segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Da condição do Homem

Vincent Van Gogh - Naturaleza muerta con pan (1887)

Então eles lhe disseram: Não temos aqui senão cinco pães e dois peixes. (Mateus, 14:17)

Poderemos a partir desta citação de Mateus pensar a condição humana sobre a Terra? A questão central não será, nesse caso, os pães e os peixes, mas o senão. Ele remete-nos para o limite do que possuímos, para o limite dos nossos poderes, para a limitação do nosso ser. Neste senão ou num qualquer apenas expressa-se a natureza humana na sua finitude. Seja o que for o que possuirmos será sempre apenas isso. O que está para além disso é infinitamente mais e incomensurável com o nosso próprio ser. Mas este limite dado pela finitude é a única condição de possibilidade que o homem possui para ir além desse limite. Esta condição de possibilidade reside no reconhecimento da verdadeira situação humana. Só esse reconhecimento permite que algo desça sobre o homem e o multiplique, tal como a bênção do Cristo multiplicou pães e peixes.

domingo, 4 de agosto de 2013

Haikai do Viandante (153)

Vincent Van Gogh - Alameda no Outono (1884)

Mistério sombrio.
Árvores, ventos d'Outono,
anunciam o frio.

sábado, 3 de agosto de 2013

A ordem do desejo

Gustavo de Maeztu - A ordem (1918-1919)

No século passado, porventura devido à crescente influência de Nietzsche e ao prestígio da psicanálise inventada por Freud, emergiu a polémica sobre o desejo, se este era carência, falta, ou se, pelo contrário, excesso. Platão foi muitas vezes - e ainda o será - apontado como o pensador do desejo enquanto carência. Nessa carência pensa-se o mundo sensível em que habitamos como imperfeito, marcado pela falta presente em tudo o que é finito e limitado. Seria essa imperfeição do mundo que levava Platão a ficcionalizar o Mundo das Ideias, perfeito e imutável, objecto do desejo de todos aqueles que se dedicam à filosofia.

Esta leitura de Platão acaba por não dar conta da real dimensão da ordem do desejo que se expressa no platonismo. A ordem do desejo é balanceada entre o momento da carência e o momento do excesso. A carência de perfeição do mundo sensível que é o nosso e o excesso que se manifesta na ficcionalização desse mundo inteligível perfeito e imutável. Ficcionalizar o além, instaurar uma ordem metafísica, não é, ao contrário do que pensou Nietzsche, caluniar o real, depreciá-lo, mas encontrar a sua completude, tal como ela se manifesta na ordem desejante.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Da dinâmica do desejo

Max Pechstein - Três nus numa paisagem (1912)

Os objectos mundanos que solicitam o nosso desejo têm uma dupla característica. Inscrevem-se sempre numa dada paisagem, que pode atenuar ou intensificar, por vezes até ao paroxismo, o desejo. São múltiplos e, desse modo, estilhaçam a intencionalidade do desejo, solicitado por múltiplos focos desejáveis. Descobrimos assim que, devido à inscrição numa paisagem, não há, no nosso estar no mundo, um desejo puro, mas sempre um desejo revestido pela ambiência. Descobrimos ainda que a multiplicidade dos objectos desejáveis fragmenta o desejo e cinde a vontade. Impuro e fragmentário, o desejo abre em nós uma brecha que a vida parece incapaz de cerzir.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Corpo crepuscular

Jorge Apperley - Crepúsculo (1922)

Pelo desejo, compreendemos a natureza crepuscular do corpo. A sua luz, mesmo nas horas de maior vigor, indica sempre a incompletude, a ausência de alguma coisa que se manifesta na dinâmica desejante. O corpo nunca é dia pleno nem noite fechada. É apenas aquela luz frouxa e indecisa que parece hesitar na fronteira entre dois mundos.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Suspender a gravidade

Caspar David Friedrich - Angels in Adoration (1826)

Nas explicações do senso comum irreligioso, a religião surge muitas vezes como o produto do medo perante o desconhecido ou, no melhor dos casos, como uma resposta ingénua aos mistérios do mundo e da vida. Não se quer, desse modo, perceber a dinâmica biológica da religião. Ela é - para além de outras coisas - uma luta contra as limitações da nossa natureza biológica, um protesto contra a humilhação que o espírito do homem sente perante o peso do corpo. No acto religioso - na oração, por exemplo - manifesta-se o desejo de suspender a gravidade, como se o homem respondesse a uma solicitação das alturas.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Poemas do Viandante (427)

Lluis Rigalt - Ruínas (1865)

427. Não sei o peso da ruína

Não sei o peso da ruína
sobre os ombros do mundo.
Não sei a cor do manto
com que os anjos se cobrem.

Transporto comigo a cegueira
e traço nas ruas letras de cal,
enquanto espero a loucura
que os dias me hão-de trazer.

Levanto a espada sobre o fogo
e aguardo a hora aprazada:
uma serpente ergue-se na luz
e o vento rodopia silencioso.

De sombra em sombra cavalgo,
perdido da pátria que achei.
Restam-me ruínas, anjos caídos,
a cal enlouquecido pela luz.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

A desmedida da fantasia

Alexandre de Riquer - Fantasia

A fantasia liga-se muitas vezes ao delírio da imaginação, à suspensão das reais condições de possibilidade da experiência humana, isto é, à anulação dos efeitos do espaço e do tempo. Nessa suspensão, o desejo entrega-se livre ao devaneio com os objectos que o solicitam e lhe dão intenção e conteúdo, objectos que também eles deixam de estar condicionados pelos limites espácio-temporais, como se a imaginação fantasiosa nos segredasse a existência de um mundo no qual os corpos, não deixando de ser corpos, se tornassem etéreos, livres e desmedidos.

domingo, 28 de julho de 2013

Águas estivais

Carlo Carra - Estio (1930)

No Verão, os corpos, subjugados pela densidade do calor, anseiam  a leveza do espírito. Tudo os incomoda, tornando insuportável cada passo dado no caminho. Ao mergulhar na água, porém, tudo se torna possível, como se a gravidade fosse perdoada e o corpo, agora puro e inocente espírito, se elevasse da terra e prosseguisse no caminho que ao alto da montanha conduz.

sábado, 27 de julho de 2013

Árvore sagrada

Antonio Muñoz Degrain - El arból sagrada

Na expressão árvore sagrada não devemos ver o sagrado como uma adjectivação extrínseca - que se junta por uma qualquer hierofania - à árvore. A experiência ancestral do homem é a de ver já em cada árvore uma manifestação do sagrado, um símbolo de algo que ultrapassa em muito a mera experiência empírica. Juntas, as árvores, formam a floresta, essa mesma que ecoa no verso de Baudelaire L'homme y passe à travers des forêts de symboles. 

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Sobre a cegueira

Karl Weschke - Blind man (1948)

Mais que patologia, a cegueira é condição humana. Por muita acuidade que possuam os olhos de um homem, é sempre muito maior o campo que se subtrai à sua visão do que aquele que, com olhar agudo e espírito penetrante, consegue abarcar. E isto torna risível quem se louva na sua inteligência ou na sabedoria que acumulou. Seríamos todos mais sábios se andássemos de bengala e tivéssemos, como guia, um cão.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

O Verbo e o Jardim

Pierre Bonnard - O grande jardim (1898)

Um jardim não é apenas um lugar onde se cultivam plantas ornamentais ou um sítio dado à fruição humana pelos poderes públicos ou pelos haveres privados. É uma imagem que materializa no espaço e no tempo a nostalgia que já se exprimia na narrativa mítica do jardim do Éden, no Génesis bíblico. Do ponto de vista da ordem da existência em geral, podemos dizer que no princípio era o Verbo, mas do ponto de vista estritamente humano, contudo, será mais prudente dizer que no princípio era um Jardim. O  viandante perplexo, porém, pergunta se o Verbo e o Jardim não serão a mesma e única coisa.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Haikai do Viandante (152)

Pierre-Albert Marquet - Assouan, Morning

Divina manhã.
A água abre-se ao sol,
dele se faz irmã.

E com este singelo haikai, o blogger entra numas curtas férias até quinta-feira que vem, se tudo correr como o previsto. Os visitantes sempre podem contemplar o belíssimo quadro de Albert Marquet.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Arquitecto de labirintos

Virginia Lasheras - O Arquitecto (1993)

O viandante não é apenas aquele que caminha em direcção ao seu destino. O viandante sabe que tem um destino, mas não qual é. Ao caminhar, ele é o arquitecto do labirinto pelo qual passa, pois a viagem é o trânsito pelo labirinto. Em cada momento o viandante constrói uma nova passagem, e não sabe se ela leva a um beco sem saída ou se abre o caminho em direcção àquilo que o chama. Espera a graça da sagacidade e o talento do construtor para que, desprovido do fio de Ariadne, não tenha que voltar ao início do caminho.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Poemas Viandante (426)

Pablo Picasso - A vida (1903)

426. Um fio que se quebra e abra para a morte

Um fio que se quebra e abre para a morte,
o desejo impossível sobre a varanda,
o rumor de julho na planície incendiada.

A vida chega a arder nos dedos de cristal,
rodopia sob a fadiga do vento,
ri-se desfigurada pela ânsia perpétua.

O silêncio da criança nos braços da mulher,
a memória traçada de fronteiras e rios,
o animal que se inclina e pede água.

Trago no labirinto toda a vida que me foi dada,
olho-a aterrorizado pelo que anoiteceu,
e sento-me escutando o tropel do que há-de vir.

Ó a vida nua, pura, delicada e breve:
ébria, uma erva pende para a terra
e no céu um anjo voa no silêncio eterno.

domingo, 14 de julho de 2013

Liberdade e reconhecimento

Vincent Van Gogh - O bom samaritano (1890)

Qual destes três (o sacerdote, o levita e o samaritano) te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? (Lucas 10:36)

Esta pergunta dirigida a um doutor da Lei vem na sequência da parábola do bom samaritano (ler aqui, vv. 25-37). Esta é suscitada pela interrogação do doutor da Lei Quem é o meu próximo? A resposta é vista como a construção de um modelo de compaixão. Contudo, para além  das benfeitorias realizadas, o texto fornece uma antítese prática que baliza o modo de agir perante o outro. Afastamento ou aproximação. O meu próximo é aquele de quem me aproximo, de quem não me afasto. Isto significa que o próximo não é estipulado pelas estruturas sociais, como a família, a classe social ou casta a que se pertence, ou pelas convenções diferenciadoras dos homens. O próximo é o desígnio da minha liberdade, do meu livre-arbítrio que me permite aproximar-me do outro (como o samaritano) ou afastar-me (como o fizeram o sacerdote e o levita).

O próximo é a obra da minha liberdade, mas também daquilo que inclina a minha liberdade para me aproximar e não para me afastar. Quando no versículo 33 (10:33) Lucas escreve Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão, não é a compaixão que é central. A compaixão é já o resultado de algo mais fundamental, é o fruto daquilo que se manifesta na expressão vendo-o. No verbo ver ressoa a abertura ao outro - pois a visão, como os outros sentidos, são uma abertura para o exterior - e no pronome pessoal o expressa-se o acto de reconhecimento. O próximo é, deste modo, o fruto de uma liberdade que se abre ao reconhecimento do outro, e nesse reconhecimento dissolve fronteiras e diferenças que os mecanismos sociais estabelecem e petrificam, gerando o afastamento, a indiferença e a negação do reconhecimento do outro, do outro que sofre.

sábado, 13 de julho de 2013

Um tempo de água e fogo

José Manuel Ciria - Água e Fogo (2000)

Água e fogo são dois símbolos primordiais. São, como todos os símbolos primordiais, fonte originária de sabedoria e fundamento de todas as racionalizações que permitem dar um sentido humano ao mundo. Na tradição ocidental, água e fogo não são apenas dois dos elementos centrais - juntamente com o a terra e o ar, por vezes, com o éter - da teoria dos elementos que animou as primeiras especulações dos gregos. Eles surgem também no cristianismo, a água do baptismo, o fogo onde se manifesta o Espírito Santo. A água que purifica e torna inocente, o fogo que confere sabedoria.

A história do mundo, nos últimos decénios, tem sido marcada pela perda de solidez, pela fluidificação da vida e das instituições. É como se a terra sólida se transformasse em água, mas não na água que purifica, antes na água que anuncia um naufrágio. Mais uma vez os símbolos originários são chamados para dar sentido ao acontecer. É esta água que anuncia o naufrágio - ou um dilúvio - que está a reclamar a outra água, aquela que purifica e restaura a inocência. Mas no actual estado das coisas, não basta purificar, é necessário a sabedoria que só o fogo pode trazer. Este é, de novo, um tempo de água e fogo.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Inocência e prudência

Thomas Gainsborough - Study of a Sheep (1755-57)

Envio-vos como ovelhas para o meio dos lobos. Sede, pois, prudentes como as serpentes e simples como as pombas. (Mateus, 10:16)

O texto de Mateus - um único versículo, na verdade - desenha uma complexa rede de analogias para, em última análise, retratar a situação do homem no mundo social e para lhe propor um determinado modo de acção que está, ao mesmo tempo, ligado a um modo de ser. O que é de imediato visível, porém, nessa rede de analogias é que "aqueles que são enviados" são analogados com animais (ovelha, serpente e pomba) e "aqueles para o meio dos quais os enviados são remetidos" são também comparados com um animal (o lobo). Com isso, o texto sublinha de imediato a nossa condição animal e é perante ela que ele se torna significante.

A relação entre ovelha e lobo, entre presa e predador, está fundada também na analogia. O "ser como" de toda a analogia introduz uma ambiguidade na definição que reflecte uma ambiguidade ontológica. Os homens são como ovelhas ou como lobos. Isso significa um estatuto aberto na natureza humana, significa que o homem é dotado de livre-arbítrio. Nem as ovelhas são definitivamente ovelhas nem os lobos têm o destino fechado na lupinidade. E é por isso que as ovelhas, libertadas do rebanho, são enviadas para o meio da alcateia. De certa forma, todos nós somos enviados para o meio da alcateia, essa é a nossa condição.

Ao exercício da predação não é contraposto o sacrifício da presa. Pelo contrário, o texto liberta o homem da praxis sacrificial e propõe como caminho a prudência (a palavra usada para prudentes é φρόνιμοι) e a simplicidade (o termo usado para simples é ἀκέραιοι). Desta maneira, é resgatada a razão prática da filosofia grega, ao mesmo tempo que, com a analogia com a serpente, se dá a ver o seu limite. A prudência pode ser um mero cálculo da serpente e, por isso, não é suficiente para que a ovelha enviada não se transforme em lobo. A prudência deve ser incrustada na simplicidade, na pureza, na inocência. O modo de agir - ser prudente - deve ter a sua raiz nesse tornar-se inocente, simples, puro.

No mundo social, perante o eterno jogo do predador e da presa, perante o ciclo da animalidade e a visão sacrificial da existência, Cristo propõe uma ruptura onde se combina uma natureza inocente - que se inocenta - e uma atitude prudente, um ser puro e uma razão prática dele dependente, como caminho para a instauração de uma comunidade verdadeiramente humana.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Haikai do Viandante (151)

Pierre Bonnard - O Jardim (1937)

Jardim de mil flores,
verdes, azuis, assim são
os grandes amores.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Da alma decepcionada

Ferdinand Hodler - Alma decepcionada (1891)

A decepção, qualquer que ela seja, é sempre o sinal e a prova de uma ilusão. Se o mundo, o outro ou mesmo o próprio eu são motivos de decepção, isso significa que uma fantasia se apoderou de nós e perverteu a avaliação. Na base dessa perversão está sempre a maquinação da vontade egoísta que, desejando apoderar-se da realidade e sentindo-se impotente para tal, tece uma ficção que confirme o seu desejo. Quando a realidade fala, a trama rompe-se e o espírito vê-se confrontado com a decepção. Esta impõe, então, uma escolha: fazer-se de vítima, de alma decepcionada, ou aceitar o caminho da pobreza de espírito, que não é outra coisa senão o contínuo exercício da humildade perante a realidade e a verdade.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Libertar-nos da multidão

James Ensor - The Entry of Christ into Brussels (1888)

Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida, como ovelhas sem pastor (36). Disse, então, aos seus discípulos: «A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos (37). Rogai, portanto, ao Senhor da messe para que envie trabalhadores para a sua messe (38).(Mateus 9:36-38)

Este versículos parecem sublinhar a necessidade do pastorado como forma de guiar os homens, dominando-os. Esta leitura, porém, é demasiado apressada e elimina toda a dimensão crítica contida no texto. Onde reside essa dimensão crítica? Está toda na consideração que é feita sobre a multidão, sobre aquilo que foi teorizado no século XX sob a categoria de massa. A multidão ou a massa não é um valor positivo. Pelo contrário, é o que é digno de compaixão. A palavra compaixão tem aqui o seu significado radical de sofrer com. A multidão sofre e gera naquele que não pertence à massa a necessidade de sofrer com ela e por ela. A multidão está cansada e abatida, pois perdeu a direcção e o caminho. Ovelhas sem pastor.

Esta apreciação da massa e da necessidade do pastorado está assente sobre o silêncio de uma outra categoria, a do indivíduo. Para lá do rebanho há o indivíduo. Sobre este nada é dito, mas surge, em contraponto com a multidão, como uma categoria positiva. Surge representado naquele que tem compaixão pela multidão, Cristo. Indivíduo é aquele que encontrou o seu caminho, que se dirige por si mesmo, que é autónomo, pois descobriu em si o seu próprio guia. Isto altera a interpretação que se faz do pastor. O pastor não vem para dominar o rebanho, mas para libertar os indivíduos que há nele, para transformar o rebanho num reino de seres livres e responsáveis, à imagem e semelhança daquele que sofre pela multidão. O pastor veio para retirar cada um do rebanho, para nos libertar da multidão.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Poemas do Viandante (425)

Rockwell Kent - Admiralty Inlet (1922)

425. Coleccionas paisagens aquáticas

Coleccionas paisagens aquáticas,
metáforas enlouquecidas,
memórias presas na imagem,
a servil solidão no peito.

O sono desce nos dias de calor.
Sufocas, abres a janela,
e deixas correr a água inflamada
nas veias brancas da tarde.

Ao crepúsculo, ainda esperas.
O vento vindo do norte,
o eterno derreter das últimas neves,
o coração apaziguado, o esquecimento.

domingo, 7 de julho de 2013

Poemas do Viandante (424)

Urgell Inglada - Jardim abandonado

424. Cenário de terra e ervas

Cenário de terra e ervas,
sementes, folhas mortas,
um traço de poeira,
a cinza rosada do céu.

Se o vento, fortuito, cantava
ou uma ave caía na memória,
o fogo descia na terra
inundada de estios.

Restam algumas árvores,
a estátua abandonada
e uma pergunta esquecida
no bulício do coração.

sábado, 6 de julho de 2013

A viagem e o carrossel.

Arpad Szenes - Carrossel (1937)

A viagem não é uma volta de carrossel. Não é que divertimento daquele que toma o caminho lhe esteja interdito, pelo contrário. O caminho não deixará de ter os seus momento de grande humor, fundamentalmente quando o viandante se confronta com a risibilidade das suas ilusões. A viagem, contudo, não é um passeio em torno de um eixo fixo, mas a descoberta de que não há fixidez nem eixo, apenas um infinito caminho aberto.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

O jockey enquanto figura

Toulouse-Lautrec - The Jockey (1899)

Olhamos o quadro de Toulouse-Lautrec e corremos o risco de nos deixarmos arrastar pelo hábito e pelas ilusões que este introduz no nosso julgamento. A ilusão está em centrarmo-nos no carácter desportivo e competitivo representado, a corrida de cavalos e as apostas. O jockey pode, todavia, ser olhado como uma figura metafísica, como uma metáfora do viandante. Não é a competição que está em jogo, mas a harmonização entre o homem e o cavalo, entre razão e natureza, entre aquele que peregrina e o veículo da peregrinação. Não se trata de dominar o cavalo, de lhe impor um caminho, mas de se fundir com ele, durante a viagem, de serem apenas um. Como se, pela arte de cavalgar, a separação que cinde o homem em dois fosse cerzida e, naqueles instantes, o homem tivesse um vislumbre da sua verdadeira natureza.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

O viajante adormecido

Antoni Guansé Brea - Les voyageurs (1955)

O pior que pode acontecer ao viajante é adormecer na viagem. Não são apenas as paisagens múltiplas que perde, mas as metamorfoses que elas provocam no espírito. Ao deixar escapar a hora de cada metamorfose, é a si mesmo que perde. A viagem vai de si para si mesmo, vai desse si que secretamente , inconscientemente, somos ao si que, de metamorfose em metamorfose, descobrimos no confronto com as várias paisagens por onde o vento nos leva. O que adormece na viagem perde a hora do reconhecimento. Ao acordar, apenas o sono espera por si.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Crer sem ter visto

Pablo Picasso - El viejo guitarrista ciego (1903)

Porque me viste, acreditaste. Felizes os que acreditam sem terem visto. (João 20:29)

Neste texto de João estamos perante dois modos de formação de uma crença. A primeira tem uma dimensão empírica. Crê-se em algo porque se constatou e verificou empiricamente essa coisa, esse  facto ou esse acontecimento. A outra diz respeito à formação da crença sem recurso à constatação empírica. O texto é surpreendente por dois motivos. Em primeiro lugar, há uma clara menorização do conhecimento empírico, uma desvalorização da necessidade de certificação de uma certeza, como se estivesse incoativa, nas palavras de Cristo dirigidas a Tomé, uma censura ao empirismo e à ilusão dos sentidos. 

Em segundo lugar, é introduzida uma transição de um discurso de carácter epistemológico, para utilizar o jargão filosófico, para um discurso onde a ciência (dada num crer) se funde com a ética e o desígnio de uma vida feliz. Felizes são aqueles que, mesmo cegos, chegam à verdade. Esta não depende da acuidade dos sentidos, mas da disponibilidade para ser acolhida. E aqui não há nenhum apelo ao dogmatismo e à imposição da verdade a quem quer que seja. Há apenas a distinção de que uns serão felizes e, provavelmente, os outros não. A felicidade depende do conhecimento, mas do conhecimento que nasce do acolhimento e não da certificação empírica.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Haikai do Viandante (150)

Urgell Inglada - Barcas contraluz

Incêndio no mar.
E se o sol adormece,
chega o luar.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

O caminho do Vento

Felix Vallotton - The Wind (1910)

O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito. (João 3:8)

Uma das metáforas mais conhecidas do Espírito é a do vento, esse vento que sopra onde quer, mas do qual não sabemos origem nem destino. Nascer do Espírito é, assim, integrar-se num não saber, é abandonar a certeza, seja aquela que nos diz de onde viemos, seja a outra que aponta um fim. Este não saber significa tornar-se flexível, aprender a não resistir ao vento, mas curvar-se segundo o sopro que nos atinge. Aquele que resiste ao Espírito acabará despedaçado, mas o que se curva, levado pelo sopro, encontra o caminho que o Vento lhe indica.

domingo, 30 de junho de 2013

O olhar retrospectivo

René Magritte - El maestro de escuela (1954)

Disse-lhe ainda outro: «Eu vou seguir-te, Senhor, mas primeiro permite que me despeça da minha família.» Jesus respondeu-lhe: «Quem olha para trás, depois de deitar a mão ao arado, não está apto para o Reino de Deus.» (Lucas 9:61-62)

Há dias, no contexto do Antigo Testamento e a propósito da mulher de Lot, abordou-se aqui a questão do olhar retrospectivo. Com estes versículos do evangelho de Lucas, mas também com os que os antecedem, retorna-se à punição do olhar para trás. A questão é introduzida pelo desejo de se despedir da família ou, noutras traduções, dos que que estão em sua casa. Esta indicação é preciosa, pois permite alargar o grau de compreensão  da resposta dada. Naquele que quer despedir-se da família ainda permanece um desejo do que é familiar, daquilo que pertence ao reino do habitual, à forma convencional de ser, de estar e de olhar o mundo. Não se trata de uma crítica à família, mas de tornar claro que a via proposta (o Reino de Deus) não está no hábito, não está naquilo que se tornou  familiar para a consciência. Ela não é uma convenção mas uma efectiva aventura.

Olhar para trás é o sinal de pertença a este mundo, que a sua imagem ainda move o desejo e o coração, que ainda não se está perante uma consciência pura e uma vontade liberta das seduções que o familiar traz consigo. O uso da metafórica agrícola - deitar a mão ao arado - é de uma grande precisão. Olhar para trás quando o arado sulca a terra implica o enviesamento, o sulco deixa de ser um recto caminho para passar a ser o fruto da distracção e do acaso. Quem olha para trás não vê aquilo que à frente chama por si. Naquele que diz que quer seguir o Senhor e, ao mesmo tempo, deseja olhar para trás, nesse, o coração ainda está dividido entre a segurança do familiar e a incerteza e a aventura de penetrar no não familiar, no inabitual. Todo o olhar retrospectivo é uma confissão de uma vontade que ainda não abriu mão daquilo que a seduz, que ainda não está pronta para o caminho.