quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Diálogos morais 49. O prémio

Bruce Davidson, Women with baby carriages. London, England, 1960
- Espera por mim.
- Despacha-te!
- Estou cansada. O carro e o bebé pesam.
- Poupa-me.
- Isto não é uma competição.
- Estás enganada.
- Estou?
- Como sempre.
- Se é uma competição, então qual é o prémio.
- Quanto mais depressa chegar... 
- Sim...
- mais depressa me vejo livre desta peste.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

O sal do silêncio (37)

Thomas Hart Benton, Cézannesque Landscape, 1912
Paisagens depuradas, onde tudo se deixa ver na sua essência, perpassam pelos meus olhos. Aproximam-se na leveza da lentidão e desaparecem na curva do caminho, deixando um rasto de silêncio, um rumor de luz, o silvo que anuncia a véspera de uma estrela ou uns lábios abertos para o desejo infinito de outros.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Impressões 63. Um rasto de verde

Johann Barthold Jongkind, Colline à la Côte-Saint-André, 1880

Um rasto de verde passa rente à terra. Chega com o vento e caminha de estação em estação, até que o Verão, privado do fulgor das águas, o leva para a caverna onde dormem, como mortas, as ervas que o Outono fará renascer da poeira sombria gerada no vente das folhas mortas.

domingo, 18 de outubro de 2020

Haikai urbano (63)

Francisco d’Almada, Recanto de Lisboa, 1984
A velha cidade
respira sombras de pedra
e luz dos recantos.

sábado, 17 de outubro de 2020

A Sarça Ardente - 43

Fernando Roscubas y Vicente Roscubas, El Sol del Membrillo, 1994
Um rumor rente à terra
anuncia o Sul.

Paisagens secas,
esquecidas
pelo orvalho do desejo,
abandonadas
ao vento da melancolia,
agrilhoadas
ao incêndio do cansaço.

Terra nua, despida
da erva matinal dos bosques.

Setembro de 2020

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Histórias sem nexo 15. A vespa verde

Jacint Salvadó, Abstrait Informel, 1965

Verde, a vespa veio de véspera. Era Verão e o vento, vindo veloz e voraz, varreu o vespeiro. Vomitada do violento vórtex, violada e vil, viu a veraz verdade. Na vetusta varanda, virou-se no vidro, vincou o veludo e verteu violência que nem víbora vesga ou verónica violeta.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Êxtase

Pina Bausch, Blaubart, 1977
Fora em outras épocas e elas não se livrariam da fogueira, acusadas de bruxedo, confessando cópulas frenéticas, noite fora, com algum íncubo. A imaginação é prodigiosa. Aqui, porém, trata-se da realidade. Num primeiro momento, elas dançaram, desenhando com o rigor os passos do bailado. Depois, pensei estar numa festa em honra de Diónisos. Eram ménades frenéticas e loucas. De súbito, a música parou e elas pararam. Algumas caíram, a outras o êxtase elevou-as, suspendeu-lhe a submissão à gravidade e, durante horas, ali ficaram perante o espanto de quem assistia ao espectáculo. Quando alguém se lembrou de fazer voltar a música, elas pousaram os pés no chão e saíram. Eu vi, estava lá.
 

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Diálogos morais 48. O caminho

Paul Gauguin, Dos mujeres bretonas en un camino, 1894
- Aonde vais?
- Não faço ideia.
- Posso ir contigo?
- Sabes o caminho?
- Não.
- Nesse caso, podes vir.
- E se eu soubesse.
- Não poderias vir.
- Não?
- Seria o teu caminho, não o meu.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

O sal do silêncio (36)

Manuel Cargaleiro, Estruturas da Floresta, 1960

Os dias decaem quando se entra na floresta. Luz fugidia, sombras cintilantes, caminhos sem destino. O canto dos pássaros, o sibilar do vento nas folhas das árvores, o murmúrio de animais no cio, o rumor dos rastejantes, tudo isso compõe uma sinfonia de cristal e silêncio.
 

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

A Sarça Ardente - 42

António Areal, Opus II - n.º 21, 1961
Sou o cavaleiro esquecido
na floresta da noite.

Sou o cão que corre
na fímbria dos teus dedos.

Sou o anjo mudo
a dançar-te na luz do desejo.

Setembro de 2020

 

domingo, 11 de outubro de 2020

Meditação Breve (141) Moinhos e gigantes

Amadeo de Souza-Cardoso, Le Moulin, 1912

Não desdenhássemos nós das visões de D. Quixote e talvez víssemos o gigante que se esconde em cada moinho de vento. Ingénuos e desdenhosos, acreditámos em Cervantes. Vemos um moinho de vento e dizemos: é apenas um moinho de vento. Depois, admiramo-nos que os gigantes nos façam a vida num inferno.

sábado, 10 de outubro de 2020

Micronarrativa (41) A queda de uma rosa

Jorge Apperley, Una bailarina del antiguo Egipto, 1915-16

Sobre a cabeça, levantou o braço direito e, ao esticar o esquerdo, abriu os dedos de onde caiu uma rosa. Ao tocar o chão, as pétalas soltaram-se, por instantes hesitaram, mas logo se ergueram e como um bando de aves voaram, tingindo o céu com uma luz de nácar.
 

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Haikai do Viandante (402)

João Hogan, Paisagem, 1960

 Caminhos que levam
ao sombrio silvar do lume.
Dias do viandante.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

O sal do silêncio (35)

Eduardo Harrington Sena, Dogma, 1953
Se o coração é tocado pela alvura do branco, o horizonte carrega em seu dorso as trevas que há no negro. Entre ambos, o silêncio balança à procura do vento que o conduza ao porto onde o espero.
 

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A Sarça Ardente - 41

Francesca Woodman, Untitled, 1977
Refaço a memória azul
de onde deslizam
os teus olhos,
labareda nascida
no ocaso de Junho,
fragmento de vidro
a reverberar na rua.

Eram os dias
em que chegavas
vinda da luz do litoral.
Carregavas mares
e sombras de areia.
Na minha boca, sal
e sílabas dos teus sonhos.

Setembro de 2020

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Impressões 62. Híbridos

Jaime Silva, sem título, 1978
Os híbridos produzidos pela imaginação são apenas reminiscências longínquas de épocas em que a vida ainda não atingira graus de diferenciação como os conhecidos hoje. Esses seres imaginários escondem-se nos nossos genes e, encontrando um espírito sensível, logo se manifestam, trazendo à luz a verdade que o passar do tempo ocultou.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A rapariga da bicicleta

Rodney Smith, Anika on Bicycle, 1993
Ela vinha de bicicleta por uma álea e parava diante de nós, a certa distância. Olhava-nos. Corria o boato de que vivia na floresta e, quando nos voltava as costas, para lá retornaria. Ninguém o confirmou. A palavra cobardia será a mais adequada. O fascínio que sobre nós exercia era tão grande quanto o terror que sentíamos se os nossos olhos encontravam os dela. Raramente a vanglória das palavras corresponde à grandeza dos actos. Estávamos todos apaixonados. Não houve quem dela se aproximasse. Um dia, desmontou da bicicleta e começou a caminhar na nossa direcção. Vou escolher um, disse. Fugimos miseravelmente. Nunca soubemos o que lhe aconteceu. Nenhum voltou àquele sítio. 

domingo, 4 de outubro de 2020

O sal do silêncio (34)

Ernst Haas, Homecoming soldier, Vienna, 1946-1948
Tão grande é o ruído que em mim trago, que o barulho ensurdecedor da grande cidade não é mais que o profundo silêncio em que habitam os homens tomados pela surdez ou os seres que de súbito passaram da vida para o palácio sombrio da morte. 
 

sábado, 3 de outubro de 2020

Haikai do Viandante (401)

Felix Vallotton, Moonlight, 1895

 Silêncios da lua,
sombras perdidas nos campos.
Mistérios de Outono.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

A Sarça Ardente - 40

Alson Skinner Clark, Autumn Blaze
O Outono aproxima-se
trazido nas asas
de um anjo.

Oiço já o rumorejar
das folhas mortas
pelo chão.

Oiço o cântico suave
de quem bebe
o vinho do silêncio.

Oiço o verniz do vento
a estalar na luz
do meio-dia.

Setembro de 2020

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Histórias sem nexo 14. Um cravo no Creonte

Ricardo da Cruz-Filipe, Ordre des visibilités, 1988
Cristo! Credo! Cravaram-me um cravo. A creolina, a creolina? A criada crente na crónica deixou o crumble e o croché. Num crosse pegou na cruz e como numa cruzada crocitou ai o meu Creonte, o que lhe fez o crápula do crupiê. Ai cruzes, cravo-lhe a crista numa cratera.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Meditação Breve (140) O além

Ara Güler, Istanbul, 1982
Não vale a pena procurar o além num outro mundo. Neste que cabe aos mortais não faltam aléns e nenhum deles deixa de conter o seu rol de qualidades, às quais não faltam a água do segredo, a luz do enigma e o vendaval do mistério. Espreita-se por uma janela e ali mesmo emerge o mais perturbante dos aléns.
 

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Diálogos morais 47. O guia

Hans Baumgartner, Tarragona, España, 1968

- Se saísses de cima das minhas costas, não seria mau.
- Preciso de ver ao longe.
- Para quê?
- Para que não nos percamos no caminho.
- Para isso basta ele.
- Não me faças rir.
- Tu não ris, o mais que fazes é ganir.
- Seja, mas se achas que ele nos pode guiar, tenho pena de ti.
- Ele vai adiante e tomou a rédea da nossa caminhada.
- Que interessa que vá adiante, conheces algum homem que saiba para onde vai?

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Haikai urbano (62)

Carlos Botelho, Lisboa, 1936
Os velhos telhados
jazem presos ao Outono.
Os dias de Lisboa.
 

domingo, 27 de setembro de 2020

A Sarça Ardente - 39

Renato Torres, Vénus (tapeçaria)

Uma mulher cruza
a aura da tarde.
Vai vagarosa
no ondular do oceano.
Sereia de luz
no marulhar da memória.
Sombra de sílfide
no rumor das ondas.
Ave de fogo
na água nupcial
dos meus olhos.
 
Setembro de 202
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sábado, 26 de setembro de 2020

Micronarrativa (40) O caminho da vida

Fernando Taborda, Estrada da vida, 1954
De súbito, descobriu aquilo a que todos chamavam o caminho da vida. Entrou nele e caminhou sem parar. Subia e descia, para tornar a subir e a descer. Rodava continuamente e nem quando sentia que tinha a cabeça para baixo e os pés para o ar se deixava tentar pelo desejo de abandonar a senda que tomara. Afinal, esse era o seu caminho e a sua vida.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Arqueologias do espírito 7

Anónimo pré-histórico, Caballo ejecutado en el IV Estilo (Portel)

Desçamos no espírito do homem para nos deparamos com a hora em que nele aflorou a possibilidade de se emancipar do férreo desígnio da determinação e pensar-se como livre. Talvez tenha sido naquele instante em que, pela primeira, vez se deparou com o galope livre do cavalo, com a sua leveza, a sua graça, o rápido pisar da terra para nela se mover, para ir e vir segundo o mais íntimo arbítrio. Livre é o que se move na paisagem com a beleza pura e quase alada de um cavalo selvagem.
 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

A pianista

Emmerico Nunes, sem título, 1908

Entre todos os salões que frequentei havia um especial. Nele, uma pianista dava um pequeno recital. Nunca passava de meia-hora. Todos diziam ser perfeita a sua técnica e grande o talento com que nos fazia imaginar as mais diversas cenas. Muitas vezes me senti numa paisagem bucólica ou experimentei a vertigem causada pelo perigo que nos espreita no mar ou no alto de uma montanha escarpada. A última vez senti-me um gato. O pior é que os outros convivas passaram a ignorar-me ou enxotavam-me com rudeza. Se lhes dirigia a palavra, clamavam que o gato não parava de miar. Mesmo a dona da casa chegou a pegar-me ao colo, o que me desconcertou, e fazia-me festas como se eu ronronasse. 
 

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Impressões 61. Invocação

Francisco dos Santos, Invocação, 1916
Não a voz que clama no deserto, mas aquela que rompe o silêncio da noite e chama sem parar, aquela que fende o cerco dos lábios e deixa as sílabas perderem-se no vendaval, aquela que pela aurora grita sobre a terra e ninguém a escuta. Essa é a voz de onde nasce, palavra a palavra, toda a invocação. 

terça-feira, 22 de setembro de 2020

A Sarça Ardente - 38

Caspar David Friedrich, Easter Morning, 1833

Desejo páscoas transbordantes
às palavras que a cruz
do tempo matou.

Que o túmulo onde dormem
se abra na aurora
e um anjo guarde o lugar vazio.

Ressurrectas irão em busca
da festa perdida
e os seus lábios dirão noli me tangere.

Setembro de 2020