João Queiroz - Sem título (?) (2008)
287. ESTE NÃO É O CAMINHO PARA A ILHA
este não é o caminho para a ilha
falta-lhe o mar revolto e nunca vindimado
falta-lhe o murmúrio da lua reflectido nas águas
a incerteza dos remos nas mãos do remador
não sei a finalidade dos meses
e por isso canto no silêncio do paul
se chegam as primeiras aves
ou a inconstância dos dias
a tirania do sol se o verão se anuncia
as semanas tranquilas e a vida desperdiçada
reconheço o som ondulado da tua voz
e os enigmas que nela escondes
para atear enxofre em ruas e praças
no mundo breve cerzido pelo olhar
a esperança que torna suportável o dia
entra-se na floresta do passado por estreita porta
e ela alarga-se ao passarmos
batentes e ombreiras retiram-se para longe
e já não distinguimos a fronteira
o tempo é um mar indiviso
esforçados navegadores cravam-lhe as mãos
em busca de vento favorável ou porto de abrigo
era o tempo em que aos domingos havia missa
e ficávamos especados à porta
vendo passar as pobres eurídices
jovens sombras tão mortas de cansaço
para nenhuma fui um lesto orfeu
e os seus nomes estão esquecidos no mausoléu
onde habitavam nos dias de semana
para ao domingo ressuscitarem na casa de deus
quando chega setembro e o tempo das vindimas
ouvem-se os primeiros compassos do outono
e aguarda-se que se desvaneça a exaltação do verão
tomada pela penumbra e a promessa de chuva
flávio filóstrato inventou a vida de apolónio de tiana
e encheu-a de milagres e passes de mágica
um traço de luz nos dias adoecidos do império
e ainda hoje há quem sonhe com o taumaturgo
e se entregue a rigorosa dieta de ervas e cardos
os restos que ficam da tardia colheita das romãs
não aportaremos na ilha caminhando na floresta
o saco onde tudo cabe é cada vez mais leve
e as recordações com que parti cresceram
e tão grandes se tornaram que as deixei ao vento
esperando que a rotação da terra as traga
para esta casa onde contenho o fôlego
e aguardo em silêncio o solstício de inverno