quinta-feira, 30 de abril de 2009

Escrevo da desolação

Escrevo do sítio da desolação, não da desolação do corpo ou da alma, mas da desolação do espírito perdido num deserto tão cheio de gente. Sento-me e observo e espero que venha a mim aquilo que terá de vir. Mas tudo me dispersa e me envia para o excesso. Febril, oiço as vozes que cantam a Primavera, que teima em não partir. Para que quererás tu, pobre viandante, o calor do Verão? Não sabes o que sofres quando a temperatura cresce e a sombra, como num prolongado meio-dia, desaparece? Ainda agora, passados todos estes anos, nada sabes. Ficas a rememorar passados, a contar futuros que nunca virão, a perderes-te desse súbito presente que, mal irrompe, a sombra o traga. Escrevo da desolação desse meu espírito tão incapaz de olhar o que há para ver.

Poemas do Viandante (1)

1. chegará maio

chegará  maio
e o seu desamparo

na mão um fruto
hasteado ao vento

a pressa cansada
de uma metáfora

o corpo que se rasga
e abre para o verão

Terra da alegria

Quantas vezes o silêncio prolongado nada mais é do que a sombra do ruído? Há quantos dias ou meses não venho aqui? Perdi-lhe o conto e nem quero ver a data da última coisa que deitei neste mar de cinza. Terei esquecido a caminhada? Como seria possível fazê-lo? Apenas a dissolução da vontade tem crescido e o escrever tornou-se penoso. Olho a noite travestida de néon e vejo o desespero dos faróis a relampejar na avenida. Pequena cidade a minha, tudo nela tolhe o caminho. Aqui não ha quem peregrine. Mas que sei eu do mistério que há nesses outros todos que tenho vindo a desconhecer? Caminham como eu, por certo, e eu andarei tão perdido quanto eles. Mas andar perdido não é o destino daquele que ainda não chegou à terra da alegria?

segunda-feira, 30 de junho de 2008

O lugar da sombra que cresce

Quase um mês de ausência, como se me tivesse esquecido de mim. Talvez a escrita ainda seja uma ilusão a que me agarro com medo da viagem. Não há viandante que não tema a viagem, mas a ausência da escrita não é indicador seguro de estar a caminho. Apenas o esquecimento e o desleixo cresceram, inundaram o jardim de ervas e a tudo se apegou um ar de abandono. Paro e volto ao lugar onde estava, não há um mês, mas àquele que era meu há muito: o lugar da sombra que cresce.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Um mar agitado

Retorno à escrita. Estes dias de ausência foram também tempos de dispersão e esquecimento. Talvez o meu coração seja frágil e a vontade que me move fraca. Se procuro o caminho, por que motivo o ardor se esvai e tudo se prende aos pequenos nadas que os dias trazem consigo? Mais uma vez descubro o quanto não dependo de mim e que, se quero pôr mão na minha existência, tudo parece soçobrar num mar agitado e destituído de sentido.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

O meu corpo

Uma tontura, uma espécie de volúpia a arrastar-me para o chão, um sentimento de estar desabrigado e impotente perante as forças que não controlo. Assim, de forma tão inopinada, um pequeno acontecimento físico não desencadeou apenas a preocupação com o que se está a passar, mostrou também os limites do homem. O próprio corpo é tão estranho que chega a parecer impossível dizer o meu corpo. Recolho-me em mim e não encontro casa alguma que seja a minha casa. Deixo-me e ir sabendo que nada sou e espero que Tu me ampares no caminho.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

O mar da eternidade

O tempo passa tão rapidamente entre os trabalhos que a vida traz, que parece nada já existir para além do tempo que passa. Pesados grilhões são o tributo ao ardil do relógio, obscura volúpia que nos suga para o interior vazio que o habita. Agora que cheguei aqui, peço ao silêncio redentor a carícia da solidão. Fecho os olhos e penso na luz que me habita, nessa palavra que proferiu o meu nome e me trouxe ao mundo. Esqueço-me do tempo e calo o coração ao mergulhar no mar a que, à falta de melhor, chamo eternidade.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Nas mãos da Providência

Há dias em que o coração é um lago vazio e o cérebro um punhado de terra amassada. O melhor seria então encontrar um espaço de solidão e silêncio, um lugar de esvaziamento da alma, de abandono de si, de entrega à Providência. Mas dizer isto é já um equívoco, pois o que poderá um pobre homem fazer a não ser entregar-se nas mãos da Providência?

segunda-feira, 26 de maio de 2008

A tentação

A tentação possui uma curiosa fenomenologia. Começa por ser um fruto da imaginação. Esta imagina um objecto desejável, confere-lhe uma tonalidade apetecível, instiga os instintos para esse fim, ao mesmo tempo que dissolve a vontade e torna a razão numa coisa nublada e incapaz de julgar. Por vezes, suspende mesmo a razão em nome do impulso que habita a faculdade de desejar. A imaginação é então uma rainha despótica de um reino sem fronteiras, soberana sempre desejosa de alargar os seus infinitos territórios. Mas será assim tão soberana essa imaginação? Quem desencadeia nela as imagens tentadoras?

domingo, 25 de maio de 2008

O cativeiro

O mundo é como a caverna de Platão. Dentro dele há apenas prisioneiros, mas prisioneiros de uma ilusão tenebrosa. Que ilusão será essa? É a ilusão que nos torna prisioneiros da imagem que de nós construímos. Somos então habitantes de uma dupla prisão. O mundo e o eu que se ata aos seus desejos e à avidez com que quer tomar para si o que não pertence a ninguém. Mas a libertação não significa uma fuga ao mundo, mas renúncia às suas próprias ilusões, à sua mesquinhez, à avidez que tudo coloniza. Liberto de si, aquele que peregrina nesta terra liberta-se também do mundo enquanto cativeiro.

sábado, 24 de maio de 2008

Do sentido da amizade

Passar o dia com pessoas amigas e desejar a sua presença sem que isso desvie o olhar da presença do inefável. Não será que o inefável está já nessa presença nimbada pela amizade ou pelo amor? Por vezes, procura-se a amizade como fuga a si e à sua realidade, como alienação, estranhamento e esquecimento. Mas a amizade é um dom que recebemos e a sua natureza simboliza uma outra amizade que funda todas as amizades humanas. Na amizade pensamos na igualdade dos amigos e no carácter gratuito dessa benquerença. Se transportamos essas ideias para a amizade com o absoluto, perceberemos de imediato essa estranha relação que absoluto e relativo podem entretecer. Mas o sal de todas as amizades só pode ser um: a lealdade. Talvez não exista nada mais perverso no mundo do que a deslealdade e a traição aos amigos.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Não chamo por Ti

Escuto a tarde a tombar no reino da noite, oiço o rumor dos Teus passos se caminho esquecido de mim e por Ti me deixo conduzir. Abro o coração, o sangue flui tranquilo, e um silêncio de neve rodeia-me delicado, suave, mesmo se é pelo rude mundo que caminho. Não chamo por Ti, pois a minha voz não te alcançaria se já não estivesses nesse lugar de onde por ti chamaria.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Um espaço vazio

Tornar-me um grão de areia, um nada, um espaço aberto e vazio, um espaço onde o que vem de fora e o que vem de dentro circulam sem restrições. Somos nós que afastamos Deus do mundo ao encerrarmos a débil fronteira que cada um é. Quanto mais cerrada for, maior a separação. Medito, por vezes, nas palavras heideggerianas sobre o afastamento de Deus. Mas Deus não se afastou. Está onde sempre esteve, no íntimo de cada um. O Homem é o sinal de Deus no mundo, mas se cada um dos homens fecha o sinal que é, um espectador distante pensará que Deus abandonou o mundo à sua sorte. A verdade, porém, é que o jardineiro esqueceu a sua missão e concentra agora tudo em si. O mundo que era para ele é agora um mundo que é seu, um mundo reduzido à mera propriedade e ao arbítrio do suposto proprietário. Mas se o proprietário se abandonar, se se abrir como espaço, Deus e o mundo reatarão de imediato a ligação e a sensação de derrelicção perderá o sentido.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

A negação de si

Negar-me a mim mesmo, negar as ilusões que sobre mim construo a cada hora que passa, negar o equívoco da minha importância. Mas como cumprir este programa, se todas as forças da natureza lutam com afinco para reforçar esse eu que devo negar? Não há nada mais humano que essa pequena palavra à qual atribuo todos os actos que pratico, os pensamentos que me ocorrem, as omissões que acontecem. Mais, a tarefa de negar-me ainda traz a prescrição de, nessa negação, não cair na abjecção pré-humana, no estado do animal incapaz de se identificar. Se penso, porém, no referente desse eu, se o começo a desmembrar pela análise, se lhe aplico o olho clínico, descubro que esse que diz eu é tão evanescente que o eu, essa impertinente partícula gramatical, parece ser-lhe a sua tábua de salvação, aquilo que na evanescência dá estabilidade. Negar-me a mim mesmo é perder a estabilidade. A negação de si implica então que se caminhe na instabilidade e na evanescência, que se mergulhe no fluxo da vida sem uma bóia. Onde, porém, irei buscar forças para essa caminhada?

terça-feira, 20 de maio de 2008

Via Crucis

De onde vem e para onde vai o homo viator, o viandante que percorre os caminhos do mundo? Se escutarmos a voz do cristianismo, o viandante vai de Adão para Adão. O mundo surge assim como uma longa peregrinatio de si para si mesmo. Como Ulisses, o viandante sai da aprazível Ítaca para a guerra de Tróia. De certa maneira, Ulisses é o homem caído, um Adão helénico, sendo a queda simbolizada pela saída da pátria para a multiplicidade do mundo, da qual a guerra é a metáfora mais acabada. Mas, como o filho pródigo, também Ulisses tem necessidade de retornar ao seu estado adâmico original e empreende a viagem de retorno, uma viagem cheia de armadilhas e perigos. Ulisses é então o peregrino que se perde na terra estrangeira até encontrar, com o beneplácito dos deuses, a graça, dir-se-á em linguagem cristã, o paraíso perdido. O viandante é ao mesmo tempo Adão e Ulisses, mas o Adão que é expulso do paraíso só retorna a ele como Cristo, o crucificado. A peregrinatio do viandante é a via crucis que o leva do primeiro ao segundo Adão. Os caminhos que percorre só podem então ter dois sentidos: ou conduzem ao engano, à ilusão e à delapidação de si, ou apontam para o paraíso de onde Adão e Ulisses foram, por uma necessidade imperiosa, postos fora. Mas saberá o viandante destrinçar um e outro? Quantas vezes não é o caminho do engano, da ilusão e da delapidação de si uma autêntica via crucis? Mas sabê-lo-á aquele que a está a trilhar?

segunda-feira, 19 de maio de 2008

A morte da vontade

Luto contra a inércia e a indolência. Sento-me e obrigo-me a escrever e a trabalhar. O corpo, porém, é arrastado por um espírito em devaneio e por uma sombra nebulosa que parece cair sobre o cérebro e invadir os braços e o peito. Há um desfalecimento da vontade, mas este desfalecer é tão físico que quase o posso tocar. Talvez agora perceba por que motivo a preguiça é um pecado mortal. Nela habita a morte da vontade, de qualquer vontade, boa ou má. Mas, se olho com mais atenção, surpreende-me que ela seja considerada um pecado, como uma má escolha do meu livre-arbítrio. Eu não quero a preguiça, a indolência, a inércia da vontade. Apenas as sofro e sofro dolorosamente como se me atingissem no mais fundo do meu ser e me destruíssem, lentamente e com determinação. Por vezes, a quantidade de força para vencer a inércia é tão grande que me desgasto só na mobilização da vontade. Na base da preguiça existe uma desordem no ser, como se os elementos estivessem desestruturados e para conduzir a vontade à acção fosse necessário um árduo trabalho de reconstrução. Ao fim de tantos anos, sei que sozinho jamais conseguirei triunfar sobre este desarranjo estrutural. Mas será que sei abrir-me àquilo que ainda há de saudável no fundo do meu ser? Sim, pois apesar das contínuas derrotas de uma vontade frágil, nunca, até hoje, deixei de ter esperança de que as coisas acabariam por ser de outra forma, embora não saiba como será essa outra forma.

domingo, 18 de maio de 2008

O corpo desejado

O desejo de um corpo é muitas vezes mais do que um desejo corporal, de satisfação dos sentidos, se é que esta expressão descreve seja o que for na paixão erótica. A imaginação trabalha sobre o corpo desejado e, se esse desejo nunca foi consumado, ela abre uma clareira onde tudo se ilumina. Desejo aquela pessoa, pressinto o seu corpo a chegar junto do meu, a sua na minha boca. Mas não é aqui que está a verdade desse desejo. Há qualquer coisa inapreensível que me faz querer aquela pessoa e não outras, ou não muitas das outras que existem. É esse “qualquer coisa” que contém um segredo e é nesse segredo que se inscreve o meu desejo. É um facto que desejo aquele corpo, aqueles lábios, desejo ter a minha mão sobre aquela pele, desejo fundir-me naquela pessoa e amá-la, desejo a perdição do sexo e o fulgor de um beijo, desejo que aquele corpo me solicite e se torne solícito à minha solicitação. Mas nada disso ainda tem sentido, nada disso é relevante, nada disse me mostra a essência do meu desejo que se manifesta no desejar daquela pessoa. Pressinto que, para além do corpo desejado e da fusão desses corpos no jogo do amor, há um espírito que se reconhece, talvez por breves instantes, noutro espírito e que, mais do que os corpos, são eles, esses estranhos habitantes das nossas pessoas, que se desejam e que, mais de que todo o resto, desejam fundir-se. Não são os corpos que se desejam, são os espíritos que se procuram e atraem através da espessura nebulosa dos corpos, esses santuários onde o espírito vive puro e sem mácula. Talvez não exista outro amor para além do platónico, talvez. Mas para que isso se torne compreensível, há que pôr de lado aquilo que popularmente se entende por amor platónico.

sábado, 17 de maio de 2008

Da dor e da compaixão

Como pode o drama dos outros tocar-nos se, a seus olhos, somos os culpados desse drama? Dito assim, ainda haveria lugar para considerar um sentimento de culpa na compaixão. Mas se somos culpados pelo mero facto de existirmos, como sentir remorsos por esse facto? Como é possível a compaixão quando se pressente no outro o desejo da nossa aniquilação? Talvez seja possível a compaixão. Mas temo que essa compaixão não seja mais do que a exibição de um sentimento inqualificável de superioridade. Ouve-se o outro, desesperado, a falar, escuta-se a angústia que o percorre, a derrota que o atormenta, derrota da qual somos, a seus olhos, culpados, embora não tenhamos jogado qualquer jogo, embora não tenhamos dado um passo nesse sentido. Enquanto se ouve e fala, o espírito interroga-se sobre como trabalhar naquela situação. Sobre o outro, ainda por cima, temos a vantagem de saber que tudo o que o atormenta é insignificante e que a causa daqueles tormentos apenas está na vaidade, num ego dilatado, em alguém que não é capaz de lidar com a derrota, se é que há uma derrota. Nada disto se lhe pode dizer, pois a verdade destas palavras seria sentida como mais uma exibição inqualificável de superioridade. Deixo-o falar, falar, acusar e continuar a falar. De um determinado ponto de vista, é um exercício infinito de humilhação. Sinto que a única compaixão possível é dar-lhe espaço, abrir o campo para que possa falar e enquanto o quiser fazer. Há ali uma dor sem sentido, mas pelo facto de o não ter não deixa de doer. Talvez a compaixão mais verdadeira seja deixar que o outro exiba a dor que o atormenta. A dificuldade, porém, é não alimentar qualquer expectativa sobre a nossa superioridade, como se essa expectativa não fosse exactamente igual a dor que consome aquele que fala.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

A tensão do acontecer

Uma noite mal dormida e cheia de peripécias rocambolescas, um dia vago e vazio, como se o espírito, confundindo-se com o corpo, precisasse de descanso. A tensão do acontecer prende em si o pensamento e este apossa-se de todo o ser, impõe-lhe os seus devaneios e inconsequências. Um dia entre a agitação da possessão pela corrente de consciência e um cansaço de quem precisa de dormir e há muito não o faz. Respiro fundo e anseio pela hora em que posso descansar.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

A matilha de cães

Se tudo em mim se silenciasse, o desejo, a vontade, o intelecto, a memória, talvez alguma coisa pudesse falar nesse silêncio. Mas como poderei calar a matilha de cães que me habita e não pára de ladrar? Se sinto um anseio pela quietude, logo os cães começam a rosnar e a latir e quanto mais os puxo para casa, mais forte se torna a sua voz e maior é o ímpeto com que me arrastam para a rua. Ladram agora em mim todos os cães que me habitam e no silêncio da tarde já não são eles que oiço, mas o lobo que ao uivar anuncia a noite que chega.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

O ego que ri e aquele que olha

Pegar num projecto e pô-lo em funcionamento. O espírito enche-se de vida, a vontade inclina-se para a acção, mas um perigo espreita no horizonte: até que ponto um novo projecto não será mais uma afirmação do meu ego, uma ilusão sobre a minha capacidade criadora, uma forma de me tomar por um pequeno deus? Não é um projecto uma forma de propriedade? Como desprender-me dele mantendo-me ao mesmo tempo firme na sua elaboração e execução? Gostaria de poder dizer: vou agir como se ele fosse uma dádiva gratuita e vou apreciá-lo como uma forma de realização daqueles a quem ele se destina. Mas como poderei acreditar neste jogo? Sinto as forças vitais do meu ser voltado para ele e mesmo que diga que ele não me pertence, o meu pequeno ego ri-se e sente-se confortado na pequena glória que já antevê. Talvez a única solução seja olhar com ironia benevolente as pretensões que esse ego apresenta e fazer o que há a fazer. Mas há aqui um enigma: quem será esse que olha com ironia e benevolência o ego que busca a sua pequena glória?

terça-feira, 13 de maio de 2008

Da propriedade e do desprendimento

Com o passar dos anos a morte biológica torna-se cada vez mais presente, mas, ao mesmo tempo, o temor que nos acomete nos anos da juventude, um temor secreto e inconfessado, vai-se dissipando como se a própria natureza fizesse ouvir no ser biológico a verdade dos seus imperativos. Aprender a morrer e a estar morto era o exercício que Platão, no Fédon, dizia constituir a natureza da filosofia. Mas esta aprendizagem da morte não é o desejo de pôr fim à vida, mas o exercício contínuo do desprendimento. Aprender a desprender-se daquilo que nos rodeia não é indiferença perante o mundo. O desprendimento parece antes ser uma via para a verdade do meu próprio ser. Só na verdade de mim é possível criar o espaço onde tudo o que é ganha um novo sentido. Este sentido nasce das coisas serem consideradas já não a partir da fractura da propriedade, do que é meu em oposição ao que é teu e ao que é do outro. Não é que os direitos de propriedade possam ou devam ser violados, mas devem ser remetidos para a esfera do animal que labora e, apesar desse animal ser humano, a propriedade não é menos, por isso, um instinto animal. Desprender-me da minha propriedade, mesmo que ela continue minha, é aprender a desprender-me da minha dimensão biológica ou, talvez seja o termo mais adequado, zoológica. Aprende-se a morrer morrendo para o que é próprio e aquilo que há de mais próprio no homem é o desejo de propriedade. O próprio escravo deseja-se proprietário de si. Talvez a experiência da liberdade só possa nascer desta aprendizagem do desprendimento.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Princípio de entropia

Tudo se desordena na minha vida, como se um princípio de entropia a regulasse e nada tivesse a força suficiente para a abrir ao essencial, aumentar a ordem e configurar de forma nítida a existência. Os dias passam, as horas, os minutos, os segundos, tudo passa inclemente, e nesta vertigem o real desagrega-se e o princípio que poderia suster-me parece abandonar-me. Se tento recolher-me para encontrar uma direcção, uma multidão de pequenas distracções vem até mim e os múltiplos mundos que podem existir no meu visitam-me e cindem-me ainda mais e mais. Cansado e sem norte, deixo-me atrair por qualquer coisa, desde que evite a realidade e as prescrições que a realidade tem para oferecer. Se ao menos pudesse silenciar o pensamento…

domingo, 11 de maio de 2008

Essa coisa obscura

Uma estranha volúpia arrasta-me para a inacção, deixa-me pregado ao nada, mergulha-me na mais escura preguiça. É um estranho prazer o de ficar a ver o tempo passar e sentir-me incapaz de inscrever seja o que for no curso do mundo. Qualquer coisa serve então como distracção e o espírito agarra-se a ela como ao maior dos bens. Um pequeno nada é suficiente para que o essencial se perca e eu me perca nessa nulidade. É como se de um ponto indistinto qualquer coisa apelasse em mim para a negligência. O mistério de tudo isto não está na tentação, pois essa reconheço-a com facilidade e identifico-a a operar em mim desde há muito, desde os bancos da escola onde aprendi as primeiras letras. O mistério está todo naquilo que me tenta e me arrasta, nessa coisa obscura que toma, de cada vez, novos disfarces e me conduz sempre e sempre à mais desesperante nulidade.

sábado, 10 de maio de 2008

A tempestade da dúvida

Há quem tenha uma fé substancial, uma fé capaz de mover montanhas, uma fé clara e distinta. Eu, porém, sinto-me atravessado pela tempestade da dúvida, da incerteza, da impossibilidade de me tornar num Atlas e carregar às minhas costas um mundo, tão pouco uma montanha. Se a fé é a crença e aceitação da revelação, a dúvida é a natureza do espírito que procura um caminho. Talvez a minha fé só possa nascer desse espírito que procura e a dúvida seja um sintoma da vida que cresce e se fortalece e na força que assim vai nascendo encontra a fidelidade ao que, na obscuridade, me chama. Talvez não haja verdadeira fé sem o tempero da dúvida. Quanto maior for uma, mais forte será a outra.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Da nostalgia e da saudade

Céu nublado, nuvens empurradas pelo vento, a chuva desabrida a cair para aquém da linha do horizonte. Assim como o céu mutável e inquieto, estou eu em contínua metamorfose. Agora sou leão, por vezes cordeiro, outras águia ou serpente, mas nunca criança. Perco-me nas mil transfigurações em que o espírito se ergue e cai e deixa de ver o rumo ou o horizonte. Quando a inocência se esvaiu, no lugar dela ficou, agora o sei, um desconsolo infinito e a sensação de que aquilo que se quebrou não poderá ser soldado. Daí nasce a nostalgia do que fui, mas a verdade é que nunca fui outra coisa para além do nada que sou. Talvez a nostalgia do passado seja apenas a saudade do futuro, a expectativa do vir a ser, talvez…

quinta-feira, 8 de maio de 2008

A fonte que mata a sede

Se pretender encontrar-me a mim mesmo, onde poderei descobrir esse fundo que me permite reconhecer uma identidade? Cada um dos meus traços, físicos ou psicológicos, é evanescente, mutável, redutível a nada. Essa aniquilação parece, então, ser o centro da minha identidade e cada um dos traços com que me apresento a mim ou aos outros não passa de uma máscara que esconde a ausência substancial de uma realidade. É nesse nada que deverei mergulhar, pois esta imersão é a aceitação plena daquilo que sou: nada, ou para o dizer de um outro modo: sou pó e ao pó tornarei. O nada, porém, deixa-me livre e é nessa liberdade que posso abrir-me para aquilo que em mim é mais do que eu. Uma substância? Uma coisa? Um objecto? Não, é um nada de onde as substâncias, as coisas e os objectos tiram a sua substancialidade, a sua coisidade, a sua objectidade. Procurar esse nada é procurar a fonte que mata a sede.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Abrir o espaço

Cada um deverá encontrar o seu caminho, mesmo que esse caminho seja obscuro e incompreensível. Ir para além das aparências empíricas, escutar em silêncio o silêncio que fala, deixar que a palavra que cada um de nós é se torne no inaudível som que nos deve guiar, tudo isso só pode acontecer na liberdade mais estrita e na responsabilidade perante a própria existência. Poderemos salvar os outros? Se isso se entender como proselitismo, então é impossível salvar seja quem for. Mas se salvar for entendido como a abertura de espaço para que cada um encontro o seu caminho, poderemos não impedir que o outro encontre a sua via. Nos dias de hoje, não faz qualquer sentido falar com os homens modernos como se eles fossem destituídos de autonomia e não passassem de crianças a quem se lhe tem de meter medo para não caírem no maior dos perigos. Não era S. Paulo que dizia que onde abunda o pecado, abunda a graça?

terça-feira, 6 de maio de 2008

Do remorso e do arrependimento

Muitos dizem que não se arrependem de nada do que fizeram. Mas como poderei ser assim e proclamar ao mundo um orgulhoso não arrependimento? Há muitas coisas que não faria efectivamente e ao pensar nelas sinto uma vergonha íntima de as ter praticado. É a essa vergonha íntima a que se poderá chamar remorsos. O curioso, porém, é que essas coisas nunca como hoje chocaram tanto com a minha consciência. Olho para a minha vida e uma multidão de actos, pensamentos, palavras e omissões acusa-me e deixa-me perplexo perante a imagem que de mim faço. Começo a perceber que essas pequenas e grandes inclinações me levaram a um afastamento do absoluto, afastamento esse que fui justificando com razões, como se a razão existisse para justificar o mal que praticamos ou para legitimar a boa consciência. Mas saberei arrepender-me efectivamente? E o que significará esse arrependimento?

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Margem segura

Um dia perdido em divagações e impotência. Em nada do que faço adiantei um milímetro que fosse, apenas as horas passaram e eu passei com elas, como se o meu destino fosse apenas passar. Desespero de mim e lanço um grito de angústia na noite que cai. Quem me escutará? Sinto no corpo uma lassidão tão grande e no espírito uma fria indiferença por tudo o que me compete fazer. A vontade frágil soçobra num mar de indolência e eu sinto-me a afundar e deixo-me ir como se dar aos braços e rumar para a margem segura fosse a mais difícil das tarefas que cabe ao homem no mundo.