Albert Rafols Casamada, Del azul, 1997 |
Manchas de brancura
em superfície azul.
Nuvens no oceano.
Max Libermann, The first step (Mother and Child, small sketch), 1890 |
George Inness, Winter, Close of Day, 1866 |
Sol de
Inverno, sol de mármore rosa,
luz do céu
frio na manhã de Janeiro.
Os dias
correm pelo vento tocados,
são navios de
caruma sem norte.
Oiço
pássaros romper o silêncio,
abrir mundos
ao ardor da harmonia,
velhos
cânticos ressoam nas ruas,
enquanto os homens
sonham extáticos.
Vendavais de
luz e mármore rosa
são segredos
escondidos nos barcos
do Inverno,
vozes vivas da terra.
Oiço cânticos
na casa do tempo.
O silêncio
arde preso aos dias,
uma rosa
desfolhada nos dedos.
François Boucher, The Waterfalls of Tivoli, 1730 |
Nikias Skapinakis, Objecto não Identificado - XLII, 1968 (Gulbenkian) |
Objectos não identificados são como países ainda não descobertos. Têm fronteiras que lhe determinam o contorno, possuem um corpo como se fora uma imenso território. Por vezes, arvoram um pavilhão que deles será símbolo, mas ainda não têm um nome que lhes permita saber o que neles há de luz e o quinhão que suportam de trevas. Correm pelo espaço, navegam pelo tempo, procuram em cada recanto a identidade que lhes trará uma denominação e o passaporte para o pensamento.
Chas. A. Hellmuth, Broadway, N. Y., 1920-25 (Photoseed) |
László Meitner, Inverno em Paris (Gulbenkian) |
o bramar das
aves negras de Inverno.
São
presságios, são auspícios sem luz.
Uma carta
tão fechada na noite.
Dança a
chuva nas paredes das casas
destelhadas
pelo vento do norte.
Dança a
velha soberana no paço
carcomido
pela morte das rosas.
Uivam lobos
nas montanhas sem neve.
Grasnam
corvos nas ramagens despidas.
Rugem homens
esquecidos na cidade.
Nas
gargantas das mulheres exaustas,
os murmúrios
de um amor desprezado
a poeira
sulfurosa os sufoca.
Dezembro
de 2023
Felix Vallotton, sem título, 1917 |
Jorge Molder, O Pequeno Mundo, 2020 (Gulbenkian) |
Pedro Calapez, Viagem de Inverno, 1989 (Gulbenkian) |
Vem
solstício. Do Inverno a luz
abrirás,
e os segredos da noite
brilharão
entre estrelas e luas,
entre mares
de azul e cobalto.
Ó intróito
da invernia, paroxismo
do silêncio
e das trevas amargas.
Crescerão
depois os dias, canções
haverá pelos
lugares sem nome.
Ao cair, a
noite ergue-se frágil
no murmúrio
da floresta, rumor
das
estrelas, sal secreto da vida.
Uma cruz de
azevinho ao longe,
velhos
cânticos, Natal no horizonte.
A luz pálida
será fogo ardente.
Mathilde Battenberg, Provence landscape, 1914 |
Carl Rottmann, Santorini (Thira), c. 1843 |
Jan Van Goyen (atrib.), Dirt Road with Farmhouse and Board Fence, 1629 |
Adeus,
Outono, o aprazado tempo
chegou com
folhas mortas, água fria,
vento de
Norte e a saudade súbita
de quem
partiu e não virá jamais.
Recolho a
casa, deixo as ruas sujas,
praças
vazias, a memória trémula
do verso
esquivo e das sombras ténues,
onde
escondia o ardor do fogo.
Ramos
despidos clamam, vozes duras,
vozes de
Inverno, flores, sal e lágrimas.
Os dias
decrescem no rumor das nuvens.
Grande
mistério é a noite escura
onde um deus
aguarda a hora próxima
para lançar
na terra o sol e a sombra.
Carl Philipp Fohr, Cloud Study, c. 1816/17 |
Antonio Tápies, A caída, 1982 |
pela diáspora
da vida simples,
pela aurora
doutro tempo a vir.
Eis o
silêncio desta noite sôfrega.
Amargas
dores, corações rasgados.
O abandono é
semente ávida,
germina fácil
no mortal terreiro
onde o ser
em névoa fria se oculta.
Não veneremos
o clamor dos deuses
sujos de
sangue ou da cal da morte,
filhos de rosas
sem o véu da cor.
Sim, é de
ferro o anel de ouro.
Sim, é nocturna
essa luz do dia.
Sim, é de
sombra a alva nau de Outono.
Dezembro
de 2023
Alfred Sisley, Bank of the Seine in Autumn, 1876 |
Como um
pássaro já ferido canto
uma canção
feita silêncio e dor.
Oiço o ritmo
ancestral na fímbria
das folhas secas,
no vazio da alma.
Trago em mim
cada Outono vivo,
cada Outono
preso aos dias passados,
ao
calendário feito de erva fresca
e de
memórias para sempre mortas.
Deixo que o
ser na luz se revele livre,
na liberdade
do mistério aberto
como um
livro de orações sagradas.
Vou pela
estrada sem destino claro,
sem o fulgor
dos dias de Estio, acesos
no
esquecimento do ardor da noite.
Dezembro de 2023
Rafael Barradas, Paisaje vibracionista, 1918 |
Vincent van Gogh, Camino con sauces podados, 1889
Nascem
desejos em turvado céu.
As nuvens
correm no silêncio vivo,
anunciam
chuva entre os ramos secos.
Flores e
frutos da memória caem.
Os dias
obscuros, uma fria tristeza,
pálido sol, rosas
de cor amarga,
eis o Outono
no lençol de linho
tecido em
dia de tempestade e fúria.
Soltam-se
ventos sobre as ruas vazias.
Olho a tarde
em abrigo cálido,
deixo correr
ao vento o sal do mar.
Pobres, os lábios
exaltados sopram
velhas
canções de vinho, luz e mágoa.
Eu oiço,
oiço-te, ó voz silente.
Dezembro
de 2023
Caspar David Friedrich, Autumn, 1826 |
sobre as
ruas vazias da cidade velha.
O tempo
corre entre folhas secas
presas nos
ramos de cansadas árvores.
Ouvem-se
gritos de amargura tensa,
rasgam a
tarde como corvos tintos
pela tristeza
de perdidas guerras,
velhos ardores
dum império findo.
Deixo o
espírito vogar nas sombras,
a tarde as
traz presas ao corpo gélido,
ao abandono da
memória breve.
Passo o cabo
das tormentas, ergo
as mãos aos
astros no licor amargo
dos dias de chuva,
no frio mar da morte.
Novembro de 2023
Hans Thoma, The War, 1907 |
Rudolf Schlichter, O mundo inanimado, 1926 |
Camille Pissarro, Outono, 1876 |
de novos mundos,
novas terras, nova
luz no
orvalho da aurora pálida,
nos desavindos
corações sombrios.
Traz o
fulgor a estes dias cegos,
às noites
frias onde o musgo verde
amadurece na
memória muda
de um
presépio esquecido, morto.
Oiço o
silêncio da floresta viva.
Vejo-o dançar
na cornucópia alegre
destas cidades
de cristal e pedra.
Canto o
devir vão da manhã de bruma,
o abandono do
jardim perene
ao sal de
fogo, aos sinais de Inverno.
Novembro
de 2023
Karl Schmidt-Rottluff, Lua sobre a costa, 1956 |
Bodil Obberg Pettersson, Early Autumn, 1980 (aqui)As cores de Outonodeslizam na tela fria. São sombras sonâmbulas. |
Wassily Kandinsky, Autumn in Bavaria, 1908 |
Os corações tão
desejosos cantam
os dias de
Outono, a chegada alegre
do vinho
novo, sangue, sol e água.
No céu, os
pássaros desenham símbolos,
inscrevem letras
na paisagem fria,
presos no
voo entre terra e nuvens,
soltos no fogo
que alastra trémulo.
Oiço o
silêncio no rugir do vento
ou no rumor
das tuas mãos abertas,
leves, na dádiva
da noite escura.
Toco os teus
lábios com o vinho novo,
bebo-te, casta,
no deserto árido.
Viajamos
ébrios na vertigem muda.
Novembro de 2023
Mario Sironi, Paesaggio urbano, 1942 |