Francis Picabia, Amanhecer na bruma, Montiguy, 1905 |
O dia revela-se
nas árvores matinais.
Bramidos e brumas.
Philip Guston, Winter, 1963 |
na floresta
onde as pétalas caem
sobre o chão
negro dos dias passados,
sobre o
leito onde dorme o futuro.
As sibilas
dançam, cantam os hinos
macerados pelas
chuvas arcaicas.
Os segredos
de outrora desvelam-se
no rumor da
boca fria dos profetas.
Natureza, a
verdade recobre
as tuas
horas com um manto de pétalas
renascidas
no desvão da floresta.
O silêncio,
um presságio arcaico
dança imóvel
no segredo da noite.
Uma rosa de
sal sangra nos céus.
Janeiro
de 2024
Ricardo da Cruz-Filipe, Mar n.º 1, 1983 (Gulbenkian) |
João Paulo, Desenho I, 1962 (Gulbenkian) |
Cândido Costa Pinto, sem título, 1945 (Gulbenkian) |
Muirhead Bone, View of Rome at Sunset, c. 1912 |
sobre a
sombra do dia, trazem fogo
ao amor das
coisas raras e luz
à morada
fria e rude dos deuses.
Os poentes
são mistérios, promessas
do espírito,
a água lustral
onde,
ávidos, lavamos os corpos
e os abrimos
ao orvalho da noite.
No fulgor de
cada hora crepita
um
crepúsculo na sombra dos deuses,
um amor na
invernia deste mundo.
Toco o corpo
que se abre ao poente.
No orvalho
de ardor e mistério,
sinto a água
que na noite me espera.
Janeiro de 2024
Noronha da Costa, Pôr do Sol (Gulbenkian) |
Carl Theodor Reiffenstein, Abgesägte Baumstämme vor einer Mauer in Oberwesel, 1858 |
Manuel Casimiro, Estrutura, 1970 (Gulbenkian) |
Bernardo Marques, Inverno (Gulbenkian) |
Os dias
frios, as horas gastas da vida,
céus de
chumbo, o silêncio do medo.
Em Janeiro,
teço sombras e nuvens,
traço linhas
na brancura da noite.
A tristeza
rasga a terra e os mares.
Um fantasma
no escuro da casa,
no jardim
onde as rosas secaram.
Um punhal no
coração da paisagem.
Visto as
sombras que teci em silêncio.
Visto as
nuvens que me cobrem o corpo.
Em Janeiro,
vejo os céus, oiço o medo.
Treme a
terra na tristeza da casa.
Tremo pálido
no frio do jardim.
São escuras
as paisagens sem rosas.
Bartolomeu Cid dos Santos, Terra Incógnita (Gulbenkian) |
Max Libermann, The first step (Mother and Child, small sketch), 1890 |
George Inness, Winter, Close of Day, 1866 |
Sol de
Inverno, sol de mármore rosa,
luz do céu
frio na manhã de Janeiro.
Os dias
correm pelo vento tocados,
são navios de
caruma sem norte.
Oiço
pássaros romper o silêncio,
abrir mundos
ao ardor da harmonia,
velhos
cânticos ressoam nas ruas,
enquanto os homens
sonham extáticos.
Vendavais de
luz e mármore rosa
são segredos
escondidos nos barcos
do Inverno,
vozes vivas da terra.
Oiço cânticos
na casa do tempo.
O silêncio
arde preso aos dias,
uma rosa
desfolhada nos dedos.
François Boucher, The Waterfalls of Tivoli, 1730 |
Nikias Skapinakis, Objecto não Identificado - XLII, 1968 (Gulbenkian) |
Objectos não identificados são como países ainda não descobertos. Têm fronteiras que lhe determinam o contorno, possuem um corpo como se fora uma imenso território. Por vezes, arvoram um pavilhão que deles será símbolo, mas ainda não têm um nome que lhes permita saber o que neles há de luz e o quinhão que suportam de trevas. Correm pelo espaço, navegam pelo tempo, procuram em cada recanto a identidade que lhes trará uma denominação e o passaporte para o pensamento.
Chas. A. Hellmuth, Broadway, N. Y., 1920-25 (Photoseed) |
László Meitner, Inverno em Paris (Gulbenkian) |
o bramar das
aves negras de Inverno.
São
presságios, são auspícios sem luz.
Uma carta
tão fechada na noite.
Dança a
chuva nas paredes das casas
destelhadas
pelo vento do norte.
Dança a
velha soberana no paço
carcomido
pela morte das rosas.
Uivam lobos
nas montanhas sem neve.
Grasnam
corvos nas ramagens despidas.
Rugem homens
esquecidos na cidade.
Nas
gargantas das mulheres exaustas,
os murmúrios
de um amor desprezado
a poeira
sulfurosa os sufoca.
Dezembro
de 2023
Felix Vallotton, sem título, 1917 |
Jorge Molder, O Pequeno Mundo, 2020 (Gulbenkian) |
Pedro Calapez, Viagem de Inverno, 1989 (Gulbenkian) |
Vem
solstício. Do Inverno a luz
abrirás,
e os segredos da noite
brilharão
entre estrelas e luas,
entre mares
de azul e cobalto.
Ó intróito
da invernia, paroxismo
do silêncio
e das trevas amargas.
Crescerão
depois os dias, canções
haverá pelos
lugares sem nome.
Ao cair, a
noite ergue-se frágil
no murmúrio
da floresta, rumor
das
estrelas, sal secreto da vida.
Uma cruz de
azevinho ao longe,
velhos
cânticos, Natal no horizonte.
A luz pálida
será fogo ardente.
Mathilde Battenberg, Provence landscape, 1914 |
Carl Rottmann, Santorini (Thira), c. 1843 |
Jan Van Goyen (atrib.), Dirt Road with Farmhouse and Board Fence, 1629 |
Adeus,
Outono, o aprazado tempo
chegou com
folhas mortas, água fria,
vento de
Norte e a saudade súbita
de quem
partiu e não virá jamais.
Recolho a
casa, deixo as ruas sujas,
praças
vazias, a memória trémula
do verso
esquivo e das sombras ténues,
onde
escondia o ardor do fogo.
Ramos
despidos clamam, vozes duras,
vozes de
Inverno, flores, sal e lágrimas.
Os dias
decrescem no rumor das nuvens.
Grande
mistério é a noite escura
onde um deus
aguarda a hora próxima
para lançar
na terra o sol e a sombra.
Carl Philipp Fohr, Cloud Study, c. 1816/17 |
Antonio Tápies, A caída, 1982 |
pela diáspora
da vida simples,
pela aurora
doutro tempo a vir.
Eis o
silêncio desta noite sôfrega.
Amargas
dores, corações rasgados.
O abandono é
semente ávida,
germina fácil
no mortal terreiro
onde o ser
em névoa fria se oculta.
Não veneremos
o clamor dos deuses
sujos de
sangue ou da cal da morte,
filhos de rosas
sem o véu da cor.
Sim, é de
ferro o anel de ouro.
Sim, é nocturna
essa luz do dia.
Sim, é de
sombra a alva nau de Outono.
Dezembro
de 2023
Alfred Sisley, Bank of the Seine in Autumn, 1876 |
Como um
pássaro já ferido canto
uma canção
feita silêncio e dor.
Oiço o ritmo
ancestral na fímbria
das folhas secas,
no vazio da alma.
Trago em mim
cada Outono vivo,
cada Outono
preso aos dias passados,
ao
calendário feito de erva fresca
e de
memórias para sempre mortas.
Deixo que o
ser na luz se revele livre,
na liberdade
do mistério aberto
como um
livro de orações sagradas.
Vou pela
estrada sem destino claro,
sem o fulgor
dos dias de Estio, acesos
no
esquecimento do ardor da noite.
Dezembro de 2023
Rafael Barradas, Paisaje vibracionista, 1918 |