João Queiroz - Sem título (?) (2008)
286. OS DIAS DE CALOR TRAZEM FRIAS NOITES
os dias de calor trazem noites frias
e o escaldante desejo que me habita arrefece
torna-se nocturno e canta monstruoso sobre a terra
canta uma canção dadivosa e sanguínea
que se abre nas pradarias da noite
para cavalgar sob o império do vento
as palavras que terias a dizer
essa declaração tão completa de inocência
são estrelas cadentes sobre as águas do mar
um assombro e uma pegada inscrita na rocha
o calcário ressuscitado para a vida
pelo exercício íntimo da memória
havia uma carvoaria mais acima
e as casas destelhadas pelo temporal vibravam
tensas cordas a unir o céu e a terra
fascínio primitivo oculto pelos cortinados de damasco
ervas e restos de tijolos juncavam o chão
alguns gatos ao sol de fevereiro
estou cansado do teu corpo
do ritmo da carne a balançar nas ondas do mar
abre a tua noite com o tacto delicado da desolação
e escreve o nome no escuro pensamento que te aguarda
em sossego deixa vibrar a corda do rumor
uma sombra de fogo ilumina as trevas
ouves já o cântico da nova inocência
o bronze dos sinos anuncia-a
antes que o galo cante três vezes
o poema devorado ergue-se na penumbra
e a fronteira recolhe-se na frágil gramática do amor