Van Gogh - O bom samaritano (1890)
E, respondendo Jesus, disse:
Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os
quais o despojaram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. E,
ocasionalmente descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de
largo. E de igual modo também um levita, chegando àquele lugar, e, vendo-o,
passou de largo. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e,
vendo-o, moveu-se de íntima compaixão; E, aproximando-se, atou-lhe as feridas,
deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para
uma estalagem, e cuidou dele; E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e
deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu
to pagarei quando voltar. Qual, pois, destes três te parece que foi o próximo
daquele que caiu nas mãos dos salteadores? (Lucas 10:30-36)
Ao ler o texto de Lucas poderemos pensar que estamos perante uma ética
da compaixão. Isso, contudo, será uma visão demasiado exígua. A compaixão
evidenciada é o resultado de uma aproximação. O que significa isto? Significa,
antes de mais, que o próximo é o resultado de uma decisão do nosso
livre-arbítrio. E essa decisão provém da escolha entre aproximar-se ou não do
outro. Em segundo lugar, o próximo é uma construção gerada pelo acto de
aproximação, de me tornar próximo. O próximo não é um conceito abstracto
proveniente da razão teórica, mas o produto de uma acção, de uma praxis.
Perante interpelação de uma situação podemos fazer daquele que nos interpela um
próximo ou tomá-lo como um estranho de que nos afastamos.
Só a partir desta tensão entre aproximação e afastamento,
compreenderemos a compaixão. Literalmente, compaixão significa sofrimento
partilhado. A partilha da dor só se torna possível pela decisão de aproximação.
Por outro lado, a partilha da dor não é um mero eflúvio sentimental. Pelo
contrário, a compaixão traduz-se num conjunto de actos com resultados práticos.
Decisão, acção, resultados práticos, tudo isso permite, a partir do par
aproximação - compaixão, recolocar o chamado amor cristão no seu devido lugar.
Contrariamente àquilo que resulta de muitas práticas e prédicas religiosas, a caritas
não é uma exalação de afectos, não é uma litania delicodoce de banalidades
beatas misturada com sorrisos e lágrimas.
Ela é o resultado de um ethos
que ultrapassa o da amizade segundo Aristóteles. Na terceira classe de amizade,
a amizade segundo a virtude, a mais importante para o filósofo grego, esta só
se pode estabelecer entre homens que são “bons e semelhantes na virtude, pois
tais pessoas desejam o bem um ao outro de modo idêntico, e são bons em si
mesmos.” Ora a caritas implica que o homem se aproxime do outro sem saber qual
a virtude deste. Não é porque dois homens são bons e virtuosos que se tornam
amigos, mas porque um se aproxima do outro e exerce praticamente a virtude da
amizade ou a caritas que uma amizade se pode constituir, pois este
exercício de aproximação compassiva convoca, mas não exige, no outro o
exercício da reciprocidade. A bondade, deste ponto de vista, não é uma
qualidade a priori dos indivíduos mas um exercício contínuo de aproximação ao
outro.