sexta-feira, 20 de julho de 2012

Poemas do Viandante (305)

João Queiroz - Desenhos a carvão

305. NÃO TENHO NESTE MUNDO

Para os meus filhos

não tenho neste mundo
outro melhor para vos dar
apenas o caminho vazio
na crosta da terra
sem marca de início
nem meta por destino
apenas flores no paul
e o vento frio do norte
não tenho neste mundo
uma aurora de rosas
ou um eterno recomeço
resta-vos pôr os pés na terra
e continuar a andar

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Poemas do Viandante (304)

João Queiroz - Desenhos a carvão

304. QUE FAÇO DESTE RISCO NO PAPEL

que faço deste risco no papel
ardil de um bosque
uma sombra ensanguentada na manhã
a tua pulsação na ânsia
do amor

deixo que chegues no traço enovelado
penso-te e és nuvem
sobre montanha alcantilada
céu denso e negro
água pura a chover sobre mim

uma luz indecisa ruboresce no oriente
e uma saraivada de pássaros acorda
as folhas na madrugada
as estrelas debandam
na estranha paisagem dos teus olhos

se me sento no chão ao teu lado
vejo de perfil a angústia
santuário inexplicável
noite tempestuosa
na serena mágoa do acontecer

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Poemas do Viandante (303)

João Queiroz - Desenhos a carvão

303. ERA UM TEMPO DE DESAMPARO

era um tempo de desamparo
estrada fora
ia preso à sujidade das  mãos
aos dedos grossos
levedados nos campos
as calças rotas sapatos cambados
um cordel por cinto

chegava à aldeia nos dias nublados
sem calor nem chuva
e batia à porta dos pobres
menos pobres
à espera de pão
uma moeda
a sopa fria vinho azedo

esquecera as violetas
e na face não havia sorriso
dor acusação
vinha no orgulho da pobreza
na liberdade da sombra
o chegar e partir
sem declinar nome ou ofício

voltava na privação e olhava-me
de olhos apagados
e eu quieto e hirto tremia
no silêncio da infância
na meia-luz da pérgula

toda a culpa
e toda a penúria ardiam em mim

terça-feira, 17 de julho de 2012

Poemas do Viandante (302)

João Queiroz - Desenhos a carvão

302. DESENHAVA CLAREIRAS NA FLORESTA

desenhava clareiras na floresta
e se o cansaço crescia
deixava-me ali dormir
exposto à luz
cerzido ao chão
esperava o milagre

se chovia
o corpo fundia-se na lama
o vento soprava
e a terra acolhia-me
mísero filho pródigo
ao pó devolve a flor recebida
a promessa de uma aurora
a esperança sôfrega de um amor

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Poemas do Viandante (301)

João Queiroz - Desenhos a carvão

301. DEIXO QUE ME TOQUES A MÃO

deixo que me toques a mão
e o peso da tua sombra
me abra os olhos
para a vastidão do céu
a pura alegria
da luz
no súbito raiar de uma estrela

deixo que cantes na noite
um presságio
as ervas secas no verão
tudo o que o amor tem
para esquecer

deixo que tragas um búzio
para escutarmos o azul do oceano
o rumor incerto das águas
todos os mistérios
que a alma esqueceu
ao inclinar-se
para o murmúrio da vida

domingo, 15 de julho de 2012

Poemas do Viandante (300)

João Queiroz - Desenhos a carvão 

300. ANIMA-ME O ENTARDECER

anima-me o entardecer
o lento movimento das mãos
o sóbrio rascunho de um nome
infeliz promessa rasurada
no verso da página

fecho o jornal
e dobro as notícias
para esconder do olhar
o desmando do mundo

projecto uma clareira
e preencho-a com o teu corpo
dispo-o
e o tempo escorre-te na pele
um regato de luz
uma ânsia de rio
o entardecer na planície do mar

sábado, 14 de julho de 2012

Poemas do Viandante (299)

João Queiroz - Sem título (?)

299. O SENTIMENTO DE QUE TUDO ESTÁ PERDIDO

o sentimento de que tudo está perdido
a voluptuosa decisão de deixar o mundo entregue
ao desvario da humanidade ou à rotação dos astros
fonte de prazer e secreto amor da perdição
um espelho gasto onde a alma se vê
murmúrio que trespassa a cólera da inocência

invento aos teus olhos um idioma
as palavras são secas e as vogais fechadas
e componho longas cartas
promessas de amor nunca cumpridas
um tratado breve sobre vulcões
e a pequena liturgia com que adormeço

espero-te na fímbria dos dias claros
espero-te na orla das trevas
o meu coração é um deserto sem pólen
uma fornalha esfriada pela noite
pobre flecha que perdeu o alvo
rumor sinistro na glória do teu esplendor

poderia voltar ao velho para quê de holderlin
mas não me cabe tão tormentosa questão
descobri que todo o tempo é de indigência
pois ele o ladrão tudo a todos rouba
e quanto mais furta mais pobre ele é
nesse seu eterno fluir para lado algum

ao acordar nunca sei onde estou
se na cidade que vejo ou na montanha sonhada
nunca sei o que faço nesta cama
e o que cobrem os lençóis que me cobrem
ao acordar estou já cansado do que vejo
e o sono pesado inclina-me para a escuridão

amo senhor a pobreza que me deste
a pequenez velada da adolescência
os dias incongruentes em que crescia
amo acima de tudo o nunca ser amado
pequena sombra entre estrelas rutilantes
o chão de terra que me deste por habitação

pego num livro e percorro-lhe as páginas
e a memória vai passado afora
entra dentro daqueles cidades
que no deslumbramento da viagem amámos
um amor breve e incendiado
as ruas percorridas de mãos dadas

desisti de cada teoria que estimei
componho o jardim com frases soltas
pequenas citações e plantas anémicas
a água está cara e tudo morre à sede
a dialéctica dos dias e a analítica da morte
o borbulhar inconsciente do coração

um homem novo prometeram-nos
mas a semana passou e a mercadoria perdeu-se
os caminhos estão perigosos
os bandoleiros não descansam
e o comércio prefere vender água destilada
e caramelos turvos e sem açúcar

sou velho e na minha velhice falta-me a flor
a memória dos dias em que o não fui
a possibilidade de um dia ter sido exuberante
nada em mim se ilumina ao rememorar
nada em mim se incendeia pelo fogo do passado
nada em mim requer outra hora que não esta

nos dias de chuva olho as gotas na vidraça
e lá fora passam carros aquáticos
dois cães molhados ganem nos semáforos
e sob os guarda-chuvas há rostos que não sei
deles vem até mim uma sombra pálida
o grito emudecido que cantava na boca

sou um citadino exilado no ventre da cidade
pobre apátrida de olhos velados e mãos frias
gestos imprecisos semeados à luz do dia
passam macilentos e cansados os eléctricos
uma música suave sobre o chão em fogo
e tudo em mim se encerra na prisão da tarde

o que fiz com os sonhos que a noite oferecia
estranha pergunta de quem sofre de alucinações
e deseja com ardor um momento de lucidez
a hora onde o sonho se esvai
e tudo na realidade se torna plausível
os carros a lua ou o anel de noivado que esqueci

sempre pensei que uma metáfora era um náufrago
o desespero abandonado nas águas do oceano
a frágil capa que punhas nos dias de inverno
rememoro cada hora passado nos escombros da vila
o cerco antigo posto às muralhas decrépitas
o escândalo de nunca ter amado o rock-and-roll

lembro-me de ti senhor se troveja
ou um incêndio cobre as matas e os campos
fogaréus brancos na esplanada das mãos
trago a vida vazia no bolso do casaco
e a lua chega sempre em quarto minguante
uma promessa adiada na penumbra do amor

estará tudo perdido neste tempo fruste
na hora onde esquecemos o que nos ensinaram
esses antepassados que julgámos ridículos
presos na erva das suas convenções
apertados no estreito vestido herdado
cansados do joio que a manhã trazia

a mácula do sentimento é inútil
disseste e entregaste-te nos meus braços
a cabeça inclinada e o coração descompassado
bebi o vinho que havia em ti
e adormeci sobre o corpo baldio
enquanto um sino tocava as trindades

invento mansamente o ardor do instinto
e jogo ao crepúsculo a sorte bravia
o que vier trará a sua luz sobre as trevas
e quando o galo cantar na madrugada
um novo espírito virá sobre a montanha
e para mim tudo será crepúsculo

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Poemas do Viandante (298)

João Queiroz - Sem título (2005-6)

298. AS ESTRADAS COBERTAS DE GELO

as estradas cobertas de gelo
e uma intempérie sobre a rocha escarpada
passava os dias a observar a montanha
a desenhar rastos e trilhos
o longo caminho que leva ao precipício

um vulto vinha pela luz da manhã
caminhava por senda de terra batida
sob a estreita misericórdia do céu
não trazia flores nos braços ou pássaros no ombro
nem palavras que sossegassem corações
a luz a cada passo fazia-o mais e mais vulto
e a sua densidade crescia contra a sombra da floresta
primeiro era folha e ramos
logo madeira e agora uma estátua de pedra

um uivo ressoou para lá da planície
e tudo em mim se abriu para os teus olhos
e eles vieram na volúpia da viagem
oscilaram e sentaram-se no peito aberto
cantavam nesta praça desvalida de flores
uma ária antiga perdida no júbilo da madrugada

sedimentos de rocha e restos de folhas secas
o basalto e o granito e o calcário
e voltava sempre e sempre às enumerações
uma esperança de compor o mundo
e abrir uma janela na paisagem
a pequena fresta para o outro lado
aquele que não tem norte nem horizonte
nem caminho que leve
ou abrigo onde o salteador se esconda

olho para a fotografia pousada sobre a mesa
e tudo se inclina na seca garganta da memória

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Poemas do Viandante (297)

João Queiroz - Sem título (?) (1998)

297. AS PRIMEIRAS FOLHAS TRAZIDAS PELA ÁGUA

as primeiras folhas trazidas pela água
um rasto de desolação no calor da tarde
e toda a história da paixão contida nestas páginas
o fragor com que ruem as últimas memórias
lembra multidões exaltadas tomadas pela cólera
intempérie ardente vestida no desmando do mundo

retomo sempre o mesmo verso
não interessa as palavras com que se oculta
a máscara negra cingida sobre a face
tento segurá-lo ao papel e prendê-lo
e ele escapa uma e outra vez
torna-se uma paisagem bravia
ou uma ruela mal iluminada na noite

a velocidade escasseia no ritmo da minha mão
e o verso esconde-se numa vibração de metal

a geometria desta cidade confunde-me
ruas oblíquas e curvas tortuosas enxameiam o coração
rasgam o território entre a espessura das moradias
morrem num daqueles becos sem saída
assim vivi a navegar por cidades desconcertadas
tomei-lhes o pulso e respirei o ar poluído
ao sentar-me nos escassos bancos de jardim

por vezes a cidade queria ser um verso
e cresciam poemas inúteis feitos em desalinho
uma chuva ácida sobreposta ao terror da paisagem
a dinastia dispersa pelas avenidas

as margens estão infectadas de ervas
copos de plástico e garrafas partidas
ali sentado vejo o correr das águas
e os barcos que deslizam no horizonte
cansei-me da melancolia
e aguardo que o silêncio chame por mim

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Poemas do Viandante (296)

João Queiroz - Sem título (?)

296. A ESTREITA PASSAGEM PARA O LADO DA NOITE

a estreita passagem para o lado da noite
um caminho estelar aberto e lento
tudo o que peito pode ainda albergar
o peso desmedido da candura na alma
e um rasto de luz e sombra no espírito

houve invernos em que o amor servia o corpo
trazia-lhe conforto e um pouco de calor
acompanhava-o se pela manhã cantava
houve invernos em que o amor trazia a solidão
um exercício frágil na esquina dos dias
a porta que se fechava e o mundo desaparecia

pego nas tuas mãos e não espero nada
o dia nasceu cinzento e a cidade calou-se
ao longe escuta-se o zumbido dos campos
o ronco matinal das árvores ao florescer
e se havia uma pedra no olhar
ou o júbilo de antes descia pela memória
era o coração a vociferar na tempestade
a luz cerúlea a pedir estrelas na manhã
uma promessa de vida aberta sobre a loucura

por vezes pego numa palavra e olho-a
ela resiste e depois entrega-se mansamente
abre o coração de cada sílaba
e deixa que eu espreite os campos secretos
onde a azáfama de gerações depositaram detritos
restos inúteis com os quais construo o sentido
um dicionário de sentimentos
e uma ontologia lexical para uso privado

liberto da tradição o meu ser estremece
e falo alto nas ruas da cidade
e não há quem não me julgue estrangeiro
perdido na saudade e incendiado de álcool

de tudo o que compreendi
ainda são as tuas mãos o que mais amo
pequenas passagens abertas para o poente
instrumentos de precisão para o prazer tardio
o fio que me liga à terra do passado

havia um pequeno e pobre jardim
caminhos de terra e canteiros murados a tijolo
vasos para as plantas secarem no verão
trago tudo isso no bolso da memória
pesa e verga-me para o chão
mas eu canto o prodígio desse silêncio
e olho para passado com o desejo da aurora

a estreita passagem levava-me a uma terra de rosas
saibro batido pela inclemência das gerações
o exercício torpe de esquecer a herança
a pobre estirpe sem prodígio ou ouro
que me trouxe o barro para as paredes desta casa