sábado, 7 de julho de 2012

Poemas do Viandante (292)

João Queiroz - Sem título (?)

292. INCLINO O OLHAR PARA A MONTANHA

inclino o olhar para a montanha
e aspiro o ar frio da tarde
faço das pedras gruta
e arvoro a casa
onde te aguardo ao anoitecer

não pertenço a este tempo
e os lugares que me foram dados
esqueço-os mal chega o outono

sento-me e enumero as espécies
amieiros bétulas e sobreiros
o carvalho e o choupo
cerejeiras e freixos
adormeço entre folhas e ramos
e um sonho vagaroso arde
no desvão da memória

aproximo-me da infância
desço ao poço fundo
e encontro na água fria
a luz trémula do teu olhar

estou nu e escondo-me no jardim
a tua presença frondosa
espero-a na sombra
desejo-a na hora
em que cansada se vá

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Poemas do Viandante (291)

João Queiroz - Sem título (?)

291. UM PORTO EM RUÍNAS DEBRUÇADO SOBRE O MAR

um porto em ruínas debruçado sobre o mar
batido pelo sal furioso das águas
iam e vinham e voltavam irascíveis
atiravam-se violentas sobre a pedra
e rosnavam no seu hálito marinho
uivavam se a rocha se erguia e resistia
e tornavam sempre e sempre
movidas pelo frio do vento
e um desejo de vingança inscrito nas ondas

uma fotografia de família lembrava a tempestade
um rasto de árvores arrancadas e raízes ao sol
o silêncio das palavras por dentro da fúria
tudo isso fotografado de longe
agora impresso em papel brilhante
o desespero de guardar na memória o imemorável
a hora em que o perigo se inclina sobre nós
e uma ave de veludo lembra o anjo da morte

se clareia sobre a cidade
apagam as luzes e deixam que o dia venha
com o seu cortejo de ofícios
o sólido argumento da dor iluminada
a pressa esquiva da urgência fatal
as ruas crescem de pessoas e de passos
fantasmas especados sob o império do sol
candelabro de sete braços
a impenitência de dormir pelos jardins

o trigo joeirado é agora pão
e sento-me para transformar o mundo
incendiar os castelos e vilas fronteiriças
abrir rombos  nas linhas inimigas
paciente espero pela audácia da noite
enquanto escrevo uma carta de amor
sob o véu vermelho da distância
um copo de vinho e pão sobre a mesa

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Poemas do Viandante (290)

João Queiroz - Sem título (2005)

290. O FILAMENTO INCANDESCENTE DA LÂMPADA QUEBROU-SE

o filamento incandescente da lâmpada quebrou-se
e sobre o mundo vieram densas trevas
um segredo marítimo trémulo como uma quimera infantil
o antigo exercício de obscuras profecias

de onde vem o pão e o trigo e a semente e a água
e a terra e o que a terra traz em seu seio
e as palavras que nela habitam e são enigma
pego no mistério da palavra e desfaço-o em sílabas
e cada sílaba abre-se em ínfimos átomos
que se decompõem em partículas
pura energia e nela habita o latir do cão
o ronco de um motor no escuro dos campos
a tua mão abandonada ao vento

o pé da videira brota do pó ensanguentado
ergue uma promessa de vinho à tua mesa
desenha uma aritmética silenciosa
onde mãos sorrateiros se inclinam para os cachos
e nos lagares há um cheiro a mosto
à sombra deixada por cristo na última ceia
o grito de guerra do batalhão conduzido para morte

pego num verso e deixo-o morrer 
olho o cadáver hirto e preso na lividez
e sonho no poema um cemitério
as campas ordenadas segundo uma funesta geometria
e vendo-se ao longe eternos ciprestes
sombreando campas ávidas de poetas

o ódio visceral semeia terraços de papoilas
ali crescerá a cidade sobre a indiferença do olhar
as autoridades ordenarão o espaço
tracejarão ruas e praças a promessa da morte
e no centro haverá uma festa
diónisos dormirá sob o olhar radiante de apolo

não há quem cante nas ruas desertas
o orvalho secou nas rosas abertas
e os passeios escondem o suado arfar da terra

despes-te e não encontras o corpo
julho aqueceu-o e tomou-o por dentro
dilatou-lhe as células levedadas pelo desejo
ergueu-as e cresceram para o céu
eram nuvens incandescentes
segredos trémulos as lâmpadas de água

sobre a cidade o campo choveu

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Poemas do Viandante (289)

João Queiroz - Sem título (?) (1998)

289. CONDUZO O BARCO PELO DESABRIGADO DESERTO

conduzo o barco pelo desabrigado deserto
e procuro a casa onde a eternidade se demora
pois a peste grassa pela cidade 
e ninguém pode entrar ou sair
desse círculo de fogo que protege a doença
evita-lhe a contaminação dos homens
o peso insuportável das orações

as areias batidas de sol contêm um desejo
água que se perde pela fenda aberta
cada nome que a boca pronuncia ao anoitecer
os gestos com que encerravas as trevas
e desenhavas a planície lisa da pele
sarcófago que guarda os restos do amor

de coração contrito e mão arrependida
lanço pétalas sobre o andor vazio
e aguardo o perdão pela violência das palavras
pelo tecido quente das omissões

quem habita o desabitado deserto
sabe escutar a seiva dos cactos
e domar cada demónio embriagado
que a noite amamenta no seio escuro
seio de estrelas perdidas na galáxia
a que deram o nome de um santo
pois todos os santos têm um caminho
- estrada dura e plena de abominação -
e transportam um odor de flores sobre a varanda

ali escutam despidos a voz de deus
entre folhas secas e um rasto de bolor

terça-feira, 3 de julho de 2012

Poemas do Viandante (288)

João Queiroz - Sem título (2008/9)

288. VENHO DO TEMPO AVARO DA POBREZA

venho do tempo avaro da pobreza
dos dias em que a míngua descia sobre as cabeças
entrava nas casas para traçar o vazio
uma onda fria de ausência
o medo desmedido da eternidade

se havia um excesso de sentimento não o sei
apenas a desolação crescia
desenhava uma angústia febril nas paredes
e a melancolia segmentava-se
um rasto de carvão e jornais rasgados
os homens que passavam de bicicleta

estou sentado ao vento da noite
e a serra d’aire brilha ao longe
um vulto negro e incerto
a promessa de abandono e limpidez
no rosto sofrido com que amavas os dias

recupero a tua memória perdida
eram os dias da grande guerra
e os soldados marchavam incautos
presos a um destino surdo
à ração esquiva da morte em combate

uma paliçada de canas dividia o mundo
e um génio falava do outro lado
a almotolia do azeite
e as primeiras flores do coração

nuvens de poeira e restos de palha
um afogado perdido nas águas do tejo
a primeira morfologia das constelações
sobre tudo isso veio o esquecimento
e traçou um plano de combate
armadilhou a terra bravia da memória
e roubou ao inimigo cada recordação

o talento da crueldade nasce nessa moradia
é um exercício lento de combustão
uma suspeita nunca confirmada de amargura
as mãos sujas pelo crime prosperam na madrugada
são brancas e trazem na lividez a faca
com que cortam o fio que te liga à vida

uma ave voa no tumulto dos céus
estrelas solitárias dormem em alvoroço
e na terra ouvem-se os primeiros trovões
a descarga eléctrica na torre da igreja

qual seria o teu ofício ainda não o sei
recordo-me que vinhas de longe
e sentavas-te ao entardecer
para contar essas estranhas histórias
que me povoam a infância
a terra coberta de erva canária
os primeiros regatos trazidos pela invernia

sobre o presépio um céu azul e estrelado
e nunca mais houve natal que não fosse esse natal
um deus pequeno e sujo entre palhas
o rumor de gente a entrar pela porta
e um anjo sentado no musgo
apascentava breves rebanhos perdidos na terra

dobrado o cabo da boa esperança
e as tormentas domadas pela arte de navegar
espero pela manhã com o rosto preso na almofada
e o barulho das parras batidas pelo vento
o corpo a arder no desejo do teu

desenho um mapa para me orientar
e deixo sinais de obediência
ajoelho-me silencioso perante o altar
e espero que deus fale
e traga ao meu coração o primitivo ardor
a incandescência com que te abria o corpo
e sentia em cada célula
o odor suave do teu sangue de fêmea
a tecelagem primitiva com que me envolvias
no círculo desenhado pelas ancas
a música que crescia no palco
um incêndio na seiva das árvores
o grito estrangulado no peito
quando dizias fala para mim
ainda tenho a graça da juventude
o sexo molhado à espera do teu
na fímbria onde o desejo se abre
e se abate como uma nuvem negra
sobre os telhados de zinco da cidade

venho do tempo avaro em que amava a pobreza
os dias em que encostado ao poço
comia laranjas se era delas o tempo
e tudo era a simplicidade de ser
pequenas promessas levedadas em segredo
o rasto de poeira antes da cidade

levo no bolso a penúria desses dias
e amo-a na pureza com que ela me devolvia
cada coisa que eu dava a quem a pedia

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Poemas do Viandante (287)

João Queiroz - Sem título (?) (2008)

287. ESTE NÃO É O CAMINHO PARA A ILHA

este não é o caminho para a ilha
falta-lhe o mar revolto e nunca vindimado
falta-lhe o murmúrio da lua reflectido nas águas
a incerteza dos remos nas mãos do remador

não sei a finalidade dos meses
e por isso canto no silêncio do paul
se chegam as primeiras aves 
ou a inconstância dos dias 
a tirania do sol se o verão se anuncia
as semanas tranquilas e a vida desperdiçada

reconheço o som ondulado da tua voz
e os enigmas que nela escondes
para atear enxofre em ruas e praças
no mundo breve cerzido pelo olhar
a esperança que torna suportável o dia

entra-se na floresta do passado por estreita porta
e ela alarga-se ao passarmos
batentes e ombreiras retiram-se para longe
e já não distinguimos a fronteira
o tempo é um mar indiviso
esforçados navegadores cravam-lhe as mãos
em busca de vento favorável ou porto de abrigo

era o tempo em que aos domingos havia missa
e ficávamos especados à porta
vendo passar as pobres eurídices
jovens sombras tão mortas de cansaço
para nenhuma fui um lesto orfeu
e os seus nomes estão esquecidos no mausoléu
onde habitavam nos dias de semana
para ao domingo ressuscitarem na casa de deus

quando chega setembro e o tempo das vindimas
ouvem-se os primeiros compassos do outono
e aguarda-se que se desvaneça  a exaltação do verão
tomada pela penumbra e a promessa de chuva

flávio filóstrato inventou a vida de apolónio de tiana
e encheu-a de milagres e passes de mágica
um traço de luz nos dias adoecidos do império
e ainda hoje há quem sonhe com o taumaturgo
e se entregue a rigorosa dieta de ervas e cardos
os restos que ficam da tardia colheita das romãs

não aportaremos na ilha caminhando na floresta
o saco onde tudo cabe é cada vez mais leve
e as recordações com que parti cresceram
e tão grandes se tornaram que as deixei ao vento
esperando que a rotação da terra as traga
para esta casa onde contenho o fôlego
e aguardo em silêncio o solstício de inverno

domingo, 1 de julho de 2012

Poemas do Viandante (286)

João Queiroz - Sem título (?) (2008)

286. OS DIAS DE CALOR TRAZEM FRIAS NOITES

os dias de calor trazem noites frias
e o escaldante desejo que me habita arrefece
torna-se nocturno e canta monstruoso sobre a terra
canta uma canção dadivosa e sanguínea
que se abre nas pradarias da noite
para cavalgar sob o império do vento

as palavras que terias a dizer
essa declaração tão completa de inocência
são estrelas cadentes sobre as águas do mar
um assombro e uma pegada inscrita na rocha
o calcário ressuscitado para a vida
pelo exercício íntimo da memória

havia uma carvoaria mais acima
e as casas destelhadas pelo temporal vibravam
tensas cordas a unir o céu e a terra
fascínio primitivo oculto pelos cortinados de damasco
ervas e restos de tijolos juncavam o chão
alguns gatos ao sol de fevereiro

estou cansado do teu corpo
do ritmo da carne a balançar nas ondas do mar

abre a tua noite com o tacto delicado da desolação
e escreve o nome no escuro pensamento que te aguarda
em sossego deixa vibrar a corda do rumor
uma sombra de fogo ilumina as trevas
ouves já o cântico da nova inocência
o bronze dos sinos anuncia-a
antes que o galo cante três vezes

o poema devorado ergue-se na penumbra
e a fronteira recolhe-se na frágil gramática do amor

sábado, 30 de junho de 2012

Poemas do Viandante (285)

João Queiroz - Sem título (?) (1998)

285. EIS A ILHA MISTERIOSA ONDE ESCONDES O TESOURO

eis a ilha misteriosa onde escondes o tesouro
ao atravessá-la um nó apodera-se da garganta
abre-se terrível o universo em expansão
galáxias e desejos e poeiras cósmicas
tudo conflui para o centro da pequena vila
uma terra muralhada destruída pelo terramoto
as águas plácidas do rio sob a inclemência de julho

pego nas mãos das mulheres que amei
e sigo a sombra na calçada polida pelos anos
falam sobre a imprecisão das noites
as viagens feitas na leveza daqueles dias
a memória sepultada num hotel à beira da estrada

ela pensava no velho gato de schrödinger
enquanto compunha os jarros selvagens
a lembrança das flores trazidas nos braços
o prazer de ver a lua na janela sobre o lago
um coração de mulher regido pelo princípio de incerteza
tomado pelo exercício matinal do cálculo
a descoberta de uma inequação para inferir
a diferença entre os homens que amara

os avisos colados na porta eram um chamariz
todos se juntavam ali para os ler
e recitavam-nos como se fossem poemas
ou uma oração litúrgica na missa dominical
assim eram amados os editais
mais que todos o de abertura da época de caça
esse passeio tranquilo na memória longínqua

um violino expandia-se sobre a casa
começara um breve gemido no centro da terra
e lentamente as ondas cresceram
tomaram conta da desolação dos quartos
ocuparam as paredes e saíram pelas janelas
o mundo tornara-se uma onda sonora gigantesca
um tsunami a varrer a orla marítima
a noite que cobre de poeira a escuridão da lua
um fogo vindo da areia húmida e vazia

o odor de seda fresca vem dos teus braços
a cintilação da água no regaço azul das mãos

recomeço as contagens e as folhas mortas crescem
são uma ameaça dobrada pelos dedos
o eco de uma súplica desesperada no outono
não vim para medir a terra e construir um padrão
cavalgo os tumultos que o dia traz
e espero o matagal da noite
para compor um rosário de trevas

quero lá saber da batalha de waterloo
quero lá saber de napoleão e de wellington
escreverei apenas sobre o silêncio da montanha
dessa casa de pedra e colmo que me espera
as pernas despidas da mulher que amarei

quero lá saber da batalha de el alamein
quero lá saber de rommel e de montgomery
esperarei por ti no fundo do quintal
que venhas pura e sem biografia
página branca para a mentira do meu amor

fazia girar o pião sobre o cimento
enquanto a mãe cauterizava  a ferida
aquela que nasce selvagem no centro das células
inunda o corpo de frias respirações
e traz um grito o troar do cláxon  
a viagem vai começar
sem mapa nem bússola ou meta que te aguarde

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Poemas do Viandante (284)

João Queiroz - Sem título (?)

284. DAQUILO QUE SE SABIA APENAS A CERTEZA DO GRITO

daquilo que se sabia apenas a certeza do grito
um risco tracejado no mármore das encostas
o gesto com que se sentava ao chegar a casa
e esperava que a noite fechasse portas e janelas
para que o vento marítimo sossegasse nas ruas

algumas vielas reflectiam constelações 

e um saber ameaçador inscrevia-se nos recantos
onde sem desespero alguém discutia os equinócios
ou analisava a ortodoxia do celibato à luz dos concílios

era todo um saber feito de revoluções

uma epistemologia febril pendia das casas
traçava mapas em plantas inorgânicas
exaustas pelo roubo matinal do pólen

estranhos rictos inundavam as faces dos transeuntes

gente perdida e sem império pela baixa de lisboa
um pregão ouvido na distância do tempo
o exercício de juntar num aqui passado e presente
a linha laminada de onde parte o futuro

depois de aldrin e de armstrong 
a lua nunca mais foi a mesma
comentou e sentou-se a olhar os céus à espera de chuva
ou de um pássaro nocturno que trouxesse notícias

para lá da montanha tudo é obscuridade e segredo
e se as aves não regressarem pela noite 
dos desvarios do mundo pouco saberemos

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Poemas do Viandante (283)

João Queiroz - Sem título (?)

283. VEJO A IMAGEM DO POEMA SOBRE A ÁGUA

vejo a imagem do poema sobre a água
o doloroso exercício de conjugar as parcelas do mundo
recolhê-las na concha de algum molusco
e fazê-las sair para o palco sob a ordem ali criada

o lodo das águas escorria pela areia
e se caminhávamos de mãos dadas pelas rochas
avistávamos a limpidez das casas ao longe
as chaminés onde corria o fumo da incerteza
os dias fustigados pelo vento a semeiam

recolho-me numa dessas casas
para ouvir o bater do mar na praia e sonhar
um exercício de melancolia de quem envelhece
sente o corpo preso aos desacertos do tempo
as articulações esquecidas da antiga mobilidade
agora arame farpado doente pelo óxido de ferro
vindo na inclemência do uso ou na acidez das chuvas

sonho deitado na areia um corpo de mulher
a incerteza da pele sob a inspecção dos dedos
o murmúrio da voz na quietação da manhã

não lhe vejo a idade
apenas amo esse corpo na fragrância de mulher
ele a traz consigo ao deitar-se e deposita-a em mim
e espera o momento onde corro a cortina
e num passo de dança o tomo de assalto

as muralhas há muito caídas
espreitam ao longe a ondulação daqueles seios
o torpor voraz com que se entregam
folhas mortas de outono
num tempo esquecido de vindimas

poiso os óculos e descanso no húmus da terra
o livro entreaberto descai
mistura com o pó as folhas mortas e algumas formigas
enquanto a cidade rumoreja ao fundo
zumbe na distância monstruosa com que se afasta
escondendo o pensamento que a devora
deixando casas e carros carcomidos pelas ruas
os jardins secos e ávidos de amantes
o tribunal fechado e a comarca suspensa

oiço um longo elogio às tempestades matinais
mas recolho-me na fímbria da água
e deixo de lado a contabilidade dos frutos
as pêras e maçãs perdidas a laranjeira seca
os alvores do mundo que ardem no fundo da minha alma

sentado e solene sou um gato a cismar no poema
as palavras entreabertas dão para o teu quarto
e pé ante pé aproximo-me febril e cheio de música
e entro-te no corpo para anunciar a madrugada

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Poemas do Viandante (282)

João Queiroz - Sem título (?) 

282. OS CAVALOS MARÍTIMOS SEGUIAM À DESFILADA

os cavalos marítimos seguiam à desfilada
abriam sulcos de fogo e ardósia na superfície do mar
sob a paleta inconstante de um céu amargo e sedicioso
um céu sagrado pelas nuvens e um rasto de tinta branca
com que pintavas a madeira do portão que abria para o quintal
algumas roseiras floriam na lembrança da tarde
e uma flecha de cetim desenhava um rombo no coração

a desordem crescia sobre os dias e os anos
fazia de cada coisa uma recordação breve ou um rasto de luz
à espera da crueldade presa nas mãos
a velha malícia de devolver à vida o que a vida rejeitara

a casa de meus pais era um aquário branco
um santuário de terra fina e flores plácidas
o assombrado desejo de ver a família crescer e multiplicar-se
pratos sobre a mesa e o mar carbonizado ao fundo
aspidistras e sardinheiras à volta do altar
os vidros partidos de algum copo a tilintar no chão
alguém batia à porta para afugentar o medo das águas
o temor reverencial pela brutalidade do destino
a ânsia de ver as rochas sobre as intempéries vindas do oceano

tenho um ofício marítimo herdado de ninguém
conto barcos abandonados na baía
anoto números e cascos velhos desejosos de pintura
e oiço o rugir dos couraçados a antecipar o mês da guerra
colinas marítimas que se aproximam
suspendem o tempo e negam os alvores da madrugada

retido o fôlego o corpo baloiça na água
ouvem-se suspiros e gritos
o trabalhar longínquo das gruas sobre o porto
o rosnar das gaivotas se chega uma traineira
um relâmpago de silêncio crepita pelas águas
desenha o galope aceso do cavalo
e rasga as paredes de todas as casas que habitei
abre-as para o segredo de uma iluminação
para as breves orações que antecediam a páscoa
e o feliz acaso do meu corpo ressuscitar no segredo do teu

terça-feira, 26 de junho de 2012

Poemas do Viandante (281)

João Queiroz - Sem título (2005)

281. HAVIA RESTOS DE MINÉRIO PELA SUPERFÍCIE

havia restos de minério pela superfície
sombras soltas e uma vegetação rasteira
o céu acobreado e de longínqua reverberação adoecia
supurava nuvens de cobalto e enxofre
uma promessa de tempestade vinda do norte
sob o silêncio invernoso da tua respiração

naqueles dias entregavas-te às enumerações
de cada coisa fazias uma categoria
e o mundo era então fragmento e restolho
uma impossibilidade que se desfazia no calor da mão

se alguém soluçava ou um animal uivava
abriam-se caminhos de areia e pedra
restos de vegetação seca e sem préstimo

de casa avistava o cume
desenhava trilhos na memória
e assim construía paisagens sempre novas
impregnadas de árvores raquíticas
e sonhava naquele horizonte os cavalos de aquiles
perdidos num devaneio sem razão
ou o passeio dos filósofos na encosta sobre o neckar
onde holderlin o poeta inventou heidelberg

escrevia então longas cartas de amor
não porque amasse mas porque a vista empalideceu
perante a inclemência da paisagem
a encosta íngreme da montanha
e o céu repleto de ameaças furtivas
o odor a terebentina no patamar

piores eram os dias de junho
quando a primavera declinava e morria no verão
naquele calor que desperta o desejo da morte
ao afrouxar a vigilância das células
e infestar cada lugar com o suor das casas
a ameaça de orquídeas envenenadas pelos teus dedos

chegou a hora de subir a terrível encosta
o que nela me espera sabe-o o coração
ainda que uma jura secreta o impeça de o dizer
e assim fico na incerteza inconsolável
na ânsia de descobrir se o mal ou o bem são o meu lote

pego no saco vazio e tomo o caminho
desenhei-o nos dias quentes em que o verão me adolescia

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Poemas do Viandante (280)

João Queiroz - Sem título (2000)

280. FENDIDAS AS MURALHAS ABRE-SE UM CAMINHO DE LODO

fendidas as muralhas abre-se um caminho de lodo
e caminhantes mais afoitos julgam antever o peloponeso
confiantes no azul oceânico que se desdobra ao olhar
não sabem que perigo a vista encerra
nem da avidez da terra trazem ideia fundada
julgam apenas ouvir o canto de alguma sereia
e sonham os braços quentes molhados de água fria

o mar cansou-se de marinheiros
deixou os barcos vazios a vogar sem destino
as velas quebradas e os porões sem préstimo
bandos de gaivotas recordam-me a infância
trazem-me um grito soterrado no peito
o prenúncio dos grandes incêndios se o verão aquece

sento-me e digo isto é a porta da enseada e espero
espero a tua vinda ao cair da tarde
espero na esperança de entardecer ao teu lado
e enumero as bem-aventuranças prometidas

a morte não tem regra no seu operar
e se alguma contabilidade a rege não a conheço
ela vem e cobre com o seu véu o solitário perdido
dá-lhe por companhia o mais jovial dos transeuntes
estabelece aliança entre famílias inimigas
e rapta subitamente o herdeiro de uma longa estirpe

por isso todos a veneramos no segredo do coração
a ela erguemos altares de pedra e aço
e cobrimos o mar de náufragos exaustos
ou suspendemos a mecânica solar para que ela chegue
quando tarde a tarde anoitecer

tudo em mim freme nesta noite de azeviche
e o meu sexo duro entra no teu corpo
na infalível certeza da tua compaixão
empunho a lira e dedilho-te pobre eurídice
quero-te sob o vento marítimo ou nas areias azuis 
conto-te os dedos como se fossem estrelas
e construo constelações na incerteza dessas mãos

ofereces-me o lodo do caminho para a paisagem oceânica
para depois me dizeres eu sou a tua morte
e vivo no teu coração desde que foste concebido
guio cada um dos teus desejos sob a tempestade da vida
e faço-te cantar os passos que dás no segredo do mundo
sou a tua vida e o teu mundo sou a luz que te alumia a noite
e as trevas que te fazem suportar o meio-dia
eu sou a que te espera quando te deitas com outra
e a outra com que te deitas ainda sou eu
pois além de mim nada há no mundo
apenas um véu de ilusão criado pela minha arte
uma armadilha disfarçada de labareda
a canção de amor que nenhum outono suportará

esquece a muralha aberta sobre o oceano
são doces as pradarias onde apascento o meu rebanho
sou a mais suave das pastoras
ofereço-te o seio e o sexo e o sangue
dou-te a beber o mênstruo
e os meus lábios embalar-te-ão 
para que sonâmbulo me digas meu amor
enquanto se ouve o suave balir das ovelhas
e em mim encontres o aprisco onde a eternidade te recolhe

domingo, 24 de junho de 2012

Poemas do Viandante (279)

João Queiroz - Sem título (?) (2008)

279. NÃO ERA UM CAOS QUE NASCIA NO CENTRO DA FLORESTA

não era um caos que nascia no centro da floresta
nem um desejo de sangue puro e matinal
o teu corpo de mulher rolado no toldo destas mãos
velhas aspirações de homem solitário
sentado na orla da clareira
à espera de um pássaro ou do rosnar dos cães

se houvesse um espelho na água fria
ainda pensaria em narciso
mas nada por aqui devolve imagem ou som
e as ninfas há muito que partiram
o peso das sombras fazia desabar sobre elas o medo
e o deus cuidadoso recolheu-as em lugar incerto

uma floresta púbere ensombrada pelo sol
uma floresta perto do céu tocada pelos anjos
uma floresta de grifos e anémonas cantada em silêncio
invento pela manhã cada árvore e a sua sombra
desenho ramos e ervas e a terra negra
o fecundo respirar da tua boca
se o corpo se abre no húmus do chão
e o feto do meu amor te infecta
te traz uma doença prolongada e sem esperança
um estado terminal feito de ramos secos
e um barulho de buzinas na estrada ao longe
rio de alcatrão a circundar a floresta
uma raia plástica sem barreiras ou guarda fronteiriço

a estação avança por dentro da sombra
rasga um caminho de terra para trazer as primeiras chuvas
e o homem entregue ao celibato espera 
em cada ruído o sobressalto dos teus passos
o desejo desse corpo virginal
o dia de aleluia inscrito em delfos

os que tracejam caminhos na terra hesitam
todos os cheiros que ali crepitam são-lhes estranhos
uma ameaça de animal selvagem 
uma garra fria e mortal
todas as lâminas que a natureza esconde
a pedra com que david matou golias

é um lugar sem cor nem destino
um manto de vida a esconder a dança da morte
ali poisa o asceta para inventar um deserto
ali estaca o filósofo e desenha uma academia
ali um concílio de poetas faz o elenco das heresias

não era um caos que nascia no centro da floresta
apenas a minha pobreza crescia na vida minguada
e o tempo espairecia na obscuridade
e deus seguia o seu caminho de penumbra
e o amor de uma mulher gritava dentro de mim
e o desespero do mundo era uma paisagem fria de betão
a memória rememorada ao chegar
a entrega do passaporte para nunca mais voltar