Martin Johnson Heade - Approaching Thunderstorm (1859)
353. TRAGO O POEMA PARA O MEIO DA RUA
Trago o
poema para o meio da rua,
traço com
ele um lastro de sangue e vinagre,
visto-o de
impurezas que a vida me dá
e deixo-o,
feliz, rebolar-se na lama,
rastejar
sobre pedras e cardos,
para se
levantar, um uivo na madrugada.
Não pensem
que traz um programa, um mundo,
a licença
que vos liberta de ir à vida.
Não pensem
que vos dispensa do suor
ou que
derrama lágrimas nos vossos olhos.
Não pensem
que é a voz de Deus ou do profeta,
a súbita
anunciação do paraíso reencontrado.
São apenas
palavras sujas roladas na terra,
atiradas à
cabeça dos incautos,
uma onda de
vento azul nascida no oceano,
ínfimas
estrelas cadentes que riscam
a noite, o
dia, o ritmo das mãos
perdidas num
corpo sedento aberto ao luar.
O poema que
desce pela rua é uma víscera,
as sílabas
decompostas e a gramática em putrefacção,
uma recusa
de água pura e de amor sublime,
a jangada
vazia perdida na vastidão do mar.
Por vezes, o
poema canta na fímbria da tarde,
uma promessa,
uma alegria, a dor da solidão.
Palavras, quimeras
na pérgula do quintal,
balas de
borracha e gás lacrimogéneo lançados
sobre uma
multidão de ervas e cactos,
testamentos
antigos que prescrevem
o eterno
dever de amar a traição,
o exercício
de morrer às mãos de quem nos ama.
O poema
passeia solitário na avenida vazia,
cobre-se na
sombra das velhas árvores
tracejadas
pelo infalível micróbio da morte.
Cresce depois sob a
luz de um sol sem clemência,
eleva-se,
torna-se no céu a mais negra nuvem
e cai como
pedra e fogo sobre o chão da rua.