domingo, 4 de fevereiro de 2024

Geometrias de fogo (25)

Vincent Van Gogh, Olive Trees with Yellow Sky and Sun, 1889

O sol envia dardos de fogo e a terra abre-se para que eles a penetrem com a sua ardência fulgurante. É um fogo cintilante que aquece os mundo subterrâneos, crepita no silêncio das noites, toca as raízes húmidas das oliveiras, sobe-lhes pelos troncos e ramos até que nos lagares os frutos se metamorfoseiam num incêndio líquido, belo como uma promessa há muito feita e agora realizada.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Haikai do Viandante (434)

Francis Picabia, Amanhecer na bruma, Montiguy, 1905

 O dia revela-se

nas árvores matinais.

Bramidos e brumas.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Sonetos de Inverno (6)

Philip Guston, Winter, 1963

 A verdade do Inverno esconde-se

na floresta onde as pétalas caem

sobre o chão negro dos dias passados,

sobre o leito onde dorme o futuro.

 

As sibilas dançam, cantam os hinos

macerados pelas chuvas arcaicas.

Os segredos de outrora desvelam-se

no rumor da boca fria dos profetas.

 

Natureza, a verdade recobre

as tuas horas com um manto de pétalas

renascidas no desvão da floresta.

 

O silêncio, um presságio arcaico

dança imóvel no segredo da noite.

Uma rosa de sal sangra nos céus.

 

Janeiro de 2024


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

A sombra da água (25)

Ricardo da Cruz-Filipe, Mar n.º 1, 1983 (Gulbenkian)

Sento-me a ver o mar. Oiço o cântico das ondas, prescruto-lhes o ritmo, escando, no silêncio da praia, cada verso que traz e leva, como uma sombra de seda, a água salgada. Em transe, observo o oceano desdobrando-se, tomado pela inquietação que se abre no ventre da manhã rasgada pelos dardos do Sol.

sábado, 27 de janeiro de 2024

Histórias sem nexo 31. Titilações

João Paulo, Desenho I, 1962 (Gulbenkian)

O til tirânico tirou uma tira de tiramisu. Tibúrcio, o tio tinhoso, tiritava na tina do Tivoli e a tia Tibéria titilava tíbia e sem tino. O titã do Tito tinha timbre de til na tigela, de onde tios e tias tiravam típicos tinidos sem timoneiro.


quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

A memória do ar (24)

Cândido Costa Pinto, sem título, 1945 (Gulbenkian)

Para lá do cosmos imaginado, resta um mundo aéreo, fabricado por correntes de ar presas à luz de cada dia. É um mundo oculto na sua transparência, onde germina a disposição para o voo e o medo da queda. Existe, se deixarmos a imaginação cavalgar os prados da consciência. Desaparece, se sujeitamos os grandes espaço à gramática das pequenas coisas. 

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Sonetos de Inverno (5)

Muirhead Bone, View of Rome at Sunset, c. 1912

Os crepúsculos de Inverno cintilam

sobre a sombra do dia, trazem fogo

ao amor das coisas raras e luz

à morada fria e rude dos deuses.

 

Os poentes são mistérios, promessas

do espírito, a água lustral

onde, ávidos, lavamos os corpos

e os abrimos ao orvalho da noite.

 

No fulgor de cada hora crepita

um crepúsculo na sombra dos deuses,

um amor na invernia deste mundo.

 

Toco o corpo que se abre ao poente.

No orvalho de ardor e mistério,

sinto a água que na noite me espera.

 

Janeiro de 2024


domingo, 21 de janeiro de 2024

Geometrias de fogo (24)

Noronha da Costa, Pôr do Sol (Gulbenkian)

O sol cinda-se em línguas de fogo. Ao arderem, abrem a terra aos segredos do céu. Brilham na antecâmara da noite, dançam trémulas na casa do crepúsculo, contorcem-se em ondas luminosas, como se nelas houvesse a presença de um abecedário que, tocado pela cintilação do fogo, se desdobrasse em mil línguas, conhecidas e desconhecidas, públicas e secretas, puras e impuras.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

O sal do silêncio (109)

Carl Theodor Reiffenstein, Abgesägte Baumstämme vor einer Mauer in Oberwesel, 1858

O cântico do vento foi daqueles troncos suprimido. Um dia suportaram grandes ramagens e folhas vibrantes. O vento tocava-as e uma música vinda de terra elevava-se aos céus. Agora, submetidos ao império da utilidade, jazem esquecidos no chão. Da sua antiga musicalidade nada resta. Sobra-lhes o silêncio, não o silêncio que há no centro da vida, mas aquele que acompanha a decomposição dos corpos e a vitória da morte.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

No limiar (14)

Manuel Casimiro, Estrutura, 1970 (Gulbenkian)

Pensemos como pensa um deus ocupado a extrair do nada um mundo. O que colocará ele nesse limiar onde o nada bordeja o ser? O que será decisivo para que exista alguma coisa e não coisa nenhuma? O deus pensa que esse ponto inicial da existência é uma certa disposição que acolherá tudo o que vier e o que vier mover-se-á no horizonte dessa disposição inicial. A isso chamamos nós, talvez influenciados ainda por um eco longínquo do pensamento desse deus furtivo, estrutura. Dela tudo depende, pensamos, pois está nessa fronteira indecisa que separa, unindo, aquilo que é e aquilo que não é.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Sonetos de Inverno (4)

Bernardo Marques, Inverno (Gulbenkian)

Os dias frios, as horas gastas da vida,

céus de chumbo, o silêncio do medo.

Em Janeiro, teço sombras e nuvens,

traço linhas na brancura da noite.

 

A tristeza rasga a terra e os mares.

Um fantasma no escuro da casa,

no jardim onde as rosas secaram.

Um punhal no coração da paisagem.

 

Visto as sombras que teci em silêncio.

Visto as nuvens que me cobrem o corpo.

Em Janeiro, vejo os céus, oiço o medo.

 

Treme a terra na tristeza da casa.

Tremo pálido no frio do jardim.

São escuras as paisagens sem rosas.

 

Janeiro de 2024 

sábado, 13 de janeiro de 2024

O Espírito da Terra (28)

Bartolomeu Cid dos Santos, Terra Incógnita (Gulbenkian)

Nenhuma terra é como esta. Uma terra coroada de mistérios e enigmas, uma terra atravessada por rios cintilantes e caminhos escavados na púrpura das paisagens. Habitam-na seres que trazem na boca o bastão das palavras. Quando assentam arraiais, constroem aldeias e cidades, onde se entregam à lenta decifração dos segredos ou ao cansaço das noites polvilhadas de sonhos.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Pintura e haikus (37)

Albert Rafols Casamada, Del azul, 1997

 Manchas de brancura

em superfície azul.

Nuvens no oceano.

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Impressões 115. Primeiros passos

Max Libermann, The first step (Mother and Child, small sketch), 1890

A realidade não será, na sua natureza mais fundamental, senão um tecido de impressões, que tomam figura e, ao configurarem-se, permitem que os nossos sentidos se iludam e tomem como traço definido e rigoroso aquilo que é apenas o rasto dessas impressões. Se abandonamos a ilusão do rigor e da definição, então descobrimos que tudo é esboço e, sendo assim, qualquer passo é sempre o primeiro passo, um ensaio perante o desconhecido.

domingo, 7 de janeiro de 2024

Sonetos de Inverno (3)

George Inness, Winter, Close of Day, 1866

Sol de Inverno, sol de mármore rosa,

luz do céu frio na manhã de Janeiro.

Os dias correm pelo vento tocados,

são navios de caruma sem norte.

 

Oiço pássaros romper o silêncio,

abrir mundos ao ardor da harmonia,

velhos cânticos ressoam nas ruas,

enquanto os homens sonham extáticos.

 

Vendavais de luz e mármore rosa

são segredos escondidos nos barcos

do Inverno, vozes vivas da terra.

 

Oiço cânticos na casa do tempo.

O silêncio arde preso aos dias,

uma rosa desfolhada nos dedos.

 

Janeiro de 2024 

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

A sombra da água (24)

François Boucher, The Waterfalls of Tivoli, 1730

As águas caem como sombras inquietas sobre a terra. Tomadas pela ânsia, precipitam-se do alto da montanha. Anima-as um desejo de fogo, um chamamento vindo de longe. Querem ser rio para deslizar pelo leito escavado na rocha e encontrar na imensidão secreta do oceano o lar de onde partiram.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Signo sinal 16. Identidade

Nikias Skapinakis, Objecto não Identificado - XLII, 1968 (Gulbenkian)

Objectos não identificados são como países ainda não descobertos. Têm fronteiras que lhe determinam o contorno, possuem um corpo como se fora uma imenso território. Por vezes, arvoram um pavilhão que deles será símbolo, mas ainda não têm um nome que lhes permita saber o que neles há de luz e o quinhão que suportam de trevas. Correm pelo espaço, navegam pelo tempo, procuram em cada recanto a identidade que lhes trará uma denominação e o passaporte para o pensamento.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

A memória do ar (23)

Chas. A. Hellmuth, Broadway, N. Y., 1920-25 (Photoseed)
 
Pessoas caminham como estátuas enlouquecidas pela desmedida da cidade. Vão presas ao talento aéreo da sua loucura. São pássaros inflamados pelo desejo de voar, mas faltam-lhes as asas. Quando o ar irrompe no seu caminho, trazido pela força rolante do vento, elas olham os céus e apenas vêem sombras. Os seus corpos são de pedra e nem a vontade mais pura as consegue erguer  ao éter dos céus.

sábado, 30 de dezembro de 2023

Sonetos de Inverno (2)

László Meitner, Inverno em Paris (Gulbenkian)

Estes dias de sombra trazem nas mãos

o bramar das aves negras de Inverno.

São presságios, são auspícios sem luz.

Uma carta tão fechada na noite.

 

Dança a chuva nas paredes das casas

destelhadas pelo vento do norte.

Dança a velha soberana no paço

carcomido pela morte das rosas.

 

Uivam lobos nas montanhas sem neve.

Grasnam corvos nas ramagens despidas.

Rugem homens esquecidos na cidade.

 

Nas gargantas das mulheres exaustas,

os murmúrios de um amor desprezado

a poeira sulfurosa os sufoca.

 

Dezembro de 2023


quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Geometrias de fogo (23)

Felix Vallotton, sem título, 1917

A devastação trazida pelo fogo cresce em nuvens negras de fumo. Na terra queimada, as árvores são cadáveres hirtos, com os ramos apontando para os céus. De todos os lados que se olhe, apenas se vê uma paisagem feita de desolação e dor. As labaredas, ainda vivas, continuam a cintilar. São um sinal na terra, uma admoestação caída dos céus.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Haikai do Viandante (433)

Ando Hiroshige, A family in a misty landscape, 1843-42
 
Paisagem de bruma.
Sombra sobre nevoeiro.
O sol do silêncio.

domingo, 24 de dezembro de 2023

No limiar (13)

Jorge Molder, O Pequeno Mundo, 2020 (Gulbenkian)

Em cada momento, o homem, qualquer ser humano, encontra-se suspenso do eterno movimento do devir. Não é que o que era e não é o que será, mas apenas duas negações, pois o limiar é ponto onde essas negações se suprimem e se transformam numa afirmação que dura a eternidade de um instante. Visto pelos olhos da humanidade, esse homem, cada ser humano, é um ser indeciso, cujos contornos, a que falta a nitidez da decisão, não são mais do que as fronteiras porosas por onde os raios do tempo passam. Visto por olhos divinos, a sua imprecisão surge como a marca rigorosa da finitude com que se atormenta.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Sonetos de Inverno (1)

Pedro Calapez, Viagem de Inverno, 1989 (Gulbenkian)

Vem solstício. Do Inverno a luz

abrirás, e os segredos da noite

brilharão entre estrelas e luas,

entre mares de azul e cobalto.

 

Ó intróito da invernia, paroxismo

do silêncio e das trevas amargas.

Crescerão depois os dias, canções

haverá pelos lugares sem nome.

 

Ao cair, a noite ergue-se frágil

no murmúrio da floresta, rumor

das estrelas, sal secreto da vida.

 

Uma cruz de azevinho ao longe,

velhos cânticos, Natal no horizonte.

A luz pálida será fogo ardente.

 

Dezembro de 2023 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

O sal do silêncio (108)

Mathilde Battenberg, Provence landscape, 1914

A luz desenha paisagens tintas pela eternidade. Nelas crescem as cores que cintilam no olhar do espectador. Onde os ciprestes se elevam nasce um silêncio tão poderoso, que a tudo inunda. Os ventos calam o rumor que os habita, os homens abrigam-se no colmo das casas e todas as coisas mergulham na mudez reconciliadas com o fulgor daquilo que não tem princípio nem fim. 

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

A sombra da água (23)

Carl Rottmann, Santorini (Thira), c. 1843

Olha as águas e a luz fulminante cega-me, como se no fundo germinassem monstros luminosos ou fantasmas iridescentes, como se um enigma subisse à superfície e se entregasse a uma incansável cintilação. Fecho, então, os olhos e toda a luz aquática reflui para o centro sombrio do meu corpo. 

sábado, 16 de dezembro de 2023

Sonetos de Outono (12)

Jan Van Goyen (atrib.), Dirt Road with Farmhouse and Board Fence, 1629

Adeus, Outono, o aprazado tempo

chegou com folhas mortas, água fria,

vento de Norte e a saudade súbita

de quem partiu e não virá jamais.

 

Recolho a casa, deixo as ruas sujas,

praças vazias, a memória trémula

do verso esquivo e das sombras ténues,

onde escondia o ardor do fogo.

 

Ramos despidos clamam, vozes duras,

vozes de Inverno, flores, sal e lágrimas.

Os dias decrescem no rumor das nuvens.

 

Grande mistério é a noite escura

onde um deus aguarda a hora próxima

para lançar na terra o sol e a sombra.

 

Dezembro de 2023 

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

A memória do ar (22)

Carl Philipp Fohr, Cloud Study, c. 1816/17

A transumância das nuvens pinta de cinza e negro os grandes espaços onde o ar circula como uma sombra transparente e silenciosa. São um rebanho sem pastor nem cão de guarda. Vão, mas mas a memória lembrar-lhes-á o retorno, na hora aprazada, ao lugar de onde partiram para observarem, das aéreas alturas, vales e planícies ou as inquietantes montanhas.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Sonetos de Outono (11)

Antonio Tápies, A caída, 1982

Eis o tropel dos dias passando grave

pela diáspora da vida simples,

pela aurora doutro tempo a vir.

Eis o silêncio desta noite sôfrega.

 

Amargas dores, corações rasgados.

O abandono é semente ávida,

germina fácil no mortal terreiro

onde o ser em névoa fria se oculta.

 

Não veneremos o clamor dos deuses

sujos de sangue ou da cal da morte,

filhos de rosas sem o véu da cor.

 

Sim, é de ferro o anel de ouro.

Sim, é nocturna essa luz do dia.

Sim, é de sombra a alva nau de Outono.

 

Dezembro de 2023


domingo, 10 de dezembro de 2023

Pintura e haikus (36)

Gino Severini, Danseuses, 1912-13

A súbita música,

em ondulante esquadria,

gera corpo e dança.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Sonetos de Outono (10)

Alfred Sisley, Bank of the Seine in Autumn, 1876

Como um pássaro já ferido canto

uma canção feita silêncio e dor.

Oiço o ritmo ancestral na fímbria

das folhas secas, no vazio da alma.

 

Trago em mim cada Outono vivo,

cada Outono preso aos dias passados,

ao calendário feito de erva fresca

e de memórias para sempre mortas.

 

Deixo que o ser na luz se revele livre,

na liberdade do mistério aberto

como um livro de orações sagradas.

 

Vou pela estrada sem destino claro,

sem o fulgor dos dias de Estio, acesos

no esquecimento do ardor da noite.

 

Dezembro de 2023