sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A longa marcha

Antoni Guansé Brea - La longue marche (1983)

Só quem empreendeu a longa marcha poderá descobrir que ela não conduz a sítio algum. Quem nunca saiu de onde está jamais saberá que esse é o seu lugar. Empreender a longa marcha para se chegar onde se está e tornar-se naquilo se é.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (374)

John Marin - Landscape, Mountains (1918)

374. É TÃO TARDE PARA ANOITECER NA FLORESTA

É tão tarde para anoitecer na floresta,
os animais recolheram-se na funda toca
e o teu coração pulsa receoso do que não vês.
Nada há para temer, porém. Somos os amigos
do invisível, dele esperamos a palavra,
o gesto amplo que indica o caminho,
os hinos que escutaremos à chegada.

Despe-te e deixa o teu corpo no círculo aberto
ao meu olhar, na esplanada onde os sentidos
te convocam para a grande dança da noite.
Ainda não somos inteiros sob o luar,
só agora damos os primeiros passos na montanha,
mas as minhas mãos erguem-se para ti
e esperam vazias o milagre da tua pele.

O tremor que te toca vem das coisas que passam,
do frémito com que se entregam ao devir
e entram no esquecimento que o tempo traz.
São sempre assim os prelúdios, marcados
pela fugaz hesitação, a dúvida cintilante,
pois para nós, mortais, esse é o caminho
que pela floresta ao cume da montanha conduz.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (373)

Amadeo de Souza Cardoso - A parede da janela (1916)

373. CHEGOU O TEMPO DE VENDERES AS MOBÍLIAS

Chegou o tempo de venderes as mobílias
e alugar a casa, não é aqui o teu posto,
nem te esperam já no velho café,
aquele que fechou as portas de ferro
e deixou ao relento os mármores das mesas,
e uma gente triste que vinha jogar
um daqueles jogos de mesa que a memória
apagou, como se apaga um incêndio.

Quando deixas de reconhecer o sentido das
palavras e o bulício traz o ranço do ócio,
nada aqui te diz respeito.
Não deixes que os uivos te enlameiem a alma
e uma hesitação nasça no coração.
Fecha a porta e esquece a cidade,
deixa as praças encherem-se na noite
e o trânsito transbordar nas pontes.
Não chames teu a um lugar que nunca o foi,
nem te comovas com a flor dos jacarandás.

O que se viveu e amou traz em si o peso
da morte, o rasto vazio de um cometa que o céu
tragou, e que não mais voltará.
Olhas os velhos ciprestes presos ao alto,
enquanto uma chuva fina cai sobre a tarde.
Os frutos estão maduros, há que colhê-los,
e levá-los para bem longe, um outro lugar,
uma pátria envolta de arvoredo,
uma pátria coberta pelo silêncio do coração,
a janela que ao longe se ilumina e te chama.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (372)

Giorgio de Chirico - Héctor Andrómaca (1917)

371. O MISTÉRIO MAIOR DE UM CORPO À ESPERA DE OUTRO

O mistério maior de um corpo à espera de outro,
da ânsia que cresce com o aproximar da hora,
o risco no céu azul para lembrar uma promessa.
Há um instante em que chega o terror de que não
venhas, que o tempo te tenha tragado
para te devolver à planície do esquecimento.

São assim os dias dos homens sobre a terra,
cheios de uma cintilação imprecisa,
a troca de um nome, a traição de um amor.
O perigo e o medo impele-os para quem não
os espera, e o desejo que nasce do movimento
não passa de espuma fria deixada pela onda.

Os meses vêm cobertos de imperativos,
erva rala sobre a terra, pasto de animais feridos
à espera da consolação da morte.
Por que espera o outro pelo nosso corpo?
O terror escondido no vítreo silêncio da casa,
a vaidade nascida de uma alma submetida.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Poemas do Viandante (371)

Alfredo García Revuelta - Ciudad (1985)

371. ENTARDECER É DESCOBRIR OS CAMINHOS DA FLORESTA

Entardecer é descobrir os caminhos da floresta,
a metáfora trazida pelo pensador para iluminar
a filosofia, essa outra metáfora da vida,
metamorfose do sangue em puro pensamento,
a esperança irrenunciável ao direito de viver,
o consolo de ir e vir, a que chamaram liberdade.

A lado algum conduzem os caminhos na floresta,
mas os homens sabem neles encontrar a rota,
e navegam sob o império das estrelas
ou o rumor do vento na ramagem das árvores.
Ir a lado nenhum é o teu destino de viajante,
preso no luminoso olival que te liga à viagem.

Ainda não chegou a hora do frio invernoso,
mas os velhos lagares de azeite trabalham,
exercício clandestino trazido do mediterrâneo,
a seiva da terra que ilumina os caminhos.
Os olivais vindos do sul e os bosques do norte
são chão para os teus passos de citadino.

Uma canção desponta num quarteirão longínquo.
A cidade acorda para a tempestade do dia,
para a ventura do puro caminhar para sítio algum.
A voz rouca e amarga traz um uivo selvagem
e entre o betão afivelado das grandes construções
descubro o eco do teu nome esmagado na floresta.

domingo, 30 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (370)

Claude Joseph Vernet - Mar tempestuoso (1748)

370. O ESTRANHO DESÍGNIO DE TRAZER O OCEANO COMIGO

O estranho desígnio de trazer o oceano comigo,
de escutar o mar na rebentação da noite,
de avistar na campina as velas que passam
na planície de água, a vinha nunca vindimada.
Essas são as minhas viagens: sonhar acordado
o Atlântico que de mim se afasta e se abre
para o mundo que o coração não quer amar.

Sou o navegador que se perdeu das águas,
fundeou no cais como numa perífrase,
e no meio de tantas palavras arpoou no silêncio,
para que, ao olhar a floresta, a força voltasse
e trouxesse com ela o espaço vazio
que se esconde na velha paliçada de sílabas,
a aurora em que o sentido se ergue no nascente.

Não sei já onde termina o espaço e começa
o tempo, a ondulação incerta trazida pelo vento,
a casa que abriga se chega a intempérie.
O poeta vive no dia em que o espaço e o tempo
se desintegraram, escura amálgama, lama
que mancha a alma, a cobre de detritos,
e, como se fora argila, se desfaz em pó.

Pertenço à estirpe dos poetas oceânicos,
aqueles a quem o destino decretou a cegueira,
homens que amam o mar mas vivem em terra,
rodeados de insectos e aves selvagens.
O farol roda no buraco vazio da noite,
ilumina as catedrais de pedra por um instante
e recolhe-se no espaço onde o tempo desapareceu.

sábado, 29 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (369)

Paul de Vos - Un león y tres lobos

369. VIVEMOS SOB O CHUMBO DA TARDE TORMENTOSA

Vivemos sob o chumbo da tarde tormentosa.
Os dias, cada vez mais curtos, estão perigosos.
Em cada esquina espreita o lobo
e a garra dos homens virtuosos cai sobre os campos,
inunda as ruas da cidade e o comércio rasteiro,
a porta aberta para o fogo de Pentecostes.

Infelizes os tempos em que o vício clama virtude.
São horas de incêndio e não há dor nem sangue
que sacie os que pedem cabeças
e ululantes rasgam as vestes e espezinham os jardins,
gritam pela verdade cobertos no embuste.
Na lama, os filhos da víbora preparam o leito.

Estou sentado num quarto de hotel e vejo o mar.
Sobre as revoltosas ondas, um frágil veleiro volteia,
segura-se aos céus, inclina-se e tímido retoma a rota.
O mar ferido agita-se no despudor dos meus olhos,
e na feroz rebentação oiço o cansaço da terra,
o uivo da matilha que ao longe espera a presa.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (368)

Achille-Etna Michallon - Ruinas del Teatro de Taormina en Sicilia

368. A RUÍNA, UM MISTÉRIO QUE HABITA AS COISAS

A ruína, um mistério que habita as coisas,
partícula invisível no centro do coração,
a pulsão infernal vestida de alegria e esperança.
Como podem os homens aguardar pela sentença
da história, pequena meretriz que se vende na rua,
e dela fazerem trono e altar, viagem e romaria?

Ela marcha presa na voragem do anjo
e  sob os seus pés caem praças e jardins,
a breve violeta que plantara para as tuas mãos.
Mal chega, a rutilante estrela da vida fenece,
entrega-se lívida à combustão da dor,
às brechas que rasgam a parede da alma.

Hoje não precisamos da chegada dos exércitos.
O inimigo vive entre nós, em nossa casa,
e alimenta-se do vurmo que escorre dos corpos,
enquanto canta nas trevas da adolescência,
enquanto soletra, nome a nome, o destino
que um ódio nascido na febre a cada um reserva.

Insensato terramoto que me rouba a pátria,
os dias em que caminhei a teu lado,
a tua mão que se abria para a ânsia da minha.
As muralhas foram derrubadas e as casas ardem.
Os ratos correm pelos campos vazios
e o sino da minha igreja calou o bronze da sua voz.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (367)

Brueghel el Viejo - Mundo Traidor (1568)

367. DESFEZ-SE O ANTIGO CÍRCULO ONDE SE REUNIAM

Desfez-se o antigo círculo onde se reuniam,
para pronunciar longos veredictos
e assim colocar o mundo nos eixos,
de onde a cegueira dos homens o desviava,
lançando-o, incautos, na penumbra abissal,
as ruelas vazias e as praças incendiadas.

Vagueiam perdidos os velhos juízes,
cegos e sem préstimo por caminhos em ruínas.
Comungam o antigo ardor pela coisa justa
e a dura pena que o tempo lhes trouxe.
Olham e não reconhecem nos campos
a erva verde ou a sóbria seara sob o vento.

Tremem-lhes as mãos e o dorido coração,
a chaga febril, a impiedade contra eles lançada.
Desejam célere a morte que não vem.
Desejam escura a noite que o dia não traz.
Desejam cegos os olhos que tudo divisam.
Eles, alicerce onde a vida triunfante florescia.

Fruste a casa que a ombreira me oferece.
Encosto-me e avisto ao longe vultos de sombra
e seda, velhos peregrinos exaustos de caminhar.
Chamo-os e quando chegam digo-lhes que a justiça
esteja convosco. Sorriem e sentam-se a meu lado.
Na parede uma rosa; pão e vinho sobre a mesa.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (366)

Joan Ponç - Suite Inquietude (1947)

366. O DESASSOSSEGO É FEITO DE SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

O desassossego é feito de semelhanças e diferenças,
uma espécie de doença venérea comprada
nas noites em que a insónia canta sobre o cansaço,
e traça a vida com régua e esquadro
para a entregar, mal chega a manhã, ao serralho
das equações e dos problema irresolúveis.

Na face, trago esculpido esse fundo sobressalto.
Nem o sol nem a lua têm poderes para me curar
e a água do mar vem carregada de dor e solidão.
Oiço a estridência a anunciar o amola-tesouras
e penso: vai chover, enquanto o dia se afunda
na angústia que vagarosamente de mim se deslaça.

Passou a hora em que o teu corpo me trazia a certeza,
a exuberância do animal triunfante na selva,
a suprema saúde de nada haver para meditar.
Tocava-lhe na branca fragilidade da pele
e não havia fórmulas ou regras que me contivessem,
palavras tomadas pelo assalto do pensamento.

O tempo parece abrandar, ouve-se o chiar das rodas
nos carris, uma nuvem de faúlhas perdidas no ar.
Sentado, entrego-me a uma rememoração esquálida.
As palavras mirram, perdem sentido e secam,
eram as últimas flores que te deixara nas mãos
antes de tudo ter escurecido na noite que se levanta.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (365)

Odilon Redon - Port Breton

365. OS GESTOS COM QUE DESENHAVAS A LEVEZA DOS DIAS

Os gestos com que desenhavas a leveza dos dias
tornaram-se pesados. A tirânica ofensa trazida
pelo passar do tempo, pelo rumor inquieto das águas,
as que correm enfurecidas sob o véu da tempestade,
tornou-se gelo, pedra, chumbo em teus ombros.

O fulgor que te habitava apagou-se
e a linha do horizonte perdeu distância.
Os barcos não passam de sombras no mar,
onde já não distingues neblinas e crepúsculos,
a promessa de um mundo para lá das frias águas.

Tudo isso estava cifrado na carne vigorosa,
uma ameaça suspensa na verdura dos anos,
o grito do corvo na aurora vazia do mundo.
Mas que importa aos que exultam de saúde
a herança sombria que transportam consigo?

O peso que te comprime e inclina o corpo
é a vida triunfante que, cansada do velho olhar,
corre lúcida e bela para um novo cais.
Os barcos virão num lampejo de céu azul
e como tu outro sentirá o vento da primavera.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (364)

Ana Peters - Niebla (1998)

364. CHEGO AO LIMITE ONDE A PAISAGEM SE DESVANECE

Chego ao limite onde a paisagem se desvanece
e os trilhos, em que caminhei, se apagam.
Olho e a tudo a névoa cobriu,
instalando sobre o mundo um véu igualitário,
ao geminar planícies e vales, montanhas e rios,
o mar com as suas trevas de sal e areia.

Nesse exercício de cegueira espero por ti,
e na queda de cada folha suspeito passos,
um bater de coração, a ruidosa pulsação do amor.
Mas o tempo, adverso ao desejo, rasga o papel
da esperança, a anunciadora do óbito a vir,
e joga-me no fundo das masmorras da terra.

Não há metáfora que ilumine esse lugar,
nem símbolo que indique a ascensão.
Resta ao viandante a cegueira por guia
e, na cerração que o envolve, caminhar,
traçar itinerários a que nunca voltará,
vigiar no fundo da alma a ilusão da manhã.