terça-feira, 4 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (348)

348. AS SIRENES ABREM O DIA PELO RONCO MATINAL

As sirenes abrem o dia pelo ronco matinal
e na atmosfera sente-se o hálito do fogo,
restos de cinza trazidos pelo vento,
os teus olhos cansados de horizontes.
Da vida, nada há para registar,
apenas a preocupação dos dias,
a inquieta certeza de que tudo acabará,
o incêndio breve do desejo vindo pela manhã.

Bebo um golo na garrafa vazia do prazer
e embriagado caminho pelas ruas,
anoto as casas de comércio, o sentido do trânsito,
alguma dor que desce pelo corpo
e se perde no escuro fundo da consciência.
Não há em mim um jardim de outono,
nem da vida sei o sentido ou o valor,
ou nítida função me destinou o ser.

A pálida luz que antecede o meio-dia
pousa como uma sombra sobre a avenida.
Passam mulheres translúcidas e voláteis,
carros de seda em rodas aveludadas.
Os olhos que esperam os meus fecham-se,
aspiram suavemente o ar entorpecido
e abrem-se para uma luz de água selvagem
que brota furtiva no fundo negro da colina.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (347)

347. VOLTEI INQUIETO PARA A PÁTRIA DO CALOR

Voltei inquieto para a pátria do calor,
encerro-me no segredo da casa,
e espero a sombra da noite para caminhar
pelas ruas, sulcos infelizes no dorso da cidade.
Quantos serão os dias de sol brilhante
e quantas as noites em que não dormirei?
Estranha contabilidade a que me entrego,
mal chega setembro e o seu império.

Vacilante, por vezes, o vento traz um esboço
de paraíso, a promessa de uma sóbria madrugada,
o desejo de me perder por becos e vielas.
Um sino dobra na funda manhã,
vestígios do passado chegam no barco da memória,
aqueles dias felizes em que de corpo despido
me entregava solene à água fria.

Uma alcateia de sensações desaba em mim,
uiva na floresta vazia de outrora,
traça um mapa de estradas longínquas,
as encruzilhadas onde pela noite te esperei.
Sim, voltei à pátria do calor, aguardo o passar
das horas, a lua que sobre o sol virá.
Estendo-te a mão deserta e em sangue,
e ouço a tua voz tão longe a cantar.

domingo, 2 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (346)

346. DESCUBRO UM REFLEXO DE LUZ NA ÁGUA DO MAR

Descubro um reflexo de luz na água do mar
e os meus olhos ficam suspensos,
presos na ínfima vibração que se desprende,
na vitória precária sobre as trevas do mundo.
Que farei com essa luz que me ilumina
e, por instantes, me revela o oculto,
a respiração da terra no murmúrio do oceano?

Pertenço a um povo marítimo, dizem-me,
e não há poema que não traga lágrimas salgadas
ou um barco ancorado no velho cais.
Assim são também os meus, mesmo se falam
da terra seca ou da floresta erguida na montanha.
São marinheiros que habitam nestas palavras
e navios perdidos que lançam breves sinais.

Rudes as nossas planícies e pobres os rios.
Ninguém sabe o calor do vento na campina
nem o restolhar das águas fluviais.
Resta a areia imensa presa na rocha dura,
resta o barulho das ondas a rebentar
e um amor cego e perdido pela ventura
de morrer num naufrágio e não voltar mais.

sábado, 1 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (345)

345. DESÇO DO DORSO ASTUTO DO PASSADO

Desço do dorso astuto do passado
e afasto-me da promessa que o futuro anuncia.
Bastam-me esta água sobre a areia branca
e os limos que se enredam nos pés.
Bastam-me os caminhos rudes na montanha
e uma casa branca de porta entreaberta.

Aos outros deixo agora o requiem e a profecia.
Aspiro o ar fresco nascido na madrugada
e olho o céu azul na distância inacessível,
maldade ou capricho dos deuses imortais.
Voo com as nuvens se elas passam
e escuto o canto dos pássaros na primavera.

Ser todo e único em cada momento,
andar de pés descalços no musgo da floresta,
carregar a solidão quando estou só
e o vivo prazer de me perder na tua mão.
Sem passado nem futuro, sou apenas sombra,
um traço de luz, o fogo na noite, uma onda.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (344)

344. É UM MOMENTO SEVERO DE DESAMPARO E OCLUSÃO


É um momento severo de desamparo e oclusão.
As folhas deslizam secas na terra quente
e os gatos, a noite os semeia, ocultam-se na sombra
que escorrega de alguma nuvem perdida no céu.
Não é tempo de discórdia nem de harmonia,
apenas as horas passam exaustas e brancas,
transpirando na indecisão dos teus dedos.

Ouve-se um grito ou a fala apressada de quem
não tem idade e da vida tudo espera.
A cidade macera lentamente ao ritmo dos que passam,
vielas e recantos albergam olhares furtivos,
traços de luz suspensos na caliça das paredes.
Os dias estão semeados de terríveis hesitações,
símbolos puros à espera de precária decifração.

No pórticos das igrejas, pedintes e pombos traçam
roteiros e mapas, e toda a miséria ganha um rosto,
a cor designada que irrompe na lividez da alma.
Os dias que nos cabem estão cansados,
e aqueles que um dia amaram desmedidamente
sentam-se à espera de uma carta longínqua,
de um amor que o tempo vendeu ao esquecimento.

Uma paliçada de canas separa a tua da minha casa
e, quando o vento sopra trazido pelo norte,
escuto a música perdida na lira de Orfeu.
Um tremor floresce na esplêndida  fronteira traçada,
e irrompe na clareira onde um animal,
cru e selvagem, esboça uma dança luminosa
e, ambulante, se perde na sombra que cai no umbral.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (343)

343. DE QUANTAS PALAVRAS PRECISAMOS PARA DIZER

De quantas palavras precisamos para dizer
tudo o que o silêncio nos pede?
De quantas horas será feito o caminho
por onde voltamos ao chegar a noite?
Vivemos ainda num tempo de turistas,
artesãos inspirados no puro caminhar,
amantes insaciáveis da cegueira
com que tocam tudo o que o comércio traz.

O peregrino tem a sua casa no caminho
e em cada instante a renova,
criando um silêncio no coração dos campos
e a breve eternidade no fluir das horas.
Esta, porém, não é a sua estação.
Fecharam o templo e o santuário oferecido
mostra uma mácula de bolor e ruína,
no lugar onde floresciam as buganvílias.

Quando erguemos os pés pela estrada,
não sabemos quem somos ou o que esperar.
Um sonho cresce no bosque de cedros
e alimenta o devaneio que escorre da vida.
Interrogamos o voo dos milhafres
ou o uivo longínquo dos lobos matinais,
mas apenas escutamos o silêncio do sino,
o regresso da noite na luz que se esvai.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (342)

342. NAQUELA HORA, ANTES DO DIA SE DESVANECER

Naquela hora, antes do dia se desvanecer,
há um brilho nos céus e um cheiro a erva húmida,
odor vindo do tempo da inocência,
anunciando a estação das lamparinas,
os velhos candeeiros a petróleo.
O vento chegava com a frescura da serra,
para a distribuir casa a casa, as portas abertas
e as janelas onde se contrabandeava a solidão.

A noite precipitava-se com uivos vacilantes,
enchia as casas de tenaz escuridão
e traçava mapas misteriosos
nas paredes, férteis planícies brancas.
Ainda não tínhamos uma biografia,
a vida não passava de uma recolecção de
sensações, tiras rasgadas no papel pardo,
aquele que embrulhava sonhos e mercearias.

Se chovia, escutávamos as águas a cair no telhado,
a escorrer nos beirais, a precipitar-se nos baldes.
Era um tempo de minúcia e ardor
e a vida um cálculo contínuo,
a persistência da flor no jardim encantado.
Cada gesto rasgava um horizonte,
que logo o murmúrio dos pinheiros cerzia,
fazendo pensar num conto de fadas
ou na quimera de um oásis no furor do deserto.

Voltaram, nesta hora tardia, os sonhos,
promessas de vida já esquecidas.
Chegam um pouco antes da madrugada
e acordam-me para as paisagens abandonadas,
que um forasteiro tenebroso saqueou,
deixando um rasto de cinza e desolação
naquelas planícies brancas batidas pelo vento,
rasgadas pelas águas da invernia.
Sonâmbulo, ergo as mãos para a tua face
e oiço-te respirar no silêncio da escuridão.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (341)

341. NÃO A MORTE MAS O ECLIPSE DE DEUS, DISSE

Não a morte mas o eclipse de Deus, disse
outro filósofo, e eu fiquei por terra
a tremer de pavor pelo astro grandioso
que, no seu fluir momentâneo, ocultou
o Sol maior que todos os sóis,
e deixa apenas vir uma penumbra de granito
tecida de voraz esquecimento.

É como se entre a tua luz e o meu coração
se erguesse densa parede
e a pedra branca de calcário me roubasse
os teus olhos e a promessa que em ti havia
no deslizar das ancas
ou na fértil  flutuação dos seios…
e nada mais restasse, apenas a súbita descrença
no sabor da boca, da minha se perdia.

Tornemo-nos, nesta meia-luz, crianças
e levedados na palavra escutada
procuremos nos quartos e no jardim,
subamos ao sótão,
espreitemos entre cortinas e veludos.
O que procuram? – ouviremos.
Como no fugaz jogo da infância, dirás:
Um hálito, o leve tremor do soalho, a poalha
suspensa na atmosfera, a sombra de um insecto,
o rasto das horas que passam na tarde de verão.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (340)

340. ESTA É A HORA EM QUE O POETA SE SENTA

Esta é a hora em que o poeta se senta
e olha a vastidão das praças,
o deambular confuso do tráfego
e, suspenso sobre o enigma do tempo,
pergunta quem por aquelas avenidas virá
e quais as palavras que se soltarão para
que outro mundo venha sobre os jardins
e novos arquitectos desenhem
a luz e a sombra, a água pura e a fonte
onde rebanhos metálicos virão matar a sede.

Deram-te a cegueira por destino
e a placidez do sentimento no lugar da exaltação.
As palavras que te saem dos dedos
de pouco servem, menos ainda para anunciar
futuros ou uma graça salvífica.
São apenas traços na areia, pedaços de cana
seca pelos ardores de um estio que não acaba.
Apontam-te o dedo pelo silêncio da acção
e esperam de ti o dom da profecia,
o empenho do soldado na batalha vencedor.

Este não é um tempo de indigência,
apenas os poetas estão presos ao destino das
palavras, ao sangue da língua,
pela qual vieram cegos ao mundo,
e na ausência de luz tomam uma sílaba,
uma letra, a precária sintaxe,
e com tudo isso compõem um stabat mater dolorosa
para que o mundo possa rumorejar
e a natureza ferida encontre uma voz,
o suspiro das agulhas do pinheiro,
o cântico da água ao despenhar-se na montanha. 

domingo, 26 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (339)

339. O CORPO, PEQUENO MÓBIL SOBRE O CARREIRO

O corpo, pequeno móbil sobre o carreiro
do jardim, herança confusa de múltiplas origens,
arquitectura genética vinda da noite,
essa noite que espia e espera
para te embalar nos destroços da eternidade.

Sobre ele o imperativo do prazer faz lei,
inscreve nas células o súbito desejo de água,
o rumor de outro corpo,
uma geografia de ânsias e desejos
a arder na incandescência do tacto.

Sonho-te, pobre corpo, desprovido de gravidade,
liberto de leis, cântico silvestre
no calendário vazio, pássaro de seda ou
balão de hélio nos precários dedos
de uma mão egoísta e desmemoriada.

Quando agora chega setembro, pesas-me
e a graciosa leveza outrora sonhada
é um traço de silvas, o espinho que ulcera
as pétalas cansadas da rosa
que, sem porquê, de aberta se faz fechada.

sábado, 25 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (338)

338. RETORNO PARA O SEGREDO DO MAR E FLUTUO

Retorno para o segredo do mar e flutuo
nas águas frias do oceano.
Sou peixe a dançar na melodia das águas
e suspiro pela música das ondas
ao bater na rocha íngreme da pele.

Ao longe, deslizam veleiros, brancas muralhas
contra a altivez anil do céu.
Mais perto, barcos vindos da pesca
e alcateias de gaivotas, suspensas dos ares,
aguardam tardias o banquete.

Perdido na selva azul, avisto o sol,
uma promessa silenciosa desenhada
nas encostas verdes da praia.
As águas vão e vêm
ao ritmo breve da respiração.

Se a tarde se inclina e escorrega para o mar
o sol entrega-se à solidão do poente
e os dias de infância caem sobre mim,
cheios de barcos e castelos de areia,
orquestra flamejante no concerto da memória.