quarta-feira, 29 de maio de 2013

O mistério do visível

Benvenuto Benvenuti - O portão fechado (1907)

A porta fechada surge muitas vezes como um símbolo fundamental da vida dos homens. Simboliza a diferenciação de territórios, simboliza os processos de exclusão e de inclusão num dado grupo, simboliza o mistério, ao ocultar o que está para além dela, simboliza também o desafio e prova. A porta propõe um exercício de ultrapassagem da situação em que se está para uma nova situação desconhecida e misteriosa. Ao olharmos para o portão fechado representado no quadro de Benvenuto Benvenuti não encontramos, num primeiro momento, as características mais perturbantes de uma porta. Na verdade, este portão partilha com a porta fechada a mesma potência de demarcação territorial e traça também as regras do jogo da exclusão e da inclusão. Como na porta,não é a mesma coisa estar num lado ou no outro do portão. Falta-lhe, contudo, a dimensão central do mistério. O portão deixa ver em vez de ocultar. O transeunte pode constatar a continuidade entre os dois lados da fronteira, de que o portão fechado constitui o sinal e o lugar de passagem.

Esta sensação de ausência de mistério e de desafio é, porém, ilusória. A transição de um lado para o outro do portão implica uma mudança territorial e a submissão do sujeito a novas regras, as quais estão longe de ser conhecidas. O mistério reside não no que está oculto materialmente, mas nas regras inexpressas daquilo que se vê, e que ao ser visto parece ser conhecido ou idêntico ao conhecido. O mistério - porventura um mistério perturbante - está agora naquilo que é visível, naquilo que é opressivamente visível. Não há mistério maior do que aquilo que não aparenta mistério algum, como se a sua claridade, distinção e transparência fossem apenas o sinal do maior dos desafios. Passar aquele portão pode ser a maior das provações e a mais perigosa das aventuras. Perante ele, deve o viandante interrogar o seu coração e perguntar-se se será por ali o seu caminho.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Verdade e existência

Jules Joseph Lefebvre - A Verdade (1870)

Na tradição intelectual do Ocidente, a verdade é vista ora como revelação daquilo que está oculto - essa é a perspectiva platónica que tem frutuosa aplicação na literatura, nomeadamente na literatura policial - e a verdade como adequação à realidade das representações que o homem produz, por exemplo, na ciência. Um dos momentos mais surpreendentes dos textos evangélicos é aquele em que Cristo afirma que é a Verdade, a Via e a Vida. A questão da verdade é deslocada do elemento intelectual para uma perspectiva mais global. Poder-se-á dizer que, com o Cristianismo, a verdade se combina com a vida e com o modo como a vivemos. Há uns anos atrás, dir-se-ia que a verdade tem um sentido existencial. A verdade não é assim o resultado de uma estratégia cognitiva ou a resultante da justeza das nossas imagens do real, mas uma forma de caminhar na vida que mobiliza não apenas o intelecto mas todo o ser do homem. A verdade não é uma representação mas uma presença que, por ser verdadeira, se torna realidade.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

O abismo e a noite

Alfons Mucha - O abismo (1887-89)

Há um certo paralelismo entre a atracção pelo abismo e a noite escura da alma, tal como é pensada pelos místicos cristãos, nomeadamente por João da Cruz. Na noite escura, o místico sente-se abandonado por Deus e toda a vida espiritual parece perder o sentido. Na atracção pelo abismo há, também, uma experiência de abandono, mas de um sinal bem diferente. O sujeito sente que abandona os mecanismos que o mantêm à superfície e que se entrega à dissolução do sentido. A ausência de sentido que tudo então apresenta deve-se à impotência do indivíduo em coordenar as suas faculdades, para que estas imponham sobre o mundo uma gramática e um léxico que suportem um sentido digno de ser vivido. Ora, entregar-se à atracção do abismo é aceitar que as suas próprias faculdades se dissolvam e, nesta dissolução, arrastem o poder do sujeito em configurar o mundo. A noite escura dos místicos é um tempo e uma experiência de purgação, a atracção pelo abismo é apenas a entrada num processo de dissipação e perda.

domingo, 26 de maio de 2013

Poemas do Viandante (417)

Carlos Schwabe - A dor (1893)

417. A dor é uma melodia transbordante

A dor é uma melodia transbordante,
ruído que pousa na exuberância do corpo
e rasga uma estrada de excessos
que quebram o fôlego
e trazem a noite à claridade do meio-dia.

Pudesse a dor ter uma face geométrica,
ser circunscrita pela luz da razão,
e o mundo, tomado pela vertigem,
ergueria em cada sombra
um império de estrelas e constelações.

A infinita ferida, porém, tem mil caras
e a cada momento a metamorfose
traz um novo e infindável grito,
o suor  que dilacera o peito
e abre a pele para um refúgio insensato.

Um arquipélago de escaras ardentes,
um universo de feridas em expansão,
a fonte de onde nasce o mal.
Silêncio, silencioso silêncio, desce,
o corpo caído, turvo de suor, espera-te.

sábado, 25 de maio de 2013

Haikai do Viandante (144)

Caspar David Friedrich - Hut under snow (1827)

A velha cabana,
coberta de neve, abriga
a quem o frio chama.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

A ordem precária

Frantisek Kupka - Composição em azul (1925)

Ontem escreveu-se aqui sobre aqueles que, não encontrando um caminho, fazem da existência uma aventura no labirinto. Esta visão, contudo, não estará ainda demasiado dependente da teleologia de Aristóteles e da crença numa causa final? Se deixarmos de acreditar numa causa final que nos move, qualquer que ela seja (emancipação da humanidade, salvação da alma, progresso moral, desenvolvimento técnico, etc. etc.), o que acontecerá? De imediato, a vida deixa de ser interpretada como caminho para um fim determinado, muitas vezes a priori. Com a queda da ideia de um caminho determinado, desaparece também o fantasma do labirinto. O labirinto é ainda um caminho, mas em versão múltipla, entrecruzada e dispersa. 

Do ponto de vista do espírito - da aventura espiritual do homem - fará sentido ter um caminho? Não é o espírito como o vento que sopra onde quer? Se o espírito, aos nossos olhos mortais, é assim, arbitrário e indeterminado, não será a vida uma contínua composição com materiais heteróclitos e dispersos, criando figurações inesperadas, desenhando constelações perecíveis, inventando fronteiras móveis que, continuamente, desenham novos e novos territórios. Talvez a ideia de caminho ainda esteja demasiado presa à mitologia do caos e do cosmos, à construção de uma ordem fixa sobre a matéria prima caótica. Não se trata, todavia, de ceder ao caos, mas de lidar continuamente com ele, configurando-o uma e outra vez, num processo sem fim. Talvez o enigma da vida esteja aí, no facto de não haver nenhum caminho, mas apenas o sítio onde se está e que apela para que lhe imponhamos uma ordem precária, que outros desfigurarão para a tornarem a  configurar.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

O caminho e o labirinto

Chaim Soutine - Landscape with Ascending Road (1918)

Seguia o caminho que devia seguir, com um passo indolente e irregular, assobiando e olhando ao longe, a cabeça inclinada para o lado, e se se enganava no caminho, é porque para certos seres não existe verdadeiro caminho.

Quando se lhe perguntava o que ele pensava vir a ser, dava respostas variáveis, pois tinha o hábito de dizer (já o tinha notado) que trazia nele as possibilidades de uma quantidade de existências, juntas à consciência secreta que elas eram, no fundo, puras impossibilidades. (Thomas Mann, Tonio Kröger)

Se a natureza quer perder alguém, nada melhor do que dotá-lo de múltiplas capacidades e fazer suspeitar nesse alguém inúmeras vidas possíveis. Atraído pela exuberância dos dotes, experimenta mil caminhos. Todos são os seus caminhos, mas na verdade nenhum é o caminho. A vida torna-se pura perda, incapacidade de escolha, ausência de fim, um tormento silencioso e cumulado de derrotas. Quantas vezes essa pessoa deseja, no fundo de si mesma, um horizonte tranquilo, apenas rasgado pelo caminho ascendente que o levará à meta, à única meta que lhe diz respeito. Mas a ele não lhe cabe esse destino, pois é um viandante sem caminho. Melhor, é um viandante perdido no seu próprio labirinto.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Eis aqui o homem

Baldomero Romero Ressendi - Ecce Homo

Saiu, pois, Jesus fora, levando a coroa de espinhos e roupa de púrpura. E disse-lhes Pilatos: Eis aqui o homem. (João 19:5)

Numa sociedade como a nossa, a apresentação do homem flagelado, amarrado, coroado de espinhos, em suma, completamente humilhado, caso a nossa época não estivesse saturada de imagens e não se tivesse tornado insensível a elas, seria uma verdadeira provocação. Os nossos tempos são tempos de homens vitoriosos. Só os vencedores contam. Quem quer rever-se numa imagem de um Cristo humilhado? O cristianismo tornou-se, para as ideias dominantes, aquilo que há de mais repulsivo. A repulsa nasce, em primeiro lugar, da má-consciência - quando existe ainda alguma consciênca - pois este homem humilhado e à beira da execução é a imagem fiel dos milhões de homens humilhados e sobre a dor dos quais se constrói a vitória dos vencedores.

A repulsa tem, porém, ainda outra origem. O que diz Pilatos à multidão ululante? Diz: Ecce homo (eis aqui o homem). Aparentemente, Pilatos estava a apresentar um homem particular, Jesus de Nazaré. Na verdade, porém, ele estava a mostrar à multidão o homem na sua humanidade. Ele devolvia à multidão a imagem de cada um, a terrível imagem da finitude e da impotência humanas perante os poderes do mundo. E é isso que a multidão daqueles dias, assim como os vitoriosos de hoje, não suportam. A arrogância, a velha hübris dos gregos que herdámos e com tanto vigor cultivámos, não suporta a visão do homem finito, limitado e, na verdade, absolutamente impotente perante a desmesura da vida e da morte. Este Cristo abandonado à dor e à morte é insuportável. E é insuportável porque nos detestamos na nossa verdadeira e última condição.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Presença e meditação

Eugène Carrière - Meditação (1900)

O senso comum pensa muitas vezes a meditação como uma espécie de ensimesmamento do sujeito, uma fuga da realidade e do mundo da acção. Os estados meditativos seriam, desse modo, uma alienação e uma errância do sujeito na sua vida interior. No entanto, esta visão é muito limitada. Os estados meditativos podem ser momentos de grande atenção à realidade, aquilo a que se poderia chamar uma sobre-atenção, onde o espírito se abre livremente para o fluir do acontecer. Por outro lado, a própria acção deveria ser consumada em estado meditativo, como se ela fosse a expressão directa de um espírito livre e atento a cada instante e a cada gesto. Isto só tem sentido, contudo, se se entender a meditação como a presença plena e desperta do sujeito em cada instante e em cada gesto, como a substituição dos estados representativos da inteligência pela presentificação do espírito na vida quotidiana, já que não há outra vida que não a quotidiana.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Poemas do Viandante (416)

Edward Burne Jones - O lamento (1866)

416. Nas cinzas de um lamento há uma rosa

Nas cinzas de um lamento há uma rosa,
a flor perdida da primeira inocência,
rasto severo da obscura mão do destino.
A maculada consciência é um fruto tardio,
memória de poeira em pedra de carvão.

Dobro-me sobre a vida que passou
e deixo correr entre dedos
cada momento em que o mal me tocou,
criou raízes na terra dura da verdade
e me abriu, negro e férreo, para a irrisão.

Não tenho palavras para todas as confissões.
Gastei-as errando pelas veredas de sombra,
abrindo caminhos de aço na solidão do mundo.
Entoo a patética elegia da inocência
e escuto rendido o amanhecer da saudade.

domingo, 19 de maio de 2013

Caminho interior

Kenneth Noland - Caminho interior (1961)

Na vida dos homens talvez não faça sentido distinguir entre caminho interior e caminho exterior. O único caminho - ainda que diferente para cada um - é o caminho interior. Na exterioridade, não há caminho algum, apenas becos sem saída, onde os homens desesperam e perdem o sentido das suas vidas. Em si mesmo, cada um encontrará o alvo para onde deverá dirigir a seta da sua acção. Quem se perde de si e mergulha nas trevas exteriores substitui o caminho pelo labirinto, do qual não tem o fio de Ariadne que lhe permita retornar à luz e à vida.

sábado, 18 de maio de 2013

Haikai do Viandante (143)

Albert Bierstadt - Atardecer en la pradera (1870)

O rumor da tarde
ateia incêndios nos céus.
Tudo, tudo arde.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

O prazer da transfiguração

Mikhail Aleksandrovitch Vrubel - A Primavera (1897)

Não sei se alguma Primavera me surpreendeu tanto quanto a deste quadro de Vrubel. No lugar da alegria triunfante sobre a noite invernosa, encontramos a pura contenção. No lugar da exteriorização, vemos a discreta interioridade. No lugar das cores vivas, são os tons melancólicos que dominam. Talvez toda a sabedoria se resuma em apreender em cada coisa o seu contrário e perceber a realidade como um todo indivisível. Na alegria primaveril é preciso intuir, de imediato, a melancolia do outono, e saber que nesta está já toda a esperança de uma nova primavera, como se para o espírito as várias figurações do tempo não passassem de um jogo em que o mesmo, aquilo que permanece idêntico, se entrega ao puro prazer da transfiguração.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Da fonte do amor

Jean Delville - L'amour des âmes (1900)

Na história da humanidade sempre o amor foi sentido como um excesso, não um excesso da natureza, mas um excesso que ultrapassa a natureza, como se esta, em si mesma, fosse incapaz de dotar os corpos de tão sublime sentimento. Um corpo é desejável. No entanto, o desejo é incapaz de explicar o amor, de explicar precisamente o amor que sinto por quem está num dado corpo. É nesta impotência da explicação empírica que o homem compreende que uma outra coisa é necessária para que o amor possa nascer. Esse lugar amoroso é a própria alma e todo o amor tem na alma a sua fonte. Duas almas amam-se e, de súbito, o desejo dos corpos é mais do que um desejo, é uma luz que cai sobre eles e, ao nimbá-los, torna-os sublimes.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Poemas do Viandante (415)

Frantisek Kupka - O desafio (1903)

415. Ergo o desafio tecido de vertigens

Ergo o desafio tecido de vertigens
e deixo fluir o medo,
a dor excessiva que fere a carne,
desenha o informe trazido pelo tempo
e crava o aguilhão no centro do peito.

No lago do passado, sobre as águas frias,
flutuam velhas caravelas,
barcaças rudes tracejadas a carvão,
umas mãos brancas e febris
estendidas para o vazio que as espera.

Nessa obscuridade a que chamam amor,
deponho as armas inúteis,
entrego o velho castelo
à sombra silenciosa da tua sombra
e aguardo o rigor cruel dessa boca.

Um presságio desenha-se no horizonte,
e o monstro que me espera
eleva-se na majestade dos céus.
O seu peso não tem medida
e o olhar rasga-me as entranhas da alma.

Perdi o ofício que me atava à vida.
Esqueci cada desafio trazido pelo tempo.
Exausto, anseio pela floresta,
e canto, imóvel e sereno, a loucura
do corpo lacerado pela solidão.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Orfismo e cristianismo

Alexandre Séon - Lamento de Orfeu (1896)

Os limites espirituais do politeísmo grego expressam-se plenamente no mito de Orfeu. Diz a lenda que tendo perdido Eurídice, a amada levada pela morte, Orfeu desce aos infernos para a resgatar para a vida. Consegue convencer os deuses infernais a libertarem a amada. Estes, porém, impõe-lhe uma condição. Que nunca olhe para ela enquanto durar a travessia do reino dos mortos. Orfeu, todavia, não consegue resistir à necessidade de certificação ou ao desejo e acaba por perder Eurídice. 

O orfismo reflecte a impotência perante a morte, a incapacidade do homem resgatar a alma (Eurídice) do túmulo (o corpo ou o reino dos mortos). De certa forma é a isto, ao mistério que aqui se representa, que o cristianismo veio responder. Também Cristo desce ao reino dos mortos, não como corpo que procura no fundo de si a sua alma, mas como aquele que morreu e que na morte, na morte do homem velho, encontrou uma nova vida, melhor: encontrou a vida. Orfismo e cristianismo respondem ao mesmo problema, mas a vitória do cristianismo está toda ela contida no destino diferente que tiverem Orfeu e Cristo na sua descida ao reino dos mortos.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

A anunciação e a proclamação

Oskar Kokoschka - A Anunciação (1911)

O que faz da Anunciação um episódio central do cristianismo é a capacidade de escuta de quem é a receptora do anúncio. Escutar é, desse modo, uma dimensão central do caminho do espírito. A vida pública está ligada ao regime da proclamação. Mais do que escutar, os que têm papel central na esfera pública querem proclamar a sua verdade. O caminho do espírito, porém, não se inscreve no regime da publicidade. Quem quer entrar nele terá de pôr de lado qualquer veleidade à proclamação e aprender a escutar. O homem na sua finitude e falibilidade não é o anunciador da verdade, mas aquele para quem a Verdade é anunciada. Saber escutar é, desse modo, uma virtude central no caminho do viandante.

domingo, 12 de maio de 2013

Haikai do Viandante (142)

Caspar David Friedrich - Cape Arkona at Sunrise (1803)

Luz pálida e pura
da súbita madrugada
abre a noite escura.

sábado, 11 de maio de 2013

A outra solidão

Alexander Harrison - Solitude (1893)

Para além daquela solidão terrível sentida como abandono, há uma outra que se aventura para lá da terra firme e entra nas águas inquietas e tenebrosas. Perscruta a noite e esquece a segurança. Nessa solidão, o espírito enfrenta o terror trazido pela incerteza e aprende a confiar no porvir. Abrir-se à solidão significa, então, abandonar-se a si mesmo e confiar no espírito que o habita, deixar-se guiar, aprender o sentido da corrente, da sua própria corrente. A solidão é o lugar onde cada um pode encontrar-se consigo mesmo, o sítio da noite escura do espírito. A solidão é o lugar da verdade de si.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Dos limites da fantasia

Alexandre de Riquer - Fantasia

O discurso do senso comum, muitas vezes dinamizado por uma certa divulgação pseudo-científica, tem valorizado, para além do domínio artístico, a dimensão da fantasia. Desde a importância da fantasia na vida sexual até à sua mobilização no âmbito da publicidade e da técnica de vendas, passando pelos múltiplos usos quotidianos do fantástico, a fantasia tornou-se um vocábulo que facilmente é mobilizado como panaceia do aborrecimento e do cansaço. 

O resultado desta banalização do exercício fantástico da imaginação está longe de ser percebido. Seja a fantasia realista ou inverosímil, ela é sempre um exercício de suspensão do contacto com a própria realidade. Perante uma realidade tida como prosaica, a subjectividade recria-a, imagnariamente, à luz dos seus desejos. Esta velha propensão da humanidade para a fantasia esconde uma inconfessável impotência para acolher e maravilhar-se com a própria realidade. A usura que o olhar quotidiano sofre, impede-o de uma atenção à própria realidade. A fantasia surge, então, não como um remédio mas como uma técnica de intensificação da patologia quotidiana. 

Em diversas tradições espirituais da humanidade, e contrariamente ao que se pensa, a crítica ao desejo funda-se na fuga mundi que ele introduz através da fantasia. Essa crítica à consciência desejante não é, na verdade, uma crítica do desejo, mas ao delírio que, pela fantasia, desvia o desejo do seu objecto real. O que nessas tradições - por exemplo, na mística cristã - está em jogo não é um desvio da consciência relativamente à realidade, mas a aprendizagem de uma atenção ao que é real, como caminho que conduz ao espanto (a experiência que, segundo os gregos, leva à filosofia) perante aquilo que é, e ao deslumbramento perante a verdade.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Poemas do Viandante (414)

Emilio Sánchez Cayuela (Gutxi) - Silencio (1985)

414. Desenho o silêncio nas margens da palavra

Desenho o silêncio nas margens da palavra
e deixo-o correr pelos dedos,
rio de água clara,
fruto caído e sombra de pássaro.

Trago-o preso no coração,
mancha de incenso pela tarde,
a pergunta perdida
na esquiva desolação da cidade.

Dispo-te quando chega o estio,
e traço uma fronteira de rumores.
Esqueço cada palavra
e deixo-te, silêncio, nascer pela alvorada.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

O desejo da insignificância

Salvador Dali - Cabeça de Medusa (1962)

Apesar de Perseu, a Medusa continua a petrificar-nos. Sedutora, leva a que desviemos o olhar do nosso caminho e concentremos nela todas as nossas atenções. Transformados em pedra, tornamo-nos errantes, sem saber onde vamos e o que procuramos. A velha Górgona não é um mero monstro mitológico, mas a nossa capacidade de ilusão que nos ata de pés e mãos ao que é lateral e insignificante. O desejo da insignificância é o caminho que nos leva à Medusa e nos transforma, apesar de vivos, em rocha dura.

terça-feira, 7 de maio de 2013

A inocência

Jean-Léon Gérôme - A inocência (1852)

A inocência é uma das temáticas mais misteriosas da vida humana. Na tradição ocidental, ela é figurada pelo estado paradisíaco, no qual o homem desconhecia o mal. Ora, segundo o mito, a entrada do homem neste mundo dá-se com a Queda. Deste ponto de vista, chegamos já ao mundo num estado de culpabilidade. Aquilo que surge então como o grande desafio é tornar-se inocente, não no sentido de retorno a um estado de inconsciência perante o mal ou de alienação pela real situação em que o homem vive. O que homem deve procurar é a inocência neste mundo e nas solicitações que ele lhe coloca. Não é fugir do mundo e abster-se de agir nele, mas tornar a sua acção isenta de culpa, inocentá-la pela intenção com ela é levada a efeito, inocentá-la por ele próprio aprendeu a inocência.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Confusão geral

Stanislaw Ignacy Witkiewicz - Confusão geral (1920)

Há na vida quotidiana um estado geral de confusão, estado esse inimigo da vida espiritual do homem. A sociedade, ao complexificar-se e ao centrar-se na dimensão da produção/consumo, tornou-se estruturalmente confusa. Ao mesmo tempo, os indivíduos, uma vezes seduzidos outras amedrontados, perderam a capacidade de tornar para si mesmos claras as verdadeiras razões pelas quais vale a pena viver. A confusão social e a confusão individual intensificam-se uma à outra, tornando cada vez mais a vida caótica. O triunfo dos interesses materiais sobre o espírito, apesar de fortemente apoiado na razão científica e calculadora, está a rasurar todo o sentido da existência humana. Para onde quer que o homem se volte, apenas encontra ruído, poluição e uma confusão generalizada.

domingo, 5 de maio de 2013

Um espaço para a liberdade

Giorgio de Chirico - El enigma de la fatalidad (1914)

O determinismo - crença de que tudo o que acontece se regula por uma causalidade necessária - é uma espécie de secularização do fatalismo metafísico. Uma providência inescrutável determina a priori a ordem do mundo e o destino de cada um. Muito curiosamente, não foi a ciência moderna que libertou os homens da pesada mão da fatalidade mas as religiões, na sua dimensão de experiência espiritual. A liberdade foi uma criação do espírito religioso - e de forma absolutamente acentuada do espírito do cristianismo - que abriu uma brecha entre a fatalidade metafísica e o determinismo secular, lembrando aos homens que são feitos para a liberdade, fornecendo-lhes mesmo métodos de emancipação e de libertação da subjugação à pura necessidade. Na verdade, aquilo que está em causa nas religiões - apesar de tantas vezes obscurecido - é esta possibilidade de ser livre, é esta proposta de emancipação da fatalidade do mundo.

sábado, 4 de maio de 2013

Haikai do Viandante (141)

Carlos de Haes - Aguas buenas, Pirineos (1882)

Montanha sagrada,
por ti sigo o meu destino.
Vou só e sem nada.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Poemas do Viandante (413)

Vincent Van Gogh -  Road with Cypress and Star (1890)

413. O vento arde sobre os ciprestes

O vento arde sobre os ciprestes,
traça redemoinhos na paisagem,
deixa vestígios de luz no horizonte
e a promessa de um incêndio
no imóvel movimento das cores.

Olho a pulsação das árvores
e sinto o arpejo das almas
subindo lentamente aos céus.
 
Eternos e precários ciprestes,
sombra tardia aberta na vida,
cálice abandonado na terra,
um excesso romântico de Deus.
 
Os astros correm nos céus,
desenham páginas de silêncio
na astúcia que derramam
sobre as casas escondidas
na desolação da planície.
 
Pobres caminhantes, a vida joga-se
como um sobressalto desolado
entre o segredo de um nome
e a sombra levitada do cipreste.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O véu da ilusão

Vincent Van Gogh - Salgueiros ao pôr-do-sol (1888)

Há três coisas, efectivamente, que impedem o homem de conhecer Deus de alguma maneira. São, em primeiro lugar, o tempo, em segundo, a corporalidade, em terceiro, a multiplicidade. Enquanto estas três coisas estiverem em mim, Deus não está em mim e não opera verdadeiramente no meu foro íntimo. (Meister Eckhart, Sermões Alemães, XI)

O tempo, a corporalidade (isto é, o espaço) e a multiplicidade de coisas de natureza espácio-temporal surgem, na perspectiva do místico renano medieval, como o véu que impede o contacto directo com a verdadeira realidade. Sublinhe-se que não estamos perante um véu de natureza moral. Aquilo que impede o contacto do homem com o Absoluto não é, em primeiro lugar, uma conduta em desacordo com os princípios morais ou com a lei dada aos homens nos chamados mandamentos divinos. Antes de uma hipotética imoralidade há uma ilusão, ilusão essa que leva os homens a tomar como o efectivamente real a dimensão empírica captada pelos nossos sentidos. O apego ao tempo, ao corpo, à multiplicidade das coisas finitas é problemático porque, ao prender-nos numa ilusão sensorial, nos impede a abertura à verdade. A imoralidade deriva da ilusão e não o contrário. E o carácter problemático de uma conduta imoral reside em que ela reforça o véu de ilusão que cobre o homem e impede que o Absoluto desça nele e opere nele e a partir dele e da sua relatividade.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Uma lúgubre realidade

Leon Frédéric - A era do trabalhador (1895-97)

Como será possível denominar o quadro com o estranho título de A era do trabalhador? O que vemos, em primeiro plano, são mulheres e crianças e não encontramos vestígio de trabalho nem figuras que possam preencher o conceito de trabalhador. O que nos diz então este quadro sobre a era do trabalhador? Diz-nos que a actividade do homem se reduziu à sua condição natural, à pura corporalidade, à mera estratégia da sobrevivência da espécie, à preocupação com a reprodução da vida. A era do trabalhador é o tempo histórico em que o homem, despido da espiritualidade, se entrega plenamente aos afazeres da reprodução e da sobrevivência. A era do trabalhador é a confissão de uma dificuldade pela qual a espécie passa. Todas as suas forças se concentram nas dinâmicas biológicas ligadas ao corpo. A era do trabalhador, contrariamente ao que se propaga nas diversas retóricas sociais, não é a do reconhecimento da dignidade do trabalho e do trabalhador, mas o tempo em que a actividade do homem perdeu o sentido espiritual que dava dignidade tanto ao trabalho como àquele que o executava. A luminosidade do quadro de Leon Frédéric oculta, na beleza dos corpos e na esperança trazidas por novas vidas, a lúgubre realidade do homem moderno, a sua oclusão na pura corporalidade, o esquecimento daquilo que faz dele mais do que um animal.

terça-feira, 30 de abril de 2013

Amor entre ruínas

Edward Burne Jones - Amor entre ruínas (1894)

Veio, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça. (Paulo, Romanos 5. 20)

Se olharmos o quadro de Burne Jones, numa primeira impressão, percebemos as ruínas como um cenário onde o amor é representado. O par ali representado parece exterior ao lugar. Mas, parafraseando Paulo de Tarso, podemos dizer que, onde abundam as ruínas, superabunda o amor. A desolação das ruínas e a consolação amorosa estão intimamente ligadas, como se o amor fosse sempre o triunfo sobre a ruína, sobre a desolação trazida pelo tempo, fosse sempre uma promessa de eternidade nascida no centro da destruição que o tempo traz consigo.