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segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A rapariga da bicicleta

Rodney Smith, Anika on Bicycle, 1993
Ela vinha de bicicleta por uma álea e parava diante de nós, a certa distância. Olhava-nos. Corria o boato de que vivia na floresta e, quando nos voltava as costas, para lá retornaria. Ninguém o confirmou. A palavra cobardia será a mais adequada. O fascínio que sobre nós exercia era tão grande quanto o terror que sentíamos se os nossos olhos encontravam os dela. Raramente a vanglória das palavras corresponde à grandeza dos actos. Estávamos todos apaixonados. Não houve quem dela se aproximasse. Um dia, desmontou da bicicleta e começou a caminhar na nossa direcção. Vou escolher um, disse. Fugimos miseravelmente. Nunca soubemos o que lhe aconteceu. Nenhum voltou àquele sítio. 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

A pianista

Emmerico Nunes, sem título, 1908

Entre todos os salões que frequentei havia um especial. Nele, uma pianista dava um pequeno recital. Nunca passava de meia-hora. Todos diziam ser perfeita a sua técnica e grande o talento com que nos fazia imaginar as mais diversas cenas. Muitas vezes me senti numa paisagem bucólica ou experimentei a vertigem causada pelo perigo que nos espreita no mar ou no alto de uma montanha escarpada. A última vez senti-me um gato. O pior é que os outros convivas passaram a ignorar-me ou enxotavam-me com rudeza. Se lhes dirigia a palavra, clamavam que o gato não parava de miar. Mesmo a dona da casa chegou a pegar-me ao colo, o que me desconcertou, e fazia-me festas como se eu ronronasse. 
 

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

A jogadora de damas

Abel Manta, Jogo de damas, 1927
Ela estava na sala de jogos do clube. Deve conhecer esse género de instituição de província. Nunca a vira ali. Não foi uma súbita atracção. Entrou vagarosamente no meu círculo. Um dia, estarão a fazer cinco anos, virou-se para mim e, olhando para o tabuleiro de damas, perguntou-me se sabia jogar. Respondi que sim, tinha até vencido vários torneios. Óptimo, disse, vamos jogar. Qual será o prémio, perguntei. Se ganhar, casarei consigo. Apaixonei-me por ela nesse momento. Começou então o meu suplício. Todos os dias ela joga uma partida comigo. Além de mim, ainda defronta mais meia dúzia de pretendentes, a quem fez a mesma promessa. O que me mantém vivo é ela continuar solteira.  

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Os alegres cantores

Lucien Aigner, Paris, 1930
Primeiro, comiam e bebiam. Depois, bebiam e conversavam. De seguida, bebiam apenas. Por fim, cantavam estranhas canções e riam. Via-os todos os dias. Quando o concerto acabava, sempre com um Hosana, iam-se embora, em fila encabeçada pelo mais jovem Desapareciam do meu horizonte. Foram anos a fio. No dia em que começou a segunda guerra, não vieram. Nunca mais voltaram. O enigma nunca deixou de me atormentar. Quem seriam? Cheguei a imaginar que eram anjos, mas sou destituído de fé e acabo sempre por sorrir da conjectura. Por vezes, porém, oiço os seus cânticos. Nos dias em que a existência me é mais insuportável, as suas vozes descem sobre mim. Respiro fundo e a vida continua. 

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

A rapariga do bar

Querubim Lapa, Bar, 1946
Frequentava um bar onde existiam raparigas para dançar com os clientes. Havia uma, esquiva e enigmática, que me fazia arder de desejo. Dançava apenas e nunca permitia sequer que a olhassem nos olhos. Ao contrário das outras, nunca saía acompanhada. Uma tarde, os seus olhos pousaram nos meus. Quase ceguei. Quando saiu, aceitou a minha companhia. Propus-lhe que viesse a minha casa. Anuiu. Mal fechei a porta, beijei-a. Entregou-se com volúpia aos meus lábios. Enquanto dançávamos, despia-a. Ao cair a última peça, descobri que não houvera corpo algum dentro daquela roupa. Nunca soube que lábios beijei ou que olhos me queimaram as entranhas. Uma voz dizia, diz ainda: eu sou a tua loucura. 

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Os jogadores de damas

Júlio Resende, Jogar às Damas, 1945
O que afligia o taberneiro era eles nunca beberem vinho. Não é que não fizessem despesa. Eram até clientes melhores que todos os outros, mas o seu negócio era vender vinho e eles acabavam por desprezar aquilo para que vivia. Chegavam à taberna, sentavam-se diante do tabuleiro e jogavam damas durante duas horas. Todos os dias. Bebiam café e refrigerantes. Comiam sempre qualquer coisa. Eram parcos em palavras, mas não hostis. Os jogos entre eles eram épicos. Tinham uma concentração enorme que os raptava do que se passava ao redor. Chegada a contenda ao fim, despediam-se e saíam. Não havia noite em que não fossem encontrados completamente embriagados, arrastando-se pelas ruas da aldeia.

sábado, 1 de agosto de 2020

Homicídio

Pablo Picasso - La muerte de Casagemas, 1901
Matou-o. Não há aqui um dr. Jekyll que se transforma em mr. Hyde. O caso é mais complexo do que a simples metamorfose. Tratou-se de um acidente ainda no outro mundo, um erro na distribuição. Duas almas, em versão masculina, foram enviadas para o mesmo corpo. Desde o nascimento que conflituam. A situação azedou quando um deles decidiu, agora que iria descobrir os prazeres do sexo, que o corpo seria apenas dele. Não se via a repartir os segredos de Vénus com aquele estranho com quem partilhava o corpo, mas não a alma. Este vendo-se ameaçado, não hesitou. Apontou a pistola à cabeça e matou-o. Não foi um crime passional, mas um acto de legítima defesa.

domingo, 26 de julho de 2020

O mordomo

Susan Rothenberg, Half and half, 1985-87
Chamávamos-lhe o mordomo, não por chiste, mas porque se apresentou assim. Quando voltou do estrangeiro, após reformar-se, ninguém o reconheceu. As maneiras que adquirira estavam nos antípodas das que levara daqui. Contava muitas histórias. Tinha servido uma condessa, onde fizera a formação, dizia, e depois um casal de artistas de Hollywood. Cultuava-os a ambos. Sempre pensámos que eram mentiras. Um dia, porém, chegaram aqui, à aldeia, a condessa e o casal de artistas. Ao vê-los, ficou em pânico. A quem servir agora? Foi aí que descobrimos o seu génio. Dividiu-se em dois. O tronco e a cabeça serviam os artistas, a parte debaixo, a condessa. Só nessa altura acreditámos que ele fora realmente um mordomo. 

quinta-feira, 23 de julho de 2020

A sonhadora

Imogen Cunningham, The Dream, 1910
Sentava-se todos os dias na mesma cadeira. Voltada para trás, segurava-se ao encosto e fechava os olhos. A luz lateral iluminava-lhe parte do rosto. Passada uma hora, levantava-se e saía. O que se passava nela não sei. Posso conjecturar, mas uma boa conjectura é mais autêntica que uma descrição factual. Sonhava. Sonhava sempre o mesmo sonho, não numa pura repetição do mesmo, mas como aquelas pessoas que se aventuram numa gruta inexplorada. Cada dia vão um pouco mais longe, antes de voltarem para o ar livre. Era assim que ela sonhava. Um dia, porém, não voltou do sonho. Perdeu-se nele e não tornou a levantar-se. Está ali há décadas. Espera por quem a traga para fora da gruta que sonhou. [23/7/2020]

sexta-feira, 10 de julho de 2020

A mulher difusa

Saul Leiter, Carol Brown in “Harper’s Bazaar”, c.1958
Dir-lhe-ia que é vítima da ilusão cartesiana. A verdade não reside naquilo que é claro e distinto. Não apenas a verdade, também a felicidade habita o indistinto, o que é turvado pela sombra. A minha mulher, lembra-se dela, variava no grau de definição com que se apresentava perante mim e o mundo. Alturas havia em que era demasiado obscura, a sua presença suscitava melancolia e piedade. Normalmente, o que me tornava particularmente feliz, ela era apenas difusa, não havia nela nem obscuridade nem clareza. Só isso permitiu que a amasse. Um dia, porém, apresentou-se diante de mim clara e distinta. Resplandecia. A sua presença era tão intensa que explodiu. Não tornei a casar.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

O sedutor

André Hambourg, La conversation, 1929
Querem que vos conte uma história, perguntou o homem. Sou toda ouvidos, responderam as duas desconhecidas. Numa noite de Inverno há muitos anos, neste mesmo lugar, um homem encontrou duas mulheres que nunca vira. Era um sedutor e elas, de imediato, sentiram-se atraídas por ele. A certa altura, perguntou-lhes se queriam que ele lhes contasse uma história. Responderam que sim. Ele contou-lhes que há muitos anos, numa noite de Inverno, um homem tinha encontrado duas desconhecidas, que se sentiram de imediato atraídas por ele. Depois de lhes ter contado a história saíram os três. E o que aconteceu ao sedutor, casou com alguma? Quando a polícia o interrogou, confessou que sim, fora ele que as matara. 

terça-feira, 2 de junho de 2020

O tempo

Charles Marville, Rue de Constantine, ca.1865
Tem razão, no século XIX, o tempo deslizava mais lentamente do que hoje. Não se confunda. Eu não quero dizer que um minuto, então, tinha mais segundos. Como hoje, tinha apenas sessenta. Os segundos porém eram mais dilatados, o que tornava os minutos maiores, mais pesados. O efeito sobre as horas era notável. Comparadas com as de hoje, aquelas eram muito mais lentas. Terríveis se havia pressa em que passassem. Lutavam contra a tentação da velocidade. O sucesso foi relativo, como sabe. Se retroceder ainda mais dois ou três séculos, a situação é então incompreensível. Os homens viviam muito menos anos, mas duravam muito mais. Não, não é especulação, nunca falo do que não vi ou experimentei.

domingo, 17 de maio de 2020

Uma surpresa

Gjon Mili, Stroboscopic image of ballerina Nora Kaye leaping. 1947
A primeira vez que a vi foi numa fotografia estroboscópica, onde o seu corpo se decompunha numa multiplicidade indefinida de imagens. A técnica permite muitas coisas, das quais nunca se imagina a realidade. Conheci-a num grupo de amigos dados às artes. Os dias passaram e acabámos comprometidos. Daí ao casamento foi um curto passo. Infelicidade ou cansaço não serão as palavras adequadas. Passados alguns meses descobri que a fotografia que me atraíra era falsa. Não era uma ilusão mas a própria realidade. Ela era muitas. O sonho de qualquer homem? Duvido. Casei com uma mulher e agora tinha um harém em que todas as minhas mulheres eram a mesma, que continuamente se multiplicava. 

domingo, 3 de maio de 2020

O seu mundo

Horst P. Horst, Elsa Schiaparelli, c. 1934
Casei com ela seis meses depois de a conhecer. Foi amor à primeira vista. Recíproco, pelo menos foi o que pensei. Uma vez por outra, dizia que não pertencia a este mundo e sorria. Não havia enigmas no sorriso. Não tivemos filhos, não tinha chegado a altura, pensava eu. Passava muito tempo diante do espelho, mas não mais que outras mulheres. Entre espelhos e mulheres há um trato muito antigo e com ela não seria diferente. Um sábado, antes de sairmos para um jantar de amigos, ela estava diante do espelho. Olhava-o fixamente. De súbito, o seu corpo é sugado pela imagem do espelho e funde-se nela. Volta-se e começa a afastar-se. Olha para mim e diz este é o meu mundo. Nunca voltou.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Cansaço

Duane Michals, Empty New York, 1964
Não, está enganado. Não foi nenhuma ameaça. Não havia guerra nem epidemias no horizonte, a vida corria como sempre. As pessoas cansaram-se. Sim, cansaram-se das outras, do trânsito, do ar irrespirável e foram-se embora. A cidade foi-se esvaziando e hoje não tem mais moradores do que uma pequena aldeia. Para onde foram? Ninguém sabe. Os que aqui ficaram não se interessaram pelo destino dos que partiram. Não temos televisão, nem imprensa, não ouvimos rádio. Caminhamos pelas ruas, observamos os lugares vazios e podem passar-se meses sem que avistemos outro ser humano. Raramente trocamos palavras. Se alguém morre, o mais certo é que não haja quem disso se aperceba. Também nós estamos cansados.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

O homem entre ruínas

Dmitri Kessel, A man walking through the remains of an ancient temple in Athens. 1944
Todas as manhãs era visto a passear entre as ruínas. Verão ou Inverno, chovesse ou fizesse sol, ao raiar da aurora ele aparecia e passeava, durante umas horas, para cá e para lá. Um passo lento, parecia querer absorver o espírito do lugar em cada aspiração. Chamavam-lhe, não sem ironia, o homem entre ruínas. Não se conhece quem tenha trocado alguma palavra com ele, ou quem dele se tivesse aproximado. Formou-se uma tradição de distanciamento e era nessa distância que ele ia e vinha. Um dia, desavisado, um forasteiro dirigiu-lhe a palavra. Ele estancou, olhou-o perplexo e todo o seu corpo se tornou imponderável. À vista de todos, ergueu-se aos céus e desapareceu atrás de uma nuvem.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Gatos velhos

James Van Der Zee, Smart Cat, 1931
Não foi tão difícil quanto pode pensar. Também me surpreendi, mas só uma crença ingénua na uniformidade da natureza pode achar acontecimentos destes um milagre. Não são, pois muitos são os caminhos que as coisas podem tomar. Formei o projecto dois meses depois de terem chegado cá a casa. Quando estava a ler, eles ficavam a olhar para mim, não miavam nem me interrompiam. Um dia tentei ensinar-lhes o alfabeto. O difícil foi descobrir o método. Descoberto este, facilmente aprenderam a ler. É o que vê, preferem policiais e clássicos ingleses da época vitoriana. A poesia não os tenta e dispensam o ensaio. Os óculos? Sem eles já não distinguem as letras. Os gatos também envelhecem.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A mulher de sonho

Vicente Vela, Bodegón del ensueño, 1991
Quer que lhe fale da minha mulher. Será relevante para a terapia, presumo. Nunca a compreendi e nunca soube por que casei com ela. Talvez quisesse fechar esse assunto. Ela vivia nos seus sonhos. Não estou a ser alusivo. A vida de cada dia era o prolongamento do sonho que tivera durante a noite. Havia épocas de grande monotonia, pois todas as noites ela tinha o mesmo sonho. Tanto quanto percebi, pelo seu comportamento em estado de vigília, os sonhos tinham uma lógica incompreensível. Ignoro por que não enlouqueci. O que lhe aconteceu? Uma tarde, depois de almoço, disse vou dormir um pouco. Entrou então num dos seus sonhos mais recorrentes e desapareceu. Não a voltei a ver.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

O colar de pérolas

Frank Eugene, The Pearl Necklace, 1900s
Quando a vi retirar o colar de pérolas não imaginei o que viria a seguir. A confiança que temos na realização dos desejos cega-nos. Os sinais estiveram sempre lá, mas os olhos ou a razão, o que é a mesma coisa, foram incapazes de os ler. No gesto dela não havia qualquer pathos, nem estava diferente dos outros dias. Quando me viu, sorriu e cumprimentou-me como habitualmente. Estava esplêndida e era o centro do grupo. Sentou-se. Nos seus olhos havia um brilho que pensei ser de alegria. Olhou a sala. Observava-a arrebatado. Ela ergueu os braços, retirou o colar e olhou longamente para ele, como se o contemplasse. Por fim, levantou os olhos e disse sem tremor não haverá casamento.

domingo, 8 de dezembro de 2019

A mulher perdida

Diane Arbus, Woman at a counter smoking, NYC, 1962
Sentava-se ao balcão, pedia uma bebida e ficava ali. Olhava em frente, para qualquer coisa que só ela via. Depois, levantava-se e saía. A princípio não estranhei. Com o passar do tempo, comecei a esperar por ela. Se se atrasava, ficava ansioso. Não, não estava apaixonado, mas aquela presença dava sentido à minha vida. Disseram-me que tinha perdido tudo. Registei a informação. Um dia, ganhei coragem, e abordei-a. Ouvi dizer que perdeu tudo, disse-lhe. Olhou-me e uma sombra velou-me o olhar. Sim, perdi tudo. Perdi-me de mim e não sei quem sou. Esqueça-me. Porquê? Para que lhe serviria uma mulher que não sabe quem é? E se soubesse quem era servir-me-ia para quê?