quarta-feira, 25 de julho de 2012

Poemas do Viandante (310)

310. A NÉVOA MATINAL RETIRA-SE TARDIAMENTE

a névoa matinal retira-se tardiamente
após luta tormentosa o sol venceu a noite
e veio mostrar o fulgor do dia
os imperativos cintilantes do ofício da vida
aquilo que do subterrâneo chama os homens
os cativa e lhes rouba suor e sangue
a pequena porção de lágrimas a chorar

a tristeza com que velas a face
e todas as coisas que fogem ao teu desejo
são pequenos animais bravios na cidade
páginas em branco onde recusas ver a escrita
pequenas mensagens que a vida deixa
na pegada de uma história por acontecer
se são dias em que o sol tarde se levanta

alguém pega no telemóvel e fala e fala
um rumor de palavras numa corrente ébria
a pressa de dominar o dia e a semana
pequenos projectos em luta conta o destino
o terrível encontro em samarcanda
pois seja dia ou noite o obstinado anjo
veste-se de negro e sai para ganhar o pão

sobre mim vêm moscas e melgas
insectos fugidos da demência do inferno
abrem uma fissura na grande muralha
e entram silenciosos casa adentro
destroem sonhos e férteis desejos
agora grandes naufrágios no mar da vida
pobre metáfora sem dor ou consequência

encerro-me na solidão que me habita
e vejo o mundo fora do mundo
e tudo o que eu amo chega até mim
em fragmentos e pequenas imagens
são avisos e injunções ou pequenas ordens
que me dobram à exígua realidade
o exercício contumaz de uma cobardia

se pudesse ofereceria cursos de silêncio
o modo como os lábios se devem cerrar
e manter a língua presa na caverna da boca
ensinaria a constância de cismar calado
ser gato ou velho à espera da morte
naqueles jardins vazios e sem flores
bancos de madeira onde me sento e te espero

terça-feira, 24 de julho de 2012

Poemas do Viandante (309)

309. AINDA PODEMOS SONHAR REGATOS DE ÁGUA LÍMPIDA

ainda podemos sonhar regatos de água límpida
e caminhos de terra batida no segredo da floresta
mas são sonhos de citadinos exaustos
marcas ligeiras na palidez da face
a nostalgia de quem há muito perdeu o lugar
e do mundo apenas conhece o fluir do trânsito
a angústia das horas-de-ponta na vida assim desvivida

sonhos são exercícios de culpa trazidos pela noite
máscaras de veludo para amortecer a dor
um pequeno manual para actos de contrição
aprendemo-los na longínqua infância
como uma garantia contra o desvario
os espinhos que a vida traz
amuletos para a má-fortuna ou amor ardente

pego no sonho que me trouxeste
e abro-o para descobrir a sua verdade
a ferocidade da roseira coberta de espinhos
o sangue a golfar na raiz da vida
e todas as noite que terei para dormir
esquecido da cidade e dos que nela morrem
perdido na água pura da floresta que me espera

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Poemas do Viandante (308)

308. O PUDOR VINDO DO FIM DOS TEMPOS

o pudor vindo do fim dos tempos
tomava-te conta das faces
ardia suavemente se anoitecia
bago de romã e espiga de milho
murmúrio interior do sangue
no subterrâneo da vida

recapitulemos os dias de amor
a devassa do olhar
a esperança de uma promessa
longos passeios de mãos dadas
num mundo subitamente vazio
aberto aos desígnios do sentimento

se chovia na inclemência do inverno
a casa era um abrigo de seda
ali ouvia-te cantar
um hino em acção de graças
e uma oração nascia-te nos lábios
um relâmpago que me iluminasse o coração

domingo, 22 de julho de 2012

Poemas do Viandante (307)

307. NESTE VAZIO SEM NOME NASCE UMA LUZ

neste vazio sem nome nasce uma luz
entre um renque de árvores outonais
ilumina-te os passos se entardece
incendeia o coração de quem passa
e quer pôr os pés na areia limpa
para escutar a rebentação

colecciono sombras a arder nos teus dedos
guardo-as numa caixa trazida de longe
de uma terra sem noite e sem sol
de uma terra de arquitectura branca
e madeiras perfumadas
pelo odor bravio de uma selva azul

por vezes julgamos ser um limite
mas a estrada abre-se e rasga o horizonte
é sempre assim que acontece
se a matéria do teu trabalho é luz ou sombra
o fim nunca é o fim
e mal termina o canto outro recomeça

sábado, 21 de julho de 2012

Poemas do Viandante (306)

João Queiroz - Desenhos a carvão

306. NO SÍTIO ONDE O PERIGO SE ESCONDE

no sítio onde o perigo se esconde
há também o rumor de um anjo
e se caminhas febril na noite
um deus traz-te um sonho
água fria na concha da mão
ou o vento do espírito
para o corpo assim viajar

quando findo o calor vem o outono
um ar frio ecoa pelo bosque
não vale a pena desfolhar palavras
nem erguer uma vã teologia
bastam as ervas secas
e algumas pedras maduras
para o milagre continuar

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Poemas do Viandante (305)

João Queiroz - Desenhos a carvão

305. NÃO TENHO NESTE MUNDO

Para os meus filhos

não tenho neste mundo
outro melhor para vos dar
apenas o caminho vazio
na crosta da terra
sem marca de início
nem meta por destino
apenas flores no paul
e o vento frio do norte
não tenho neste mundo
uma aurora de rosas
ou um eterno recomeço
resta-vos pôr os pés na terra
e continuar a andar

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Poemas do Viandante (304)

João Queiroz - Desenhos a carvão

304. QUE FAÇO DESTE RISCO NO PAPEL

que faço deste risco no papel
ardil de um bosque
uma sombra ensanguentada na manhã
a tua pulsação na ânsia
do amor

deixo que chegues no traço enovelado
penso-te e és nuvem
sobre montanha alcantilada
céu denso e negro
água pura a chover sobre mim

uma luz indecisa ruboresce no oriente
e uma saraivada de pássaros acorda
as folhas na madrugada
as estrelas debandam
na estranha paisagem dos teus olhos

se me sento no chão ao teu lado
vejo de perfil a angústia
santuário inexplicável
noite tempestuosa
na serena mágoa do acontecer

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Poemas do Viandante (303)

João Queiroz - Desenhos a carvão

303. ERA UM TEMPO DE DESAMPARO

era um tempo de desamparo
estrada fora
ia preso à sujidade das  mãos
aos dedos grossos
levedados nos campos
as calças rotas sapatos cambados
um cordel por cinto

chegava à aldeia nos dias nublados
sem calor nem chuva
e batia à porta dos pobres
menos pobres
à espera de pão
uma moeda
a sopa fria vinho azedo

esquecera as violetas
e na face não havia sorriso
dor acusação
vinha no orgulho da pobreza
na liberdade da sombra
o chegar e partir
sem declinar nome ou ofício

voltava na privação e olhava-me
de olhos apagados
e eu quieto e hirto tremia
no silêncio da infância
na meia-luz da pérgula

toda a culpa
e toda a penúria ardiam em mim

terça-feira, 17 de julho de 2012

Poemas do Viandante (302)

João Queiroz - Desenhos a carvão

302. DESENHAVA CLAREIRAS NA FLORESTA

desenhava clareiras na floresta
e se o cansaço crescia
deixava-me ali dormir
exposto à luz
cerzido ao chão
esperava o milagre

se chovia
o corpo fundia-se na lama
o vento soprava
e a terra acolhia-me
mísero filho pródigo
ao pó devolve a flor recebida
a promessa de uma aurora
a esperança sôfrega de um amor

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Poemas do Viandante (301)

João Queiroz - Desenhos a carvão

301. DEIXO QUE ME TOQUES A MÃO

deixo que me toques a mão
e o peso da tua sombra
me abra os olhos
para a vastidão do céu
a pura alegria
da luz
no súbito raiar de uma estrela

deixo que cantes na noite
um presságio
as ervas secas no verão
tudo o que o amor tem
para esquecer

deixo que tragas um búzio
para escutarmos o azul do oceano
o rumor incerto das águas
todos os mistérios
que a alma esqueceu
ao inclinar-se
para o murmúrio da vida

domingo, 15 de julho de 2012

Poemas do Viandante (300)

João Queiroz - Desenhos a carvão 

300. ANIMA-ME O ENTARDECER

anima-me o entardecer
o lento movimento das mãos
o sóbrio rascunho de um nome
infeliz promessa rasurada
no verso da página

fecho o jornal
e dobro as notícias
para esconder do olhar
o desmando do mundo

projecto uma clareira
e preencho-a com o teu corpo
dispo-o
e o tempo escorre-te na pele
um regato de luz
uma ânsia de rio
o entardecer na planície do mar

sábado, 14 de julho de 2012

Poemas do Viandante (299)

João Queiroz - Sem título (?)

299. O SENTIMENTO DE QUE TUDO ESTÁ PERDIDO

o sentimento de que tudo está perdido
a voluptuosa decisão de deixar o mundo entregue
ao desvario da humanidade ou à rotação dos astros
fonte de prazer e secreto amor da perdição
um espelho gasto onde a alma se vê
murmúrio que trespassa a cólera da inocência

invento aos teus olhos um idioma
as palavras são secas e as vogais fechadas
e componho longas cartas
promessas de amor nunca cumpridas
um tratado breve sobre vulcões
e a pequena liturgia com que adormeço

espero-te na fímbria dos dias claros
espero-te na orla das trevas
o meu coração é um deserto sem pólen
uma fornalha esfriada pela noite
pobre flecha que perdeu o alvo
rumor sinistro na glória do teu esplendor

poderia voltar ao velho para quê de holderlin
mas não me cabe tão tormentosa questão
descobri que todo o tempo é de indigência
pois ele o ladrão tudo a todos rouba
e quanto mais furta mais pobre ele é
nesse seu eterno fluir para lado algum

ao acordar nunca sei onde estou
se na cidade que vejo ou na montanha sonhada
nunca sei o que faço nesta cama
e o que cobrem os lençóis que me cobrem
ao acordar estou já cansado do que vejo
e o sono pesado inclina-me para a escuridão

amo senhor a pobreza que me deste
a pequenez velada da adolescência
os dias incongruentes em que crescia
amo acima de tudo o nunca ser amado
pequena sombra entre estrelas rutilantes
o chão de terra que me deste por habitação

pego num livro e percorro-lhe as páginas
e a memória vai passado afora
entra dentro daqueles cidades
que no deslumbramento da viagem amámos
um amor breve e incendiado
as ruas percorridas de mãos dadas

desisti de cada teoria que estimei
componho o jardim com frases soltas
pequenas citações e plantas anémicas
a água está cara e tudo morre à sede
a dialéctica dos dias e a analítica da morte
o borbulhar inconsciente do coração

um homem novo prometeram-nos
mas a semana passou e a mercadoria perdeu-se
os caminhos estão perigosos
os bandoleiros não descansam
e o comércio prefere vender água destilada
e caramelos turvos e sem açúcar

sou velho e na minha velhice falta-me a flor
a memória dos dias em que o não fui
a possibilidade de um dia ter sido exuberante
nada em mim se ilumina ao rememorar
nada em mim se incendeia pelo fogo do passado
nada em mim requer outra hora que não esta

nos dias de chuva olho as gotas na vidraça
e lá fora passam carros aquáticos
dois cães molhados ganem nos semáforos
e sob os guarda-chuvas há rostos que não sei
deles vem até mim uma sombra pálida
o grito emudecido que cantava na boca

sou um citadino exilado no ventre da cidade
pobre apátrida de olhos velados e mãos frias
gestos imprecisos semeados à luz do dia
passam macilentos e cansados os eléctricos
uma música suave sobre o chão em fogo
e tudo em mim se encerra na prisão da tarde

o que fiz com os sonhos que a noite oferecia
estranha pergunta de quem sofre de alucinações
e deseja com ardor um momento de lucidez
a hora onde o sonho se esvai
e tudo na realidade se torna plausível
os carros a lua ou o anel de noivado que esqueci

sempre pensei que uma metáfora era um náufrago
o desespero abandonado nas águas do oceano
a frágil capa que punhas nos dias de inverno
rememoro cada hora passado nos escombros da vila
o cerco antigo posto às muralhas decrépitas
o escândalo de nunca ter amado o rock-and-roll

lembro-me de ti senhor se troveja
ou um incêndio cobre as matas e os campos
fogaréus brancos na esplanada das mãos
trago a vida vazia no bolso do casaco
e a lua chega sempre em quarto minguante
uma promessa adiada na penumbra do amor

estará tudo perdido neste tempo fruste
na hora onde esquecemos o que nos ensinaram
esses antepassados que julgámos ridículos
presos na erva das suas convenções
apertados no estreito vestido herdado
cansados do joio que a manhã trazia

a mácula do sentimento é inútil
disseste e entregaste-te nos meus braços
a cabeça inclinada e o coração descompassado
bebi o vinho que havia em ti
e adormeci sobre o corpo baldio
enquanto um sino tocava as trindades

invento mansamente o ardor do instinto
e jogo ao crepúsculo a sorte bravia
o que vier trará a sua luz sobre as trevas
e quando o galo cantar na madrugada
um novo espírito virá sobre a montanha
e para mim tudo será crepúsculo