sexta-feira, 10 de julho de 2020

A mulher difusa

Saul Leiter, Carol Brown in “Harper’s Bazaar”, c.1958
Dir-lhe-ia que é vítima da ilusão cartesiana. A verdade não reside naquilo que é claro e distinto. Não apenas a verdade, também a felicidade habita o indistinto, o que é turvado pela sombra. A minha mulher, lembra-se dela, variava no grau de definição com que se apresentava perante mim e o mundo. Alturas havia em que era demasiado obscura, a sua presença suscitava melancolia e piedade. Normalmente, o que me tornava particularmente feliz, ela era apenas difusa, não havia nela nem obscuridade nem clareza. Só isso permitiu que a amasse. Um dia, porém, apresentou-se diante de mim clara e distinta. Resplandecia. A sua presença era tão intensa que explodiu. Não tornei a casar.

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