sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Amor e narcisismo

Michelangelo Merisi da Caravaggio - Narciso (1599)

«Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?» Jesus disse lhe: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. (Mateus, 22: 36-39)

O mito de Narciso é, muitas vezes, explorado nas suas consequências: o apaixonar-se pela sua própria imagem e o subsequente definhamento e morte. Deixando de lado o facto de nos terem chegado várias versões do mesmo mito, sublinhem-se alguns aspectos centrais. Narciso apaixona-se pelo reflexo de si nas águas, mas não sabe que aquela imagem que contempla embevecido é a sua. Não está apaixonado por si mas por um reflexo, por aquilo que ele contempla sem saber o que realmente é. O seu investimento amoroso não é em si mas num outro, num que está próximo de si. O erro de Narciso está no desconhecimento da realidade e na contemplação de um mero reflexo, de uma ilusão. Ele não investe eroticamente em si mas no outro, mas num outro que não existe. O próximo, por quem Narciso se apaixona e aproxima, é uma ilusão fundada no desconhecimento de si e dos mecanismos da realidade.

Não terá o segundo mandamento dado por Cristo – Amarás o teu próximo como a ti mesmo – um fundamento narcísico? O amor ao próximo não tem como modelo o amor a mim mesmo? O texto de Mateus não esclarece como me devo amar a mim mesmo. Se eu devo amar a minha imagem reflectida nas águas da vida social ou se devo amar em mim uma outra coisa que não está explicitamente indicada. O texto citado tem, todavia, uma indicação. Diz-nos que o segundo mandamento é semelhante ao primeiro. Poder-se-á seguir duas linhas de interpretação. Numa primeira, dir-se-ia que devemos amar o próximo e a nós mesmos com todo o nosso coração, a nossa alma e a nossa mente. Mas aqui não poderíamos incorrer na ilusão de Narciso? Não poderíamos amar completa e totalmente o reflexo do outro e de nós mesmos? Para evitar esta linha de pensamento, podemos pensar a semelhança entre o primeiro e o segundo mandamento de uma outra maneira. O que eu amo no próximo como em mim mesmo é a Deus, que está presente no próximo como em mim. Não é o reflexo social do outro ou de mim que reclama o meu amor, mas esse totalmente Outro que está presente em cada um de nós. E, deste modo, recupero a primeira interpretação, a da completude do amor que devo ao próximo e a mim.

O enigma principal deste texto de Mateus, bem como de muitos outros textos neotestamentários, reside no amor. No mito de Narciso, embora não seja dada uma definição de amor, percebemos o que está em jogo. Quando se fala, no âmbito do Cristianismo, em amor (amor a Deus, ao próximo ou a mim mesmo), estamos a falar de quê? A palavra é usada e abusada, não há prédica que não fale no amor. Estamos a falar de um sentimento, de um delíquio afectivo, de uma acção da vontade, de uma inclinação do desejo? Aquilo que parece óbvio e é tomado como tal não deixa de ser o mais enigmático.

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