descer ao coração da morte para de lá resgatar as entranhas da vida.