quarta-feira, 10 de julho de 2013

Da alma decepcionada

Ferdinand Hodler - Alma decepcionada (1891)

A decepção, qualquer que ela seja, é sempre o sinal e a prova de uma ilusão. Se o mundo, o outro ou mesmo o próprio eu são motivos de decepção, isso significa que uma fantasia se apoderou de nós e perverteu a avaliação. Na base dessa perversão está sempre a maquinação da vontade egoísta que, desejando apoderar-se da realidade e sentindo-se impotente para tal, tece uma ficção que confirme o seu desejo. Quando a realidade fala, a trama rompe-se e o espírito vê-se confrontado com a decepção. Esta impõe, então, uma escolha: fazer-se de vítima, de alma decepcionada, ou aceitar o caminho da pobreza de espírito, que não é outra coisa senão o contínuo exercício da humildade perante a realidade e a verdade.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Libertar-nos da multidão

James Ensor - The Entry of Christ into Brussels (1888)

Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida, como ovelhas sem pastor (36). Disse, então, aos seus discípulos: «A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos (37). Rogai, portanto, ao Senhor da messe para que envie trabalhadores para a sua messe (38).(Mateus 9:36-38)

Este versículos parecem sublinhar a necessidade do pastorado como forma de guiar os homens, dominando-os. Esta leitura, porém, é demasiado apressada e elimina toda a dimensão crítica contida no texto. Onde reside essa dimensão crítica? Está toda na consideração que é feita sobre a multidão, sobre aquilo que foi teorizado no século XX sob a categoria de massa. A multidão ou a massa não é um valor positivo. Pelo contrário, é o que é digno de compaixão. A palavra compaixão tem aqui o seu significado radical de sofrer com. A multidão sofre e gera naquele que não pertence à massa a necessidade de sofrer com ela e por ela. A multidão está cansada e abatida, pois perdeu a direcção e o caminho. Ovelhas sem pastor.

Esta apreciação da massa e da necessidade do pastorado está assente sobre o silêncio de uma outra categoria, a do indivíduo. Para lá do rebanho há o indivíduo. Sobre este nada é dito, mas surge, em contraponto com a multidão, como uma categoria positiva. Surge representado naquele que tem compaixão pela multidão, Cristo. Indivíduo é aquele que encontrou o seu caminho, que se dirige por si mesmo, que é autónomo, pois descobriu em si o seu próprio guia. Isto altera a interpretação que se faz do pastor. O pastor não vem para dominar o rebanho, mas para libertar os indivíduos que há nele, para transformar o rebanho num reino de seres livres e responsáveis, à imagem e semelhança daquele que sofre pela multidão. O pastor veio para retirar cada um do rebanho, para nos libertar da multidão.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Poemas do Viandante (425)

Rockwell Kent - Admiralty Inlet (1922)

425. Coleccionas paisagens aquáticas

Coleccionas paisagens aquáticas,
metáforas enlouquecidas,
memórias presas na imagem,
a servil solidão no peito.

O sono desce nos dias de calor.
Sufocas, abres a janela,
e deixas correr a água inflamada
nas veias brancas da tarde.

Ao crepúsculo, ainda esperas.
O vento vindo do norte,
o eterno derreter das últimas neves,
o coração apaziguado, o esquecimento.

domingo, 7 de julho de 2013

Poemas do Viandante (424)

Urgell Inglada - Jardim abandonado

424. Cenário de terra e ervas

Cenário de terra e ervas,
sementes, folhas mortas,
um traço de poeira,
a cinza rosada do céu.

Se o vento, fortuito, cantava
ou uma ave caía na memória,
o fogo descia na terra
inundada de estios.

Restam algumas árvores,
a estátua abandonada
e uma pergunta esquecida
no bulício do coração.

sábado, 6 de julho de 2013

A viagem e o carrossel.

Arpad Szenes - Carrossel (1937)

A viagem não é uma volta de carrossel. Não é que divertimento daquele que toma o caminho lhe esteja interdito, pelo contrário. O caminho não deixará de ter os seus momento de grande humor, fundamentalmente quando o viandante se confronta com a risibilidade das suas ilusões. A viagem, contudo, não é um passeio em torno de um eixo fixo, mas a descoberta de que não há fixidez nem eixo, apenas um infinito caminho aberto.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

O jockey enquanto figura

Toulouse-Lautrec - The Jockey (1899)

Olhamos o quadro de Toulouse-Lautrec e corremos o risco de nos deixarmos arrastar pelo hábito e pelas ilusões que este introduz no nosso julgamento. A ilusão está em centrarmo-nos no carácter desportivo e competitivo representado, a corrida de cavalos e as apostas. O jockey pode, todavia, ser olhado como uma figura metafísica, como uma metáfora do viandante. Não é a competição que está em jogo, mas a harmonização entre o homem e o cavalo, entre razão e natureza, entre aquele que peregrina e o veículo da peregrinação. Não se trata de dominar o cavalo, de lhe impor um caminho, mas de se fundir com ele, durante a viagem, de serem apenas um. Como se, pela arte de cavalgar, a separação que cinde o homem em dois fosse cerzida e, naqueles instantes, o homem tivesse um vislumbre da sua verdadeira natureza.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

O viajante adormecido

Antoni Guansé Brea - Les voyageurs (1955)

O pior que pode acontecer ao viajante é adormecer na viagem. Não são apenas as paisagens múltiplas que perde, mas as metamorfoses que elas provocam no espírito. Ao deixar escapar a hora de cada metamorfose, é a si mesmo que perde. A viagem vai de si para si mesmo, vai desse si que secretamente , inconscientemente, somos ao si que, de metamorfose em metamorfose, descobrimos no confronto com as várias paisagens por onde o vento nos leva. O que adormece na viagem perde a hora do reconhecimento. Ao acordar, apenas o sono espera por si.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Crer sem ter visto

Pablo Picasso - El viejo guitarrista ciego (1903)

Porque me viste, acreditaste. Felizes os que acreditam sem terem visto. (João 20:29)

Neste texto de João estamos perante dois modos de formação de uma crença. A primeira tem uma dimensão empírica. Crê-se em algo porque se constatou e verificou empiricamente essa coisa, esse  facto ou esse acontecimento. A outra diz respeito à formação da crença sem recurso à constatação empírica. O texto é surpreendente por dois motivos. Em primeiro lugar, há uma clara menorização do conhecimento empírico, uma desvalorização da necessidade de certificação de uma certeza, como se estivesse incoativa, nas palavras de Cristo dirigidas a Tomé, uma censura ao empirismo e à ilusão dos sentidos. 

Em segundo lugar, é introduzida uma transição de um discurso de carácter epistemológico, para utilizar o jargão filosófico, para um discurso onde a ciência (dada num crer) se funde com a ética e o desígnio de uma vida feliz. Felizes são aqueles que, mesmo cegos, chegam à verdade. Esta não depende da acuidade dos sentidos, mas da disponibilidade para ser acolhida. E aqui não há nenhum apelo ao dogmatismo e à imposição da verdade a quem quer que seja. Há apenas a distinção de que uns serão felizes e, provavelmente, os outros não. A felicidade depende do conhecimento, mas do conhecimento que nasce do acolhimento e não da certificação empírica.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Haikai do Viandante (150)

Urgell Inglada - Barcas contraluz

Incêndio no mar.
E se o sol adormece,
chega o luar.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

O caminho do Vento

Felix Vallotton - The Wind (1910)

O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito. (João 3:8)

Uma das metáforas mais conhecidas do Espírito é a do vento, esse vento que sopra onde quer, mas do qual não sabemos origem nem destino. Nascer do Espírito é, assim, integrar-se num não saber, é abandonar a certeza, seja aquela que nos diz de onde viemos, seja a outra que aponta um fim. Este não saber significa tornar-se flexível, aprender a não resistir ao vento, mas curvar-se segundo o sopro que nos atinge. Aquele que resiste ao Espírito acabará despedaçado, mas o que se curva, levado pelo sopro, encontra o caminho que o Vento lhe indica.

domingo, 30 de junho de 2013

O olhar retrospectivo

René Magritte - El maestro de escuela (1954)

Disse-lhe ainda outro: «Eu vou seguir-te, Senhor, mas primeiro permite que me despeça da minha família.» Jesus respondeu-lhe: «Quem olha para trás, depois de deitar a mão ao arado, não está apto para o Reino de Deus.» (Lucas 9:61-62)

Há dias, no contexto do Antigo Testamento e a propósito da mulher de Lot, abordou-se aqui a questão do olhar retrospectivo. Com estes versículos do evangelho de Lucas, mas também com os que os antecedem, retorna-se à punição do olhar para trás. A questão é introduzida pelo desejo de se despedir da família ou, noutras traduções, dos que que estão em sua casa. Esta indicação é preciosa, pois permite alargar o grau de compreensão  da resposta dada. Naquele que quer despedir-se da família ainda permanece um desejo do que é familiar, daquilo que pertence ao reino do habitual, à forma convencional de ser, de estar e de olhar o mundo. Não se trata de uma crítica à família, mas de tornar claro que a via proposta (o Reino de Deus) não está no hábito, não está naquilo que se tornou  familiar para a consciência. Ela não é uma convenção mas uma efectiva aventura.

Olhar para trás é o sinal de pertença a este mundo, que a sua imagem ainda move o desejo e o coração, que ainda não se está perante uma consciência pura e uma vontade liberta das seduções que o familiar traz consigo. O uso da metafórica agrícola - deitar a mão ao arado - é de uma grande precisão. Olhar para trás quando o arado sulca a terra implica o enviesamento, o sulco deixa de ser um recto caminho para passar a ser o fruto da distracção e do acaso. Quem olha para trás não vê aquilo que à frente chama por si. Naquele que diz que quer seguir o Senhor e, ao mesmo tempo, deseja olhar para trás, nesse, o coração ainda está dividido entre a segurança do familiar e a incerteza e a aventura de penetrar no não familiar, no inabitual. Todo o olhar retrospectivo é uma confissão de uma vontade que ainda não abriu mão daquilo que a seduz, que ainda não está pronta para o caminho.

sábado, 29 de junho de 2013

Preconceitos modernos

Albano Vitturi - Gli eremiti di Faida (1934)

O triunfo da modernidade sobre o modo de vida medieval manifestou-se também na substituição dos velhos preconceitos por novos. Assim como os medievais não compreendiam os seus preconceitos como preconceitos, também os modernos são incapazes de reconhecer, enquanto tal, os seus. Dois preconceitos tomaram conta da vida dos homens e quase destruíram a herança espiritual do Ocidente. 

O primeiro preconceito diz respeito ao desprezo que os modernos patenteiam à vida contemplativa. A modernidade é o triunfo do negócio e a imposição a todos os homens de uma vida activa, de onde a contemplação foi pura e simplesmente banida. Mesmo a vida académica, hipoteticamente herdeira da tradição filosófica grega, uma tradição contemplativa, se tornou em dura actividade, em negócio puro e simples. 

O preconceito contra a vida contemplativa acentua-se quando se trata da opção pela solidão. Aquele que se separa dos homens para se confrontar consigo e com o Absoluto tornou-se de tal maneira estranho, que os modernos, presos à acção e ao medo de estar sós, destruíram o desejo e a possibilidade de erguer eremitérios, onde os homens, libertos dos negócios do mundo, possam entregar-se à vida do espírito. Nada mais repelente do que os antigos conventos de contemplativos transformados em edifícios para turistas.

Não se compreende, porém, que o cerne da nossa tradição espiritual reside naquilo que a contemplação permitiu criar, naquilo que, em solidão, homens e mulheres puderam descobrir. A crise do Ocidente não é económica ou política, mas uma crise espiritual, uma crise que nasce do preconceito contra a contemplação e a vida de solidão, que todos os homens deveriam, em certos momentos da sua vida, aceder, confrontando-se consigo, com o seu destino e com aquilo que o Absoluto lhes propõe como caminho.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Poemas do Viandante (423)

Benvenuto Benvenuti - Frate foco (1925)

423. Descrevo a sintaxe do fogo sobre a terra

Descrevo a sintaxe do fogo sobre a terra
e espero a hora em que nasça
uma gramática subtil feita de faúlhas,
os frutos breves da amendoeira,
a velha servidão sob o peso da terra.

Atiro longe o dardo do amor
e ele perde-se enovelado nos ares,
rodopia sob a inclemência solar
e traceja nuvens de cinza no horizonte de água.

A minha casa é feita de pedra e colmo,
e o fogo arde diante da porta.
Sentado, olho as labaredas
e conto os anos inscritos nas velhas árvores,
os troncos fendidos, ramos decepados.

Os fotões iluminam-me a memória
e com as mãos livres desenho o delicado rosto,
soberbo, suave, quase sonoro,
com que um dia te prendeste nos meus dedos.

E tudo em mim canta no prodígio dessa imagem,
a velha maçã que perdeu Adão,
a guerra de Tróia e o cavalo desejado,
e todos aqueles que enlouqueceram junto ao oceano,
presos no fascínio das ondas ao rebentar.

Da pobre janela, oiço o galope do futuro,
chega com as chuvas de Novembro,
coberto de feridas e uma sombra no olhar.
Abre-se numa fortuita constelação de ervas pálidas

e traça um cavalo lívido de fogo
nas paredes exaustas e negras da casa:
relincha, empina-se e parte campo fora,
sem uma morfologia que o classifique
sem um fogo que lhe incendeie de terra o coração.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Da autoridade do autor

Albert Gleizes - Autoridade espiritual e poder temporal (1939-40)

Quando Jesus acabou de falar, a multidão ficou vivamente impressionada com os seus ensinamentos, porque Ele ensinava-os como quem possui autoridade e não como os doutores da Lei. (Mateus, 7:28-29)

Surge muitas vezes, na opinião publicada, o delicado problema da autoridade dos professores. Por norma, as respostas dadas são insípidas e falham o alvo. De onde provém a autoridade daquele que ensina, seja ou não professor? Os  versículos citados de Mateus são uma porta por onde podemos penetrar no mistério da autoridade daquele que ensina. O que impressiona a multidão no ensino de Cristo é a diferença que apresenta relativamente aos doutores da lei, aos escribas. No escriba encontramos um certo tipo de autoridade. Eles têm a autoridade de quem conhece a lei, porque a interpreta, e os livros sagrados. Numa sociedade teocrática, têm ainda uma autoridade legitimada pelo poder político (mesmo que este esteja, como era o caso, submetido aos representantes de Roma). No entanto, nem a autoridade proveniente do poder nem a fundada na erudição constituem uma verdadeira autoridade (sobre isto ver o post de ontem).

Se não é nos livros nem no poder, onde residirá a autoridade que sustenta o ensino de Cristo? A palavra grega usada e traduzida por autoridade (ἐξουσίαν) tem um amplo campo semântico. Ela conjuga a energia, a capacidade, a competência e a liberdade do sujeito que possui a autoridade e, ao mesmo tempo, o direito, o poder, o domínio e a força que objectivamente lhe é reconhecida (ver aqui). Em síntese, pode-se dizer que esta autoridade reside na liberdade do autor, na liberdade da autoria. Cristo era o autor da ordem do mundo que ele próprio anunciava e, por isso, as suas palavras tinham autoridade que, ao serem escutadas, logo era reconhecida. Elas, as Suas palavras, não vinham de um exercício hermenêutico sancionado pelos poderes político-religiosos e académicos, mas da própria essência daquele que fala. A fragilidade dos doutores la lei reside na distância que vai entre aqueles que interpretam racionalmente a lei e aqueles que, ao vivê-la e ao torná-la vida, se tornam os seus autores. A verdadeira e única autoridade é aquela que nasce da autoria.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Do uso das bibliotecas

Helena Vieira da Silva - Biblioteca (1953)

Numa história onde, por várias vezes, grandes bibliotecas foram queimadas, num país onde, devido à escassez, as bibliotecas foram elevadas à condição de templo sagrado (tão sagrado que muito nem lá entram), a biblioteca tornou-se uma metonímia da sabedoria. Aquele é uma biblioteca ambulante. Morreu uma verdadeira biblioteca. Estas expressões acabam por estabelecer uma ligação estreita entre a leitura de livros e a sabedoria. Mas ler livros tornar-nos-á sábios? Não houve, na história da humanidade, grandes leitores cujo comportamento foi insensato ou, mesmo, absolutamente perverso?

Não é a leitura de livros que nos torna sábios, mas uma certa disposição para a sabedoria que nos leva a encontrar nos livros um alimento dessa mesma sabedoria. Dito de outra maneira, a sabedoria não é a consequência de uma causa chamada leitura. Pelo contrário, a leitura é a consequência de uma certa disposição para a sabedoria. Só assim a leitura faz parte da viagem espiritual do homem. Caso contrário, mesmo que não tenha efeitos perversos em certas personalidades, ela não tem mais efeitos intelectuais do que o consumo de chocolates tem ao nível do corpo.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Haikai do Viandante (149)

Nikolay Dubovskoy - Calm (1890)

Ó pura quietude,
cais silenciosa e fria
sobre a vida rude.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

A vida e a morte

Ramón Pérez Carrió - Descida às entranhas da luz

Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1: 4-5)

Somos fascinados pela oposição entre luz e trevas. Um hábito ancestral leva-nos a ordenar o mundo em pares de opostos. Esse hábito é muito anterior ao texto de João. Este vai explorá-lo, estabelecendo duas relações entre luz e trevas. Em primeiro lugar, as trevas são o lugar onde a luz brilha intensamente (resplandece). Quanto maior a escuridão mais intenso é o brilho da luz. As trevas são o lugar da manifestação da luz. Em segundo lugar, as trevas não compreenderam a luz. Esta não compreensão deve ser lida, cumulativamente, como não entendimento (as trevas não entenderam a luz) e como não inclusão ou não abrangência (as trevas não incluíram a luz ou excluíram-na). A luz manifesta-se não apenas naquilo que não a entende como também no que a exclui, incapaz de a abranger.

Este jogo dialéctico é, em si mesmo, incompreensível. Contudo ele é antecedido por uma frase metafórica: a vida era luz dos homens. O que está em questão é muito mais que a tensão entre dois fenómenos ópticos (luz e trevas), ainda que tomados como metáforas da sabedoria e da insensatez. Se a luz surge como metáfora da vida, o leitor é levado a compreender, por analogia, as trevas como metáfora da morte. É na morte que a vida resplandece, mas é também a morte que não compreende a vida e a exclui. Este parece ser o núcleo central do mistério dos cristianismo, a afirmação de uma vida através da morte, de uma morte que a não compreende, que a exclui. Tudo está assente num paradoxo: a vida que se manifesta naquilo que a nega, que a exclui, mas que é, ao mesmo tempo o outro da vida, como se esta tivesse de descer ao coração da morte para de lá resgatar as entranhas da vida.

domingo, 23 de junho de 2013

O lugar da emoção

Ferdinand Hodler - Emoção (1894)

Encontrar o lugar da emoção será um momento essencial da viagem espiritual. Toda a emoção é uma alteração de uma certa ordem, uma desordenação. Se a razão nos traz uma ordenação do mundo e a desrazão a mais pura desordem, o essencial é encontrar na emoção o lugar onde ordem e desordem se encontram. A efectiva sabedoria joga-se não na razão mas na justa medida da emoção. A emoção deverá ser suficientemente viva para que faça cair a velha ordem do hábito e suficientemente moderada para que, evitando o caos das pulsões inconscientes e dos instintos, propulsione um novo passo para uma outra ordem do cosmos e do sujeito que caminha nesse cosmos.

sábado, 22 de junho de 2013

Poemas do Viandante (422)

Maxfield Parrish - Blue Fountain (1926)

422. A natureza sonha água e fontes

A natureza sonha água e fontes,
jardins de seda
nas margens bravias da floresta.

Um rumor lembra os primeiros dias
e em cada passo
abre-se a porta do tempo.

Rasgo o véu e as trevas dissipam-se
entre o fulgor dos teus olhos
e as mãos cobertas de terra.

Quando anoitece, as árvores sussurram
e trazem para a cidade
a cor que a vida arruinou.

Em cada fonte sonhada,
em cada Estio que chega,
um rio solitário enlouquece.

Olho a fonte no centro do jardim
e oiço as águas do rio
perdidas entre o céu e o mar.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

A suspensão da mediação


Há dias, durante uma missa para os jardineiros e pessoal de limpeza do Vaticano, o Papa Francisco pede que todos orem em silêncio, cada um pelo que o seu coração deseja (ver aqui). Francisco, que preside à celebração, levanta-se e vai sentar-se numa das últimas cadeiras. É assim que ele faz a sua oração. Este gesto acorda-se com a exigência dos próprios evangelhos, de o primeiro ser o último, ser o mais humilde dos servidores. Mas, no seu gesto, há mais alguma coisa. Há, em pleno ofício litúrgico, uma suspensão da mediação. O supremo mediador entre Deus e os homens, o sumo pontífice, torna-se o último dos homens. 

Olhamos e cada um está confrontado, no silêncio da sua consciência e na imagem dos seus olhos, com o Cristo crucificado. O Papa, em vez de ser a ponte e a sombra, deixa, por um instante, que os crentes se olhem na figura do Cristo. Não há a grandeza do pontífice para ocultar a miséria da cruz, não há a sombra do sacerdote para ofuscar a luz que se abate sobre os fiéis. Não há abandono dos crentes, pois o Papa está com eles, mas uma indicação precisa sobre a importância de cada um ser autónomo e confrontar-se, sem a mediação de uma outra consciência, com a sua crença e o seu destino. Este gesto, aparentemente tão trivial, parece anunciar uma reconciliação do catolicismo com a modernidade e a autonomia da consciência. Francisco não nega a mediação da tradição sacerdotal - seria um protestante -, mas suspende-a, para que a subjectividade de cada um se veja no espelho da cruz.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Haikai do Viandante (148)

Caspar David Friedrich -  Doorway in the Fürstenschule Meissen (after 1835)

Súbito mistério,
porta aberta para a rua:
luz do teu império.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

A sombra

Albano Vitturi - L'ombrellone (1930)

O homem não suporta a luz, o seu regime é o claro-escuro, o meio termo entre a luminosidade pura e a completa ausência de luz, as trevas. A sombra torna-se uma possibilidade, a possibilidade do homem caminhar em direcção à luz, avançando de "claridade em claridade", como se o seu espírito precisasse de se ir aclimatando, pouco a pouco e com elevado esforço, ao luminoso. A sombra é o anjo da guarda daqueles que aspiram caminhar para a luz. Protege-os e refreia-lhes o ímpeto. A sombra é o sinal da fragilidade do homem e uma dádiva. É também um perigo. Quando o homem pensa que o seu destino é a sombra, perde a luz que o orienta e começa a cair nas trevas.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Estátuas de Sal

Raquel Forner - Mulher de Lot (1935)

Um dos episódios mais estranhos do Antigo Testamento é o da transformação da mulher de Lot em estátua de sal. A fuga da família de Lot, aquando do castigo de Sodoma e Gomorra, tinha como condição não olharem para trás. Esta estranha condição não é diferente da que foi imposta a Orfeu na sua tentativa de libertação de Eurídice do reino da morte. Não olhar para trás, não procurar a certificação do caminho com uma visão retrospectiva. Poder-se-ia ver nesta história da mulher de Lot ou no mito de Orfeu uma certa atenção ao futuro. Isso, porém, seria falhar o essencial. O castigo de Orfeu ou da mulher de Lot deve-se à incapacidade de estarem presentes, de se moverem aqui e agora, de se deixarem seduzir pelo que fica para trás ou pela necessidade de uma certeza. Em ambos os casos, o que está em jogo é o desejo, o desejo de uma certeza, mas também o desejo de algo que passou, e cuja memória, certificada pelo olhar retrospectivo, petrifica o espírito e o transforma numa estátua de sal.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

A visita

Pablo Picasso - A visita (1902)

Há uma dimensão social da visita, uma dimensão que a inclui no processo de sociabilização e de estruturação comunitária. A visita aproxima e, ao mesmo tempo, é sintoma de uma certa partilha de interesses. Mas olhar o acto da visitação apenas na sua dimensão social e comunitária é perder aquilo que ela simboliza de essencial. A visita é também um encontro entre espíritos, o contacto entre iguais, a participação de uma comunidade e de uma comunhão que ultrapassa a vida social e a sua regulação moral. As verdadeiras visitas são aqueles que assinalam um encontro e uma identidade ontológica. As visitas essenciais podem ser de muitas e diferentes naturezas, mas fazem parte de uma geografia onde os que estão a caminho entretecem laços que os auxiliarão a chegar a esse destino que não tem meta ou fim.

domingo, 16 de junho de 2013

A cruz invisível

Paul Gauguin - O Cristo amarelo (1889)

A cruz foi um dos símbolos centrais - o mais central de todos eles - do mundo ocidental. Lentamente, porém, a cruz foi desaparecendo do espaço público, foi-se tornando invisível, foi esquecida e, para muitos, tornou-se desconhecida. A cruz é um símbolo muito desagradável, pois recorda aos homens aquilo que eles insistem em não querer ver. Lembra-lhes não apenas a sua condição mortal mas a natureza frágil e finita do seu corpo, de um corpo que é jogado, ao sabor de circunstâncias que ele não controla, entre o prazer e a dor. A cruz remete para a dimensão da dor e isso torna-a, para a consciência alienada dos homens modernos, absolutamente insuportável. O pior, porém, é que a cruz - usada pelos romanos no castigo dos escravos - torna patente a impotência dos homens e o arbítrio dos poderes. Na cruz estão todos os que são destituídos de poder, todos a quem o arbítrio dos poderes distribui sofrimento e injustiça. E é por isso que a cruz se torna invisível e, para muitos dos que lá estão crucificados, insuportável, pois recorda-lhes que a vida é, na verdade uma via crúcis

sábado, 15 de junho de 2013

Haikai do Viandante (147)

Emilio Sánchez Perrier - Atardecer sobre la ribera del Guadalquivir (1883)

No Guadalquivir
vê-se a vida entardecer:
o dia vai partir.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Poemas do Viandante (421)

Ramón Casas Carbó - Desnudo (1903)

421. O teu corpo cresce para as minhas mãos

O teu corpo cresce para as minhas mãos,
toca-as com o vidro ardente do amor,
e espera o mistério insondável dos seios
a cantar na luz irisada da tarde.

O puro silêncio da boca queima
e os meus lábios esperam o alvoroço dos teus,
a púrpura azul da noite,
o cantar dos dedos sobre a pele.

Uma súbita sombra irrompe,
traça um vestígio de sol no rumor do ombro
e os braços abrem-se luminosos
para me encarcerar na luz do ardor.

Fecho os olhos no teu corpo
e canto o odor que se desprende de ti.
Violetas, rosas, um tumulto de cores
abrem-te para o desejo que canta em mim.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Arrancar a máscara

James Ensor - O teatro de máscaras (1908)

A máscara não é apenas um instrumento da antiga tradição dramatúrgica grega e do culto de Diónisos, nem um acessório carnavalesco. A máscara é o nosso ser para os outros, a face com que representamos e nos presentamos na vida social. Ela tem, nesta última dimensão, uma função de protecção do sujeito na espaço público aberto. Essa função de protecção torna-se, a breve trecho, uma função de representação. O medo de sermos esmagados pela abertura perante os outros leva-nos à representação. De seguida, passamos a crer que somos aquilo que representamos. A máscara já não é sentida como a protecção de si perante a ameaça do outro mas a nossa verdadeira realidade. Nesse momento, entramos no caminho da mentira a nós mesmos. Uma mentira racional, cada vez mais racional e, por isso, cada vez mais geradora de crença, de uma falsa crença. A aventura do espírito, porém, significa o arrancar da máscara, o parar da representação, a suspensão da mentira a si. A pergunta quem sou eu? não é uma mera questão de retórica inscrita no começo de uma qualquer antropologia filosófica. Ela resulta da perplexidade com que o mascarado descobre, ao arrancar a máscara, que toda a vida mentiu a si mesmo.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

O olhar da noite

Cruzeiro Seixas - Quando a noite nos olha (1989)

Não se trata de estarmos na noite, de caminhar nela, mas de sustentar o seu olhar. O que significará olhar a noite nos olhos? A noite como metáfora da ausência de luz é ainda um placebo tranquilizador. É preciso ir mais longe, é preciso descer. Não é apenas a ausência de luz que se esconde na metáfora da noite, é a própria ausência de ser, é o nada. No olhar da noite é o nada que nos olha, é a dissolução do mundo, é o rasgão do tecido com que construímos as nossas imagens, as nossas crenças e as nossas esperanças. No olhar da noite, tudo isso se dissolve e o viandante, sem norte, abre mão de si e espera que a noite o recolha.

terça-feira, 11 de junho de 2013

O viajante invisível

Vieira da Silva - O passeante invisível (1951)

Um rasto de luz, apenas. A tradição moderna, que tem em Descartes e na sua angustiante busca da certeza um primeiro marco, é a mais avessa das tradições à aventura do espírito. Nela, o espírito reduziu-se à subjectividade, e tudo gira em torno do sujeito, seja a glória e a honra, seja a humilhação e a patologia. Mas todas essas figuras da vitória e da derrota do sujeito são apenas a compensação de um sentimento de desconfiança perante a possibilidade da fé no sujeito ser falsa. A aventura espiritual é, antes de mais, uma luta contra a ilusão da subjectividade. Aquele que se põe a caminho dirige-se para a hora em que se torna no viajante invisível. Ao passar, não deixa pegada nem sombra de corpo, apenas um rasto de luz.