Vespeira, Óleo 170, 1961 (Gulbenkian) |
Tardes de Verão.
Flocos de chuva e fogo
chamam o Outono.
José Júlio Andrade dos Santos, Paisagem (A Cidade Branca), 1951 |
Uma cidade parada sob a noite, maculada pelas sombras que lhe trarão o negro dos sonhos e a ânsia pelo despontar da aurora, para que, rua a rua, casa a casa, recupere a brancura ancestral, a pureza de virgem que o passar do dia ocultou no véu lutuoso de um crepúsculo moribundo.
Carlos Calvet, sem título, 1967 (Gulbenkian) |
Regressou de rompante o Verão.
Crescem fogos, florestas a
arder
contaminam os corpos, e as
almas
frágeis urdem severos
desesperos.
Tudo arde na viva luz da tarde,
as imagens passadas resplandecem
no futuro a vir, no presente
ávido
de encontrar o caminho
destinado.
Um suspiro final, pura vingança
feita fogo e fumo, as frias
cinzas
do Outono a chegar enlouquecido.
Sem destino, os corpos em vão
buscam,
no incêndio da noite, as almas
puras
que lhes cabem na senda da
floresta.
Maio de 2024
Francis Smith, Largo de aldeia (Petite place au Portugal), 1954 (Gulbenkian) |
Querubim Lapa, sem título, 1948 (Gulbenkian) |
Lucien Clergue, Maïs, Camargue, 1960 |
León Kossoff, Christ Church, Spitafields, Summer, 1990 |
Caminhamos no sulco que outrora
foi rasgado na terra em
silêncio
pelas mãos de quem veio antes
de nós
e nas sombras do Estio se
recolheu.
Murmuramos os nomes e tecemos
com a voz litanias e orações.
Damos graças e vamos pela senda
que se abriu na memória
descerrada.
Devedores, colhemos flor e
fruto.
Devedores, clamamos as
vitórias.
Devedores, erguemos o espírito.
Somos sombras de sombras mais
antigas.
Mortas, guiam os nossos passos
rudes
nos caminhos por elas lacerados.
Pedro Chorão, sem título, 1977 (Gulbenkian) |
Hein Semke, Também AD., 1980 (Gulbenkian) |
De Setembro o cântico e a
sombra,
a promessa de dias de luz
amena,
de um mar revoltado no sossego
das manhãs, na volúpia do
crepúsculo.
Somos anjos perdidos nesta
terra,
submetemos o corpo e a alma
ao ditado imposto pelo tempo,
a tragédia trazida ao nascer.
Uma rosa translúcida cintila
sobre o mar de Setembro, sobre
a luz
do crepúsculo, sobre o sal do
dia.
Procuramos incógnitos o estado
esquecido na hora de nascer,
olvidado no tempo que se escoa.
Setembro de 2024
Karl Greger, Sur la plage (Pays de Galles), 1897 |
Celestino Alves, A Paisagem de Sines, 1964 (Gulbenkian) |
Já declina o Estio, mas o calor,
insensato, ainda atormenta
a cidade, os homens e as aves.
Um caminho sem sol, alguém
suplica.
Sob a tília espero o tempo
fresco,
a passagem do vento que escapa
da montanha e rasga o horizonte
para a noite trazer suave bênção.
Tudo passa, na pressa de chegar
ao destino inscrito no silêncio
que habita o fundo de cada
coisa.
Nos fios, pássaros negros aguardam
o sinal da partida para o Sul,
e eu oiço na morte a luz da
vida.
Agosto de 2024
João Queiroz, sem título, 2005 (Gulbenkian) |
A ardência do dia cobre de fumo
o silêncio sombrio das
avenidas,
o restolho das ruas rudes e
sujas,
o espaço aberto destas praças.
Cavaleiros sem nome regressaram,
trazem velhas memórias
fabricadas
nos rumores do tempo e nos fogos
pela morte feroz então acesos.
A cidade descobre-se perdida
num Verão insensato, num
delíquio
de donzela cativa na inocência.
As muralhas da velha praça-forte
zumbem, pálidas, negras pelos
anos.
Cavaleiros a morte aguardam.
Agosto de 2024
Bernard Plossu, Lisboa 88, 1988 (Gulbenkian) |
nos recantos da cidade.
O peso da noite.
Carlos Calvet, Os 4 elementos, 1959 (Gulbenkian) |
Jenner Augusto, Barcos na praia (Gulbenkian) |
Oiço o silvo do vento de Verão
no grasnar das gaivotas pela
praia.
Verdes águas enrolam-se em
ondas
de espuma rosada pela areia.
Passeante na pálida manhã,
solitário amante do silêncio,
no murmúrio do mar escuto o
canto
das sereias, a voz azul dos
céus.
Assim vou, meditando no segredo
encoberto na lenta luz das
águas,
no veloz vento vindo com os
barcos.
Um clamor na manhã abre o mundo
ao sigilo estático das mãos,
ao pulsar inquieto do amor.
Agosto de 2024
Lee Friedlander, New York city, 1966 |
Rui Filipe, Baixa-mar, 1973 (Gulbenkian) |
Ana Maria Botelho, Le couple et l'instrument, 1980 (Gulbenkian) |
em silêncio, meditam cruéis
crimes.
A idade arrasta-os no rio
da memória, no mar do abandono.
As palavras usadas são
andrajos,
roupas gastas, metáforas
extintas
no vulcão desta língua, no fedor
com que corpos usados inda
falam.
Cada crime pensado abre ruas
onde passam memórias arrastadas
na corrente das águas quase mudas.
Andrajosas metáforas proclamam
o retorno dos mortos revestidos
por antigas palavras rasuradas.
Agosto de 2024
Marcelle Cahn, sem título, 1964 (Gulbenkian) |
António Areal, sem título, 1961 (Gulbenkian) |
Restos de memórias
flutuam num mar vermelho.
Mundos esquecidos.
W. Eugene Smith, Steelworker, 1955 |
Pierre de Chevannes, Jóvenes al borde del mar, 1879 |
uma mancha nas noites de
Agosto.
Dias deslizam nos dias, o sol vai,
vem,
inquieto, perdido no horizonte.
Relva verde desdobra-se no
olhar.
Onde eram cabanas acanhadas,
crescem casas de pedra, luz e sal.
Na memória, apenas sol e mar.
A miragem das horas carregadas
com o peso da água, com a cal
das manhãs que de súbito se
calam.
Cativei desses dias os rumores.
Raparigas despidas caminhavam
na rudeza do sol, presas ao mar.
Agosto de 2024
Antoine Chintreuil, The Rain Shower, c. 1868 |
Fred Kradolfer, sem título, 1930 (Gulbenkian) |
José de Almada Negreiros, sem título, 1941 (Gulbenkian) |
a certeza das tardes e das
noites?
Saberemos da Lua a aparência,
quando Julho progride na jornada?
Estações são mistérios ilegíveis,
pelos anjos escritas num
caderno
onde a luz resplandece e nos
cega,
onde a noite cintila no silêncio.
Raparigas perpassam nos meus
olhos,
trazem vestes de Estios muito
antigos,
eram jovens e belas na memória,
eram filhas dum tempo onde
Julho
refulgia nos seus olhos e ardia
na secreta paixão nos meus velada.
Julho de 2024
Henry Peach Robinson, Atlanta, 1896 |
Nicolaus Schindler, Puszta-Motiv, 1908 |