quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Haikai do Viandante (159)

Pierre Bonnard - Lumière de soir, près de Vernon (1922)

Esta luz da tarde,
sobre os campos incendiados,
é fogo que arde

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Caminho de luzes

Miquel Barceló - Chemin de Lumières (1986)

Nada leveis para o caminho: nem cajado, nem alforge, nem pão, nem dinheiro; nem tenhais duas túnicas. (Lucas 9:3)

Há no texto de Lucas duas condições essenciais para o viandante. A simplicidade e a disponibilidade. Pela simplicidade, o homem despe-se do inútil, assume a sua condição de pobre, vive a pobreza de espírito. Esta simplicidade, contudo, está conjugada com a mais pura disponibilidade. Nada levar para o caminho significa estar disponível para aquilo que o caminho lhe oferecer. Aquele que procura a luz, vai por um caminho de luzes. Não leva lanterna, aguarda que a luz chegue e, como uma graça, caia sobre ele. E enquanto se mantiver disponível, enquanto não se apropriar de nada, caminhará de luz em luz, de claridade em claridade, mesmo que o caminho, muitas vezes, se faça na noite mais escura que possa existir.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Modelos arquetípicos

Pablo Picasso - Família à beira-mar (1922)

Raramente se percebe como os símbolos e arquétipos religiosos dão forma à vida e à cultura, muito para lá daquilo que é estritamente religioso. Este quadro de Pablo Picasso só ganha sentido pleno se enquadrado no arquétipo da Sagrada Família. O facto do artista ter pintado o quadro significa já a sacralização daquilo que nele se torna presente. Todo o acto artístico é um acto de sagração daquilo que apresenta como conteúdo da obra de arte. Mas esta sacralidade da família só se torna possível numa cultura que possua um arquétipo sacralizante da família. Se todo o par constituído por um homem e uma mulher é uma actualização do par arquetípico Adão e Eva, também toda a família representada por um homem, uma mulher e uma criança actualiza a Sagrada Família do cristianismo, colocando na criança, na sua correspondência com o Menino Jesus, o princípio de esperança que anima a humanidade. 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Poemas do Viandante (434)

Odilon Redon - Eva

434. Essas mãos que me anoitecem

Essas mãos que me anoitecem
e trazem um raio de luz.
Essa voz que declina em mim
e ergue uma cidade de púrpura.
Essas dores que chamam pelo outono
e são frutos caídos no coração.

Um túnel abre-se sobre o pântano
e no sopro da tua boca nascem aves,
ramos de violetas, um velho castanheiro
cerzido na luz sonâmbula da noite.

Quero dizer o teu nome sobre o meu,
erguer-te do abismo da memória
e deixar cantar na manhã
o rio venerável, o sangue e o vinho,
as primícias de um corpo que se oferece
no altar outonal do coração.

domingo, 22 de setembro de 2013

Acidente e queda

Alfonso Ponce de Léon - Acidente (1936)

A Queda é um símbolo estruturante da cultural ocidental. A narrativa do Génesis bíblico tornou-se, através da penetração da religião judaico-cristã na Europa, o modelo onde qualquer tipo de decadência e de abaixamento de nível são pensados. Raramente se pensa, porém, a ligação entre acidente e queda. Esta ligação é essencial no mito de Adão e Eva. A queda do homem é fruto de um acidente. Isto não significa que, na economia do mito bíblico, as decisões tomadas não sejam deliberadas e não se possam imputar ao par edénico. Significa que essas decisões não se prendem com o que é essencial na humanidade, mas com o que é meramente acidental. É por isso que a mesma cultura judaico-cristã pôde pensar e propor como modo de vida a restauração de um estado perdido por acidente.

sábado, 21 de setembro de 2013

A condição da liberdade

Ivonne Sánchez Barea - Liberdade condicionada (2000)

O homem recebeu duas qualidades que parecem incompatíveis. A liberdade e o estar condicionado. A liberdade começa por ser uma liberdade condicionada. Mas a viagem que se apresenta como destino do Viandante tem por finalidade torná-lo aquele que é, sobre a Terra, a condição de toda a liberdade.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O eco do Espírito

Hans Baldung Grien - Adão e Eva (1511)

Há muito que a Igreja Católica viva obcecada com o sexo. Ao longo dos tempos, a paranóia com o comportamento sexual das pessoas adultas substituiu o papel de acolhimento e, acima de tudo, de criação de espaços para uma experiência espiritual profunda. Pela primeira vez, na minha vida, vejo um Papa a dizer estas evidências. Estas posições de Francisco, embora não de forma explícita, sublinham duas coisas essenciais nos tempos de hoje. Em primeiro lugar, o respeito pela autonomia das pessoas e pelas suas decisões privadas. Em segundo lugar, a necessidade de colocar a Igreja não no lugar do professor de moral, mas no de peregrino que acolhe outros peregrinos, aqueles que se perderam na errância, os viandantes transviados, os filhos pródigos. Em suma, todos nós. Não para lhes dar lições de moral, mas para os ajudar na viagem. Nas palavras de Francisco ouve-se o eco do Espírito.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Dança báquica

André Louis Derain - Bacchic Dance (1906)

A terra dança. O espírito da terra ergue-se, ganha figura, multiplica-se em corpos, e os corpos dançam e dançam, como se aspirassem a não ser corpos, mas apenas a terra pura que, inebriada e sem destino, espera que o céu desça sobre ela e a tome para sempre nos seus braços.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Haikai do Viandante (158)

John Ruskin - A River in the Highlands (1847)

Um sulco na terra.
Das montanhas desce a água
e a vida que encerra.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Da imobilidade na natureza

Karl Schmidt-Rottluff - Natureza-morta no espaço (1950)

A representação imóvel de frutas, flores, utensílios quotidianos, etc. tomou, na História da Pintura, a designação de natureza-morta. O que encontramos, porém, nas representações pictóricas de naturezas-mortas é a suspensão do movimento, a imobilidade, o repouso. O que pode ser inquietante para o espírito é, porém, a suspeita de que esta imobilidade não seja a da morte mas a expressão máxima da vida. Na suspensão do movimento, na mais pura quietude, as coisas dão-se no seu ser. São como os corpos de dois amantes. A verdade do seu amor não reside na dinâmica do jogo sexual mas na imobilidade que os convoca a tal dinâmica, no repouso em que se fundem e se subtraem ao movimento e ao tempo. Na imobilidade das coisas e dos seres encontramos um reflexo da eternidade.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Da experiência pura

Georgia O'keeffe - Abstracción, rosa blanca n. 2 (1927)

Vê-se muitas vezes a experiência como um princípio de contaminação daquilo que é puro, como fonte de mácula que lança uma sombra sobre a brancura da inocência primordial. Será, no entanto, esta inocência tão pura e imaculada? Será a abstinência daquilo que a vida nos propõe o sinal de uma perfeição? Não será antes a forma como agimos e como nos entregamos às diversas experiências existenciais que decidem da pureza e inocência destas? Não é a abstinência que nos torna puros, mas nós que tornamos, ou não, puras e inocentes as experiências a que nos entregamos.

domingo, 15 de setembro de 2013

O cavaleiro místico

Odilon Redon - Le Chevalier Mystique (c. 1892)

Toda a viagem é um desejo de participação no mistério. Não no mistério entendido como problema. Esse, a ciência coloca-o e, com a ajuda da razão e da experiência, resolve-o. Nenhum problema científico é um verdadeiro mistério, pois não passa de uma construção da razão, a que a razão, tarde ou cedo, responderá. O verdadeiro mistério afronta a razão, impõe-se-lhe, arrasta-a para uma negra noite. O viandante que sente o apelo do mistério não espera resolvê-lo, nem encontrar-lhe uma solução, o esboço de uma resposta. Cavalga na vida seguindo o eco misterioso. Não espera o triunfo da luz sobre as trevas. Não espera. segue apenas o seu destino. É o cavaleiro místico.

sábado, 14 de setembro de 2013

Responsabilidade infinita

Miquel Rivera Bagur - Assossec (1989)

Quantas vezes nos interrogamos sobre o que, na via que toda a vida é, está em aberto, disponível para a nossa livre iniciativa, e o que está pré-determinado. Esquecemos que essa interrogação é humana, demasiado humana, e como tal está sujeita às limitações da nossa razão. E se a liberdade e a determinação coincidissem, se aquilo que eu faço dependesse da minha liberdade, mas ao mesmo tempo estivesse já determinado? A nossa razão escandaliza-se com tal possibilidade, mas o fundamental do caminho de qualquer viandante não será escandaloso? O caminho que cada um traça na amplitude do território é obra da sua livre iniciativa, mas teria ele possibilidade de traçar outro? Não será a liberdade essa responsabilidade infinita de descobrirmos o que nos convoca e determina?

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Poemas do Viandante (433)

Pablo Picasso - Dos desnudos y un gato (1902-3)

433. Um rasto de água ardia sobre o corpo

Um rasto de água arde sobre o corpo,
cresce mansamente dentro dos olhos,
salta-me húmido pelos lábios.
Pequeno fruto trazido pela aurora,
um jogo de volúpias azuis ao anoitecer.

Enlouqueço nas trevas, ébrio do teu cheiro,
quando a ausência se desenha
e sinto o estrangulado desejo da rosa,
a fria e frágil flor em que te desfolhas.
Luz, labareda, sangue e fogo.

Um sismo desliza-te pelo ondular do ventre,
se eu chego na lonjura do tempo,
se te cavalgo no cerrado campo do corpo.
Uma silhueta vem na sombra do silêncio:
toca-te os olhos, desce sobre o mar.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Abrir o espaço

Lajos Kassák - Composição dinâmica (1918)

Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam. (Lucas 6:27)

Podemos perceber a vida - e o que é a via de qualquer viandante senão a vida? - como uma composição dinâmica de forças. O ódio que responde ao ódio traça uma dada composição, na qual o espaço  e os caminhos desaparecem pelo choque dos corpos. Amar os inimigos e fazer bem aos que nos odeiam são formas de abrir o espaço e produzir uma nova composição dinâmica de forças. Não de forças que se anulam na morte que toda a violência representa, mas de forças que se adicionam e criam caminhos que nos levam onde temos de ir, onde somos esperados.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

As imagens do espírito

Giorgio Morandi - Paisagem (1913)

Acreditamos facilmente que, ao vermos uma certa paisagem, a imagem que construímos é uma projecção do mundo no nosso espírito, de um mundo que entra em nós pelos olhos. Esta crença kantiana na passividade dos sentidos impede-nos de perceber que a visão é um portal de duplo sentido, que também o conteúdo do espírito se projecta no mundo, através do olhar, fabricando paisagens que esse mesmo olhar traz depois para dentro de si. Não são inócuas para a sanidade do mundo as imagens que o espírito fabrica. Não são indiferentes para a viagem que espera o Viandante, pois são elas que podem tornar o caminho mais ou menos transitável.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Haikai do Viandante (157)

Benvenuto Benvenuti - Aurora no paul (1926)

Vai-se a noite fria
e no segredo da aurora
chega a luz do dia.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A casa do desespero

Brull Carreras - Desierto de Atacama

O deserto é a casa do desespero. E o desespero, hoje em dia, está por todo o lado. Não vamos pensar, contudo, que a nossa solidão interior consiste na aceitação da derrota. Não podemos escapar de seja do que for por consentir tacitamente em sermos derrotados. O desespero é um abismo sem fundo. (Thomas Merton, Thoughts in Solitude)

Devemos pensar que a relação do homem com o deserto, com o vazio, pode ter uma dupla natureza. O vazio pode ser sentido como a casa do desespero, de um desespero que nasce da multiplicidade dos desejos frustrados, das ilusões desfeitas, da errância onde nos perdemos. Mas o vazio interior - a pobreza de espírito - pode ser o lugar da esperança. Esperança que nasce ao libertarmo-nos de tudo o que é ilusório, irreal e, na verdade, irrelevante. Este vazio é aquele que tem o poder de transformar em lugar de esperança aquilo que a vida contemporânea tem o condão de tornar em casa de desespero.

domingo, 8 de setembro de 2013

Tornar-se vazio

Guillermo Pérez Villalta - O reino do vazio (1993-94)

Assim, qualquer de vós, que não renunciar a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo. (Lucas, 14:33)

Alguém, mais informado sobre a História do Ocidente, poderá perguntar como se pôde edificar uma civilização estruturada na propriedade a partir de uma religião que prega a mais radical das renúncias. Esta perplexidade, porém, não é a essencial. O mais importante é compreender o desafio tão inumano que é lançado ao homem. Renunciar a tudo significa renunciar a tudo e não apenas a algumas coisas mais ou menos desaconselháveis moralmente. No desafio lançado por Cristo, não há qualquer moralização. Não se trata apenas de abandonar as coisas más. Também as boas devem ser objecto de renúncia. Tornemo-nos vazios, é a injunção que o texto de Lucas regista. Não se trata só de renunciar à propriedade privada, aos bens materiais, às coisas que, desde cedo, dizemos que são nossas. Posso renunciar a tudo isso e, no entanto, ainda não ter renunciado a nada. Tornar-se vazio significa renunciar a si mesmo, entrar no reino da pura aceitação do acontecer.

sábado, 7 de setembro de 2013

Dia de mercado

Nicanor Piñole - Dia de mercado

Tempos houve em que havia um dia de mercado. Isso significava que os outros dias seriam dedicados a outras coisas. Hoje todos os dias se tornaram dias de mercado e os homens não sabem fazer outra coisa senão comprar e vender. A necessidade transformou-se em obsessão. Um vício contra a natureza. Ora a natureza é, como ensinou Baudelaire, um templo. Não tarda que, como os vendilhões do templo, sejamos expulsos pela força do chicote.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Poemas do Viandante (432)

Gustav Klimt - Adão e Eva (1905-6)

432. Os cabelos descem-te em fúria pelos ombros

Os cabelos descem-te em fúria pelos ombros
e o silêncio da tarde descai estrangulado pelo corpo:
rumor de folhagem, aroma de neve, água cintilante
sobre o fruto maduro que anuncia o outono.

Abro um livro ao acaso e desfolho-te, a cicatriz
desenha um rio, a fronteira, o alvor da maçã.
A palavra chega, negra e terrível, esboço de geada,
promessa perdida na sombra azul da manhã.

Abres a janela e olhas a névoa sobre os pomares.
Nus, os ombros esperam pelo deslizar da mão.
Ao longe, ouvem-se corvos, o uivo branco do amor.
O teu corpo amanhece no deslumbrado sangue do meu.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Tornar-se ninguém

Georgia O'keeffe - Black Cross with Red Sky (1929)

A cruz, na história, é o último lugar, e o crucificado não tem nenhum, é um 'não lugar', foi despojado: é um ninguém, mas João vê essa humilhação extrema como verdadeira exaltação. (Bento XVI)

Tornar-se ninguém. Quando, no Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, Telmo, ao escutar a voz do Romeiro, pergunta «Romeiro, quem és tu?», D. João de Portugal responde-lhe «Ninguém, Telmo; ninguém; pois se já nem tu me reconheces.» Esta experiência de humilhação suprema (a humilhação do não reconhecimento) de um elemento da aristocracia portuguesa nasce do descalabro de Alcácer-Quibir. Ela é marcada pela aniquilação do papel social e pela queda da máscara construída na interacção comunitária. Esta aniquilação - mero acidente na vida das sociedades, resultado de um desaire, mas nunca um projecto de vida - é o projecto central do cristianismo, projecto centrado na exemplo do modelo crístico.

O texto citado de Bento XVI tem uma tonalidade interessante. Ao falar da cruz como o último lugar, não fala de forma abstracta e descontextualizada. A cruz é o último lugar na história, nesse lugar que regista as metamorfoses das comunidades humanas, os feitos dos homens, a glória que lhes toca. Contrariamente ao entendimento nietzschiano, o cristianismo, com a sua cruz e o projecto de tornar a pessoa em ninguém, não é uma negação da vida, mas um crítica impiedosa, ao mostrar a sua irrelevância, às estruturas e hierarquias que a dinâmica social projecta nas comunidades, incluindo as religiosas, diminuindo-lhes a verdadeira vitalidade. A vida não está em ser o primeiro, o mais importante, mas em tornar-se ninguém, em libertar-se da máscara que a vida social impõe, em ocupar um não lugar. Qual o lugar da vida verdadeira? É o não lugar, aquele que para ser ocupado exige que alguém se torne ninguém, que se transforme nesse a quem ninguém reconhece.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Tempos de crepúsculo

Carlo Carra - Depois do pôr-do-sol (1927)

Nada simboliza melhor os nossos tempos do que o crepúsculo que anuncia a noite. Há ainda um resto de luz, mas a sua força e vigor desapareceu há muito. Aquilo que era claro tornou-se - e está a tornar-se cada vez mais rapidamente - obscuro. A terra é agora um lugar de errância, de onde desapareceu a força orientadora. A preocupação com a vida material é a noite onde o impulso do espírito enfraquece e quase soçobra na escuridão das trevas.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

O mistério do mal

Marc Chagall - Caim e Abel (1911)

A narrativa bíblica sobre Caim e Abel não nos fala apenas do traumático que é a ruptura da fraternidade. É certo que o episódio desenha o modelo de todas as guerras - civis e outras -, mas há mais do que isso. Há duas camadas de sentido presentes. Numa primeira, a mais superficial, vê-se Caim ressentido com Abel e Deus perante a diferença com que são tratados. Uma leitura sociológica diria que a diferenciação entre os homens é causa de ressentimento e geradora de perturbações no comportamento dos indivíduos e na ordem pública. Não deixando de fazer sentido, esta leitura é limitada e tornaria o agrado de Deus para com Abel uma mera injustiça. 

Em Génesis 4: 6-7 é dito a Caim e perante o seu ressentimento: "Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante? Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te (...)”. Fica sugerido uma falta prévia, a prática de um mal não determinado, que terá estado na origem na diferenciação de tratamento dado às oferendas de Abel e de Caim. É esta misteriosa falta prévia que é o núcleo da história de Caim e Abel. O mal, esse mal originário, é misterioso. E é ele que dá que pensar, pois gera os outros, como aqueles que se simbolizam no homicídio de Abel pelo irmão e todos os que decorrem na relação entre seres humanos. Isto significa, também, que a diferenciação é já o resultado da acção do mal.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Seguir o seu caminho

Camille Corot - Le Chemin de la gare à Ville-d`Avray (1874)

Mas, passando pelo meio deles, Jesus seguiu o seu caminho. (Lucas 4:30)

O versículo citado de Lucas traz o modelo de todo o autêntico viandante. O viandante - e todo o ser racional é convocado a sê-lo - não é aquele que permanece entre os seus concidadãos, embora não os evite. O viandante passa pelo meio deles, entre as suas querelas e os seus limites ideológicos, e segue um caminho que é especificamente seu. Se o Cristo - segundo a tradição do cristianismo - se constituiu no modelo a ser seguido pelos homens, isso não significa que todos os homens devam praticar os mesmos actos narrados nos textos neotestamentários. Significa que, como Ele e à sua imagem, devem seguir o caminho que é seu e apenas seu, que lhes compete pela sua natureza, e não qualquer outro. 

domingo, 1 de setembro de 2013

Haikai do Viandante (156)

Prince Eugéne de Suéde - Uma noite de Verão (1895)

Terrível mistério
o da noite de luar:
abismo e império.

sábado, 31 de agosto de 2013

A morte da anunciação

Paolo Ricci - Anunciação (1973)

Vivemos num mundo onde, falsamente, se promove o debate como a grande virtude social. No centro dessa virtude, existe uma outra que orgulha muito os seus detentores: o poder argumentativo. Mas se nada de essencial nascer desse debate e se todo o argumentário não passar de um exercício da vaidade humana? Em tempos houve um outro caminho e uma outra virtude. O intermediário - um anjo, um deus, uma ave - anunciava algo aos homens. A virtude residia então na disciplina da escuta. Mas, nos nossos dias, quem aceita uma disciplina, qualquer que ela seja, ou quem está interessado em escutar? 

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Dar-se à luz

Marc Chagall - O nascimento (1910)

Sobre os animais seus irmãos, o homem tem uma vantagem raramente aproveitada. Como eles, o homem é dado à luz. Mas este ser dado à luz por uma mãe é apenas a condição de possibilidade para que cada um se dê uma e outra vez à luz. Dar-se à luz é a única tarefa verdadeiramente humana. Quem nasceu de mulher ainda não nasceu efectivamente. Há que aprender a nascer de si e a morrer para si, para voltar a nascer. Não se trata de renascer, mas de vir uma e outra vez a uma luz sempre nova, sempre virginal. Homem é aquele que empreende a infinita tarefa de dar-se à luz.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Poemas do Viandante (431)

Jean François Millet - Nu reclinado

431. Em cada quarto onde te encontro

Em cada quarto onde te encontro
arde uma flor de pedra e incenso.
A tua voz chega sussurrada,
súplica breve em noite de tempestade.

És um deus desalinhado, dizes,
enquanto os cabelos te cobrem os ombros,
trazendo ao corpo a silhueta da noite
tocada por uma fantasia de primavera.

Usamos inscritos no coração
os velhos temas do amor e da morte.
São nuvens brancas de silêncio,
um aroma a rosmaninho selvagem.

Com eles compomos sonhos e volúpias,
e acendemos a vela que guia o anjo,
vulto branco e flébil que no desvão
abre a janela que me leva para ti.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Duas árvores

Hercules Pieterszoon Seghers - Duas árvores (1.ª metade do séc. XVII)

A árvore não é apenas o símbolo da nossa condição actual, ao manifestar que somos seres que pairam entre a terra e o céu, seres cujas pulsões penetram no que há de mais sombrio na existência, mas cujas aspirações são guiadas pela luz que chega do céu, o qual não cessa nunca de nos convocar à elevação, apesar da terrível força da gravidade. As árvores - fundamentalmente quando surgem como um par - recordam-nos a nossa antiga condição mítica, aquela de onde fomos expulsos ao comer o fruto proibido. Olho o quadro de Seghers e reconheço de imediato a árvore da ciência do bem e do mal e a árvore da vida. E neste reconhecimento, o velho mito renova-se e continua vivo.