Julio Romero de Torres - Canto de Amor
357. NÃO É VÃO AQUILO EM QUE O AMOR SE DEPOSITA
Não é vão
aquilo em que o amor se deposita
e traz da
invisível obscuridade para a luz,
fazendo
eclodir sobre as águas uma sombra,
o cântico
sereno do que chega à plenitude.
Nesse
extremo cuidado de tudo cuidar abre-se
a lâmpada
radiosa e sem mácula do meio-dia,
a hora em
que o universo, por instantes, suspende
a marcha que
o impele sempre mais além,
para redesenhar
fronteiras e criar, onde nada
havia, o
espaço para a nossa funda interrogação.
Aqueles que
mais amam são os que perguntam.
Em cada
pergunta cindem um átomo de amor,
pura energia
libertada sobre as paisagens,
que se
levantam perante os olhos da alma,
que assim
vislumbra o mundo e a matéria,
as flores
recolhidas no abraço de um ramo
deixado,
como sempre fizeste, junto à parede
do fundo, a
antecâmara dos dias felizes,
as horas em
que, crianças sem ocupação,
nada sabíamos
da nossa eterna sabedoria.
E logo que o
nosso amor toca na raiz,
a árvore
floresce e desdobra-se depois
em frutos,
as tuas mãos presas nas minhas,
o teu corpo
despido sugado pelo meu.
E a tudo o amor
liberta da ávida servidão,
aos homens
que perante o nada se ajoelham,
aos anjos
que se calam diante do desastre,
a Deus preso
no silêncio com que cobre a vida,
a deixa
levedar entre miasmas de dor
e as rosadas
pústulas do incerto prazer.
Canto nesta
manhã a pura ascese da matéria,
o triunfo de
cada corpo sobre o caos,
o ronronar
flébil das agulhas na vastidão do
pinhal,
breve pomar de antigas caravelas,
promessas
que o tempo trouxe e logo desfez.
O fogo decanta
o amor da impura inclinação
e abre-o para
as paisagens que o amante
descobre na
terrível solidão da coisa amada,
pomar vazio
à espera de um olhar incendiado,
uma porta para a clareira do súbito fervor.