sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (368)

Achille-Etna Michallon - Ruinas del Teatro de Taormina en Sicilia

368. A RUÍNA, UM MISTÉRIO QUE HABITA AS COISAS

A ruína, um mistério que habita as coisas,
partícula invisível no centro do coração,
a pulsão infernal vestida de alegria e esperança.
Como podem os homens aguardar pela sentença
da história, pequena meretriz que se vende na rua,
e dela fazerem trono e altar, viagem e romaria?

Ela marcha presa na voragem do anjo
e  sob os seus pés caem praças e jardins,
a breve violeta que plantara para as tuas mãos.
Mal chega, a rutilante estrela da vida fenece,
entrega-se lívida à combustão da dor,
às brechas que rasgam a parede da alma.

Hoje não precisamos da chegada dos exércitos.
O inimigo vive entre nós, em nossa casa,
e alimenta-se do vurmo que escorre dos corpos,
enquanto canta nas trevas da adolescência,
enquanto soletra, nome a nome, o destino
que um ódio nascido na febre a cada um reserva.

Insensato terramoto que me rouba a pátria,
os dias em que caminhei a teu lado,
a tua mão que se abria para a ânsia da minha.
As muralhas foram derrubadas e as casas ardem.
Os ratos correm pelos campos vazios
e o sino da minha igreja calou o bronze da sua voz.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (367)

Brueghel el Viejo - Mundo Traidor (1568)

367. DESFEZ-SE O ANTIGO CÍRCULO ONDE SE REUNIAM

Desfez-se o antigo círculo onde se reuniam,
para pronunciar longos veredictos
e assim colocar o mundo nos eixos,
de onde a cegueira dos homens o desviava,
lançando-o, incautos, na penumbra abissal,
as ruelas vazias e as praças incendiadas.

Vagueiam perdidos os velhos juízes,
cegos e sem préstimo por caminhos em ruínas.
Comungam o antigo ardor pela coisa justa
e a dura pena que o tempo lhes trouxe.
Olham e não reconhecem nos campos
a erva verde ou a sóbria seara sob o vento.

Tremem-lhes as mãos e o dorido coração,
a chaga febril, a impiedade contra eles lançada.
Desejam célere a morte que não vem.
Desejam escura a noite que o dia não traz.
Desejam cegos os olhos que tudo divisam.
Eles, alicerce onde a vida triunfante florescia.

Fruste a casa que a ombreira me oferece.
Encosto-me e avisto ao longe vultos de sombra
e seda, velhos peregrinos exaustos de caminhar.
Chamo-os e quando chegam digo-lhes que a justiça
esteja convosco. Sorriem e sentam-se a meu lado.
Na parede uma rosa; pão e vinho sobre a mesa.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (366)

Joan Ponç - Suite Inquietude (1947)

366. O DESASSOSSEGO É FEITO DE SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

O desassossego é feito de semelhanças e diferenças,
uma espécie de doença venérea comprada
nas noites em que a insónia canta sobre o cansaço,
e traça a vida com régua e esquadro
para a entregar, mal chega a manhã, ao serralho
das equações e dos problema irresolúveis.

Na face, trago esculpido esse fundo sobressalto.
Nem o sol nem a lua têm poderes para me curar
e a água do mar vem carregada de dor e solidão.
Oiço a estridência a anunciar o amola-tesouras
e penso: vai chover, enquanto o dia se afunda
na angústia que vagarosamente de mim se deslaça.

Passou a hora em que o teu corpo me trazia a certeza,
a exuberância do animal triunfante na selva,
a suprema saúde de nada haver para meditar.
Tocava-lhe na branca fragilidade da pele
e não havia fórmulas ou regras que me contivessem,
palavras tomadas pelo assalto do pensamento.

O tempo parece abrandar, ouve-se o chiar das rodas
nos carris, uma nuvem de faúlhas perdidas no ar.
Sentado, entrego-me a uma rememoração esquálida.
As palavras mirram, perdem sentido e secam,
eram as últimas flores que te deixara nas mãos
antes de tudo ter escurecido na noite que se levanta.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (365)

Odilon Redon - Port Breton

365. OS GESTOS COM QUE DESENHAVAS A LEVEZA DOS DIAS

Os gestos com que desenhavas a leveza dos dias
tornaram-se pesados. A tirânica ofensa trazida
pelo passar do tempo, pelo rumor inquieto das águas,
as que correm enfurecidas sob o véu da tempestade,
tornou-se gelo, pedra, chumbo em teus ombros.

O fulgor que te habitava apagou-se
e a linha do horizonte perdeu distância.
Os barcos não passam de sombras no mar,
onde já não distingues neblinas e crepúsculos,
a promessa de um mundo para lá das frias águas.

Tudo isso estava cifrado na carne vigorosa,
uma ameaça suspensa na verdura dos anos,
o grito do corvo na aurora vazia do mundo.
Mas que importa aos que exultam de saúde
a herança sombria que transportam consigo?

O peso que te comprime e inclina o corpo
é a vida triunfante que, cansada do velho olhar,
corre lúcida e bela para um novo cais.
Os barcos virão num lampejo de céu azul
e como tu outro sentirá o vento da primavera.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (364)

Ana Peters - Niebla (1998)

364. CHEGO AO LIMITE ONDE A PAISAGEM SE DESVANECE

Chego ao limite onde a paisagem se desvanece
e os trilhos, em que caminhei, se apagam.
Olho e a tudo a névoa cobriu,
instalando sobre o mundo um véu igualitário,
ao geminar planícies e vales, montanhas e rios,
o mar com as suas trevas de sal e areia.

Nesse exercício de cegueira espero por ti,
e na queda de cada folha suspeito passos,
um bater de coração, a ruidosa pulsação do amor.
Mas o tempo, adverso ao desejo, rasga o papel
da esperança, a anunciadora do óbito a vir,
e joga-me no fundo das masmorras da terra.

Não há metáfora que ilumine esse lugar,
nem símbolo que indique a ascensão.
Resta ao viandante a cegueira por guia
e, na cerração que o envolve, caminhar,
traçar itinerários a que nunca voltará,
vigiar no fundo da alma a ilusão da manhã.

domingo, 23 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (363)

Max Ernst - At the First Clear Word (1923)

363. AS MINHAS PALAVRAS PERDERAM A ANTIGA CASA

As minhas palavras perderam a antiga casa,
são agora trapos a errar por sendas escarpadas,
caminhos desconhecidos,
sem promessa ou imperativo que as guie,
retire da escuridão e as abra
para a luminosa praça da compreensão.

Pobres e loucas palavras chegadas ao outono,
perdidas no jardim do verão,
a deambular por ruas destroçadas
e praças vazias.
Para elas não há sentido disponível
nem estrela polar, não há fonte
onde matem a sede e a vida retorne.

Por vezes o poema era um sonho de ressurreição,
a esperança do corpo descobrir,
no vão escuro de uma viela,
o espírito antigo, a tensão viva
que iluminava estrelas
e incendiava o sol nocturno do inverno.

Agora sinto em cada palavra dita
a cegueira que chega,
que se eleva para o mundo,
traça uma rota de solidão,
e cai, sílaba a sílaba, sobre os ombros,
inclinando a vida para toca da morte.

sábado, 22 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (362)

Ben Shahn - Sing Sorrow (1946)

362. MUITAS HORAS VAGUEEI PELAS RUAS

Muitas horas vagueei pelas ruas.
Procurava um gesto,
a sombra de uma árvore,
o indício de uma voz,
o mar encapelado que me traria
o teu rosto.

Em vão passaram dias e meses.
Uma úlcera nasceu na alma,
cresceu pelo corpo,
traçou caminhos sem destino,
a terra queimada,
lâmina a sangrar-me os pés.

Peço-te a gangrena de uma palavra,
a prova inútil da solidão,
o cadáver do amor,
para que o luto desça
nos meus olhos,
que derrotados possam descansar.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (361)

Julio Gómez Biedma - Un agujero negro

361. SOBRE AS FALÉSIA DO SENTIMENTO, A NOITE ABRE-SE

Sobre as falésias do sentimento, a noite abre-se
para te acolher num jardim moldado na terra,
o lento trabalho do secreto formigueiro
sob o abençoado cântico da cigarra.
Para que servem as alegorias nesta hora?
Ouvem-se os pássaros na rocha negra,
e no areal rasgado pelas águas espalham-se
algas, conchas, restos de plástico e madeiras
carcomidas, o ardil antigo do comércio.

Todos se acercam, ociosos, do seu destino,
e vão triunfantes sobre ervas e caminhos,
esquecidos de quem no fim os espera para entoar
a canção, a vitória desolada sobre a vida.
Leio o livro do Êxodo e adormeço tranquilo,
as portas fecham-se e os teus olhos cobrem-me
com a seda amena que te nasce no coração.
Sonho inquieto com a volúpia estendida no umbral
e oiço o pulsar brando da melancolia da manhã,
a voz tecida no uivo que ressoa em cada palavra.

Uma lacuna de sangue abre-se na memória,
poço negro e frio, ventoso e sem fundo.
Grito, mas o eco não me devolve a voz
e uma vertigem traça-me a fogo o ventre,
cresce nos ombros e derrama-se no cérebro.
Por ali, entra a serra que o distante passado me dera
e a infância vazia de tudo o que nela crescera,
o jardim que as mãos desenhavam num caderno
sem folhas nem capas, apenas uma breve memória,
a falésia escarpada na volúpia da aurora.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (360)

Paul Cezanne - Mountains in Provence (1886-890)

360. A COR MUSICAL DAS TUAS PALAVRAS ERGUE-SE

A cor musical das tuas palavras ergue-se,
risca a casa de uma ondulação suave,
o mar avistado de longe sob o império
da neblina, meio caminho entre luz e trevas,
argúcia da vida ao proteger-nos do fogo
ou do frio das intempéries vindas pelos dedos,
para rasgar o lençol molhado da solidão.

Retomo o caminho que me deste na infância.
Só assim te oiço cantar na lonjura deserta,
os caminhos cortados e rios intransitáveis,
a música que vinha desabar em mim
e me lembrava de que teria um corpo e uma alma,
as faces descobertas voltadas para o sol,
a recordação de cada povo que dorme em mim.

Pego-te na mão em silêncio e olho as árvores.
Aguardo que a boca se abra para o fogo
da montanha, onde uma casa de colmo espera
por nós, as janelas inclinadas ao vento,
o segredo que um deus te deixou nos lábios.
O solo coberto de ervas frescas abre-se aos teus
passos, e uma estrela murmura na tarde: vem.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (359)

Paul Gauguin - Y el oro de sus cuerpos (1901)

359. TODAS ESSAS PERPLEXIDADES TRAZIDAS NO CORPO

Todas essas perplexidades trazidas no corpo,
a angústia fabricada pelo passar das horas,
uma dor estranha ao dobrar da esquina,
os músculos que se deslassam ou os ossos
doridos, ateando pesadelos na noite,
a face entrecortada aberta no salitre da casa.

Sempre que o outono se aproxima, o calor redobra,
desenha matagais em fogo, tragédias luminosas,
abre sulcos na pele e sobressaltos no coração.
São violentos para a tua alma os meses do estio
e nessa violência se despedem e entregam ao ocaso,
o suspiro aberto no peito, as águas que virão.

De olhos abertos, escondes-me o segredo,
a pele lêveda, o desejo insaciável na noite fria.
Dolente, estendes a mão e tocas-me ao de leve.
Um sino dobra no fausto do passado,
desenha uma canção que a vida esquecera
e agora brilha na caruma baça do dia.

Abre o alvoroço  da tua casa à minha mão
e deixa que o vento sossegue o incêndio.
De todas as coisas que nos cabem, a mais difícil
é a verdade do que somos, a luz impiedosa sobre
a cabeça, o lugar onde o esquecimento nasce
e se derrama para nos salvar, náufragos da ilusão.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (358)

Salvador Dali - Lilas del tiempo

358. O TEMPO NÃO É UMA HASTE OU UM BARCO

O tempo não é uma haste ou um barco,
não é a mão estendida sobre a vida
ou o sopro do vento contra a parede da tarde.
Feroz labirinto de sentido único,
ondulação que vai mas não volta,
espuma tão frágil que logo se dissolve.

Não sabemos de onde veio nem o destino,
apenas as rugas que sulcam a pele,
os dentes cariados com que o mundo devora
a vida, precária flor sobre a terra abandonada.
Lançamos-lhe armadilhas, metáforas, metonímias,
e ele corre serenamente sobre a paisagem,

traça sulcos e chama-lhe rios da memória,
por vezes toma um ar sério e glorioso,
outras não passa do velho andrajoso
que desenha ruínas a que chama história.
Ou gesta ou caminho ou outra coisa sem sentido,
pois o tempo é inimigo da semântica,

cavaleiro que não repousa sobre a terra,
sempre a meio caminho entre o nada que fabricou
e o outro nada que de longe o chama.
O tempo não é uma casa branca de orvalho
nem o rosto da lua na vastidão negra do céu,
mas o desejo que me prende ao que não aconteceu.