João Queiroz - Sem título (2008/9)
288. VENHO DO TEMPO AVARO DA POBREZA
venho do
tempo avaro da pobreza
dos dias em
que a míngua descia sobre as cabeças
entrava nas
casas para traçar o vazio
uma onda
fria de ausência
o medo
desmedido da eternidade
se havia um
excesso de sentimento não o sei
apenas a
desolação crescia
desenhava
uma angústia febril nas paredes
e a
melancolia segmentava-se
um rasto de
carvão e jornais rasgados
os homens
que passavam de bicicleta
estou
sentado ao vento da noite
e a serra d’aire
brilha ao longe
um vulto
negro e incerto
a promessa
de abandono e limpidez
no rosto
sofrido com que amavas os dias
recupero a
tua memória perdida
eram os dias
da grande guerra
e os
soldados marchavam incautos
presos a um
destino surdo
à ração
esquiva da morte em combate
uma paliçada
de canas dividia o mundo
e um génio
falava do outro lado
a almotolia
do azeite
e as
primeiras flores do coração
nuvens de
poeira e restos de palha
um afogado
perdido nas águas do tejo
a primeira
morfologia das constelações
sobre tudo isso
veio o esquecimento
e traçou um
plano de combate
armadilhou a
terra bravia da memória
e roubou ao
inimigo cada recordação
o talento da
crueldade nasce nessa moradia
é um
exercício lento de combustão
uma suspeita
nunca confirmada de amargura
as mãos
sujas pelo crime prosperam na madrugada
são brancas
e trazem na lividez a faca
com que
cortam o fio que te liga à vida
uma ave voa
no tumulto dos céus
estrelas
solitárias dormem em alvoroço
e na terra
ouvem-se os primeiros trovões
a descarga
eléctrica na torre da igreja
qual seria o
teu ofício ainda não o sei
recordo-me
que vinhas de longe
e sentavas-te ao entardecer
para contar
essas estranhas histórias
que me
povoam a infância
a terra
coberta de erva canária
os primeiros
regatos trazidos pela invernia
sobre o
presépio um céu azul e estrelado
e nunca mais
houve natal que não fosse esse natal
um deus
pequeno e sujo entre palhas
o rumor de
gente a entrar pela porta
e um anjo
sentado no musgo
apascentava
breves rebanhos perdidos na terra
dobrado o cabo da boa esperança
e as tormentas domadas pela arte de navegar
espero pela manhã com o rosto preso na almofada
e o barulho das parras batidas pelo vento
o corpo a arder no desejo do teu
desenho um mapa para me orientar
e deixo sinais de obediência
ajoelho-me silencioso perante o altar
e espero que deus fale
e traga ao meu coração o primitivo ardor
a incandescência com que te abria o corpo
e sentia em cada célula
o odor suave do teu sangue de fêmea
a tecelagem primitiva com que me envolvias
no círculo desenhado pelas ancas
a música que crescia no palco
um incêndio na seiva das árvores
o grito estrangulado no peito
quando dizias fala para mim
ainda tenho a graça da juventude
o sexo molhado à espera do teu
na fímbria onde o desejo se abre
e se abate como uma nuvem negra
sobre os telhados de zinco da cidade
venho do tempo avaro em que amava a pobreza
os dias em que encostado ao poço
comia laranjas se era delas o tempo
e tudo era a simplicidade de ser
pequenas promessas levedadas em segredo
o rasto de poeira antes da cidade
levo no bolso a penúria desses dias
e amo-a na pureza com que ela me devolvia
cada coisa que eu dava a quem a pedia