João Queiroz - Sem título (2005)
290. O FILAMENTO INCANDESCENTE DA LÂMPADA QUEBROU-SE
o filamento
incandescente da lâmpada quebrou-se
e sobre o
mundo vieram densas trevas
um segredo
marítimo trémulo como uma quimera infantil
o antigo exercício
de obscuras profecias
de onde vem
o pão e o trigo e a semente e a água
e a terra e
o que a terra traz em seu seio
e as
palavras que nela habitam e são enigma
pego no
mistério da palavra e desfaço-o em sílabas
e cada sílaba
abre-se em ínfimos átomos
que se
decompõem em partículas
pura energia
e nela habita o latir do cão
o ronco de um
motor no escuro dos campos
a tua mão
abandonada ao vento
o pé da
videira brota do pó ensanguentado
ergue uma
promessa de vinho à tua mesa
desenha uma aritmética
silenciosa
onde mãos
sorrateiros se inclinam para os cachos
e nos
lagares há um cheiro a mosto
à sombra
deixada por cristo na última ceia
o grito de
guerra do batalhão conduzido para morte
pego num
verso e deixo-o morrer
olho o
cadáver hirto e preso na lividez
e sonho no
poema um cemitério
as campas
ordenadas segundo uma funesta geometria
e vendo-se
ao longe eternos ciprestes
sombreando campas
ávidas de poetas
o ódio
visceral semeia terraços de papoilas
ali crescerá
a cidade sobre a indiferença do olhar
as
autoridades ordenarão o espaço
tracejarão
ruas e praças a promessa da morte
e no centro
haverá uma festa
diónisos
dormirá sob o olhar radiante de apolo
não há quem
cante nas ruas desertas
o orvalho
secou nas rosas abertas
e os
passeios escondem o suado arfar da terra
despes-te e
não encontras o corpo
julho aqueceu-o
e tomou-o por dentro
dilatou-lhe
as células levedadas pelo desejo
ergueu-as e cresceram
para o céu
eram nuvens
incandescentes
segredos
trémulos as lâmpadas de água
sobre a
cidade o campo choveu