sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Diálogos morais 22. No paraíso

Pierre Bonnard, Le paradis terrestre, 1916-20
- Estou nua e tenho frio.
- No paraíso não sabemos o que significa estar nu, nem o que é o frio ou o calor.
- Desejo-te, o meu corpo estremece se penso em ti.
- No paraíso nada nos falta, não temos o que desejar.
- A minha alma é uma girândola de anseios, sacia-me.
- Pensas que sou uma serpente?

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Poesia do Viandante (739)

Darío Villalba - Árbol Bergman II (1976)
739. a segunda árvore

a segunda árvore
nascia
na corda presa
à roldana
poço de água
a arder
no húmido húmus
da urgência

(29/12/2016)

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Diálogos morais 21. Uma questão de nome

Ruth Orkin, Tirza in the Mirror, 1952
- És parecida comigo.
- Fui feita à tua imagem e semelhança.
- Podias vir brincar para aqui.
- Não posso sair de casa, mas tu poder entrar pelo espelho.
- Impossível.
- A tua mãe não deixa? Tens  medo de uma casa desconhecida?
- Não. Nada disso é problema. Só não me chamo Alice.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Haikai do Viandante (378)

George Inness, Días de verano, 1857
O Verão declina
na sede dos animais.
Silêncio e água.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Diálogos morais 20. Asas

Gordon Parks, Ballerinas Renee (Zizi) Jeanmaire & Collette Marchand of the Ballet de Paris company. NY, 1949
- Se tivesse asas, também me elevaria como tu.
- Mas eu não tenho asas.
- Silêncio, se não cais.

domingo, 1 de setembro de 2019

Aparição

Sergey Borisov, Russia, 1988
Houve apenas duas testemunhas. Uma morreu passado dias, a outra sou eu. Na fotografia que correu mundo, nunca se soube quem a tirou, sou o que está perfilado. Sobre o acontecido, uns diziam que a fotografia era falsa, outros que se estava perante uma assumpção aos céus, outros que era a chegada de um emissário de Deus. Ninguém estava certo. A fotografia era verdadeira, mas a pessoa, se era uma pessoa, nem descia nem subia aos céus. Formou-se ali mesmo diante de mim. O ar tornou-se mais espesso, ganhou contornos, até que se modelou como um ser humano. Pairou alguns minutos à minha frente, depois caminhou pelos ares, dobrou uma esquina. Não há quem saiba o que lhe aconteceu.

sábado, 31 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (738)

Darío Villalba, Árbol Bergman I (1976)
738. a primeira árvore

a primeira árvore
um fogo
no ritmo dos ramos
nos ninhos
esquecidos
por pássaros de poeira
no incêndio do inverno

(29/12/2016)

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O sal do silêncio (25)

Philip Jones Griffith, Group of school children with their teacher waiting to board a bus. Liverpool,  1952
O silêncio que cresce nos rostos e transpira para o mundo traz uma mensagem feita de rugas, sorrisos tolhidos nos lábios, olhares abertos para o invisível. Não há luz que o ilumine nem trevas que o obscureça. É um silêncio habitado por larvas inquietas que nele encontram o sossego do seu casulo.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Impressões 39. Encarnação

Todd Webb, Broadway at Wall Street, New York, 1959
Sob a luz sonâmbula do candeeiro, sombras ganham carne e figura, um corpo, que logo se esconde na fantasia ociosa das roupas. É uma dança de uma tribo antiquíssima que então se vê, um rodopiar com pontos de fuga, o exercício sagrado da encarnação.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Pintura e haikus (12)

Michel Larionov, Calle con farolas, 1910
Dédalos de luz
brilham secretos na noite.
Rua fria e lívida.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

A espera

Edward Hopper, Summertime, 1943
Tinha-se apaixonado loucamente por um desconhecido, num daqueles dias de Verão em que tudo parece possível. Ele disse-lhe o nome, Godot, e que o esperasse à porta de casa. De chapéu na cabeça para enfrentar o sol, ela assim fez. As horas passaram, sem que o amado chegasse. Ela, porém, não desistiu. Passaram semanas, meses. O Verão declinou e o Outono deu lugar ao Inverno. O seu amor era de tal maneira grande que não arredou pé. Traziam-lhe comida e agasalhos, ela porém só tinha olhos para o fim da rua. As grandes chuvas não a intimidaram. Aquela era agora a sua vida. Quando Godot chegou, ela não era mais que uma fria estátua de pedra, coberta pelos grandes nevões de Fevereiro.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (737)

Tal-Coat, Vuelo, 1973
737. uma ave de tinta

uma ave de tinta
negra
voa no vigor
da brancura
no céu de azoto
no cordel cardado
pelas nuvens de novembro

(29/12/2016)

domingo, 25 de agosto de 2019

Diálogos morais 19. Os gémeos suicidas

Rodney Smith, Twins Leaning Outward, 1997
- Será muito fundo?
- Não me parece.
- Talvez seja arriscado mergulhar aqui.
- Sim, é um risco. Nada nos garante que não nos salvemos.
- Se eu morrer, como poderei ter a certeza que também tu morreste.
- Devolvo-te a pergunta.
- É um enigma irresolúvel. Saltas?
- Claro que sim, mas tenho um problema. O fato foi tão caro.
- Eu também salto, mas por nada deste mundo quero estragar o chapéu.
- Poderíamos tirá-los, fato e chapéu.
- Impossível, como, sem eles, saberíamos que somos nós?
- Tens razão. Aliás, o mar não me parece nada fundo.

sábado, 24 de agosto de 2019

Diálogos morais 18. Não

Dorothea Lange, Consumer relations, San Francisco, 1952
- Vamos mais depressa, anda.
- Não.
- Dá-me a mão.
- Não.
- Queres perder-te?
- Não.
- Queres ir ao colo?
- Não.
- Gostas da mamã?
- Não.
- A mamã é má?
- Não.
- Só sabes dizer não?
- Não.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Meditação Breve (108) O peso do passado

Gertrude Käsebie, Indian Chief, c. 1901
Sempre que se olha pausada e longamente para o futuro, o que dá profundidade e exactidão ao olhar é o peso que o passado deposita nele. Sem uma tradição, os olhos perdem-se na superfície móbil da existência e são incapazes de perscrutar o amanhã.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

O sal do silêncio (24)

Paul-Emile Pajot y Gilbert Pajot, A Concarneau, va- et- vient des bateaux de pêche
Feitos da matéria dos sonhos, os barcos deslizam nas águas. Vão e vêm, empurrados pelo vento, sonhados por sonhadores dedicados, que se entregam ao sono durante o dia, para que os pescadores não desesperem retidos em terra, sem que um sonho lhes mova a embarcação.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (736)

Manuel Viola - Ardiendo (1973)
738. um fogo no pórtico

um  fogo no pórtico
a sombra
ergue-se
na erva do estio
e adormece
na água da aurora
no silvar das cigarras

(29/12/2016)

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Transfiguração

Giovanni Segantini, A messa prima, 1884-85
Era o mais popular dos sacerdotes que a paróquia já tivera. Todas as manhãs, bem antes da primeira missa, subia as escadas da Igreja e abria-a. Aos pobres, dava o que tinha. Vivia com pouco, apesar do muito que lhe davam. Aos ricos, ajudava-os a suportar o fardo do egoísmo, abrindo caminhos insuspeitados nos seus corações. Não havia quem não gostasse dele. Num domingo, porém, não o viram subir as escadas. A porta da Igreja, chegada a hora da missa, estava fechada. O tempo passava. Procuraram-no em casa. Não estava. Forçaram a porta do templo. Por trás do altar, ele pendia, sotaina a escorrer sangue, de uma cruz tosca. O rosto era o dele, mas nunca se parecera tanto com Cristo como naquela hora.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Micronarrativa (24) Aprendizagem

Stephan D. Colhoun, Laughing woman with a cup, around 1955
Não conteve o riso e explodiu numa gargalhada. Não sei o que mais me feriu, se o riso ostensivo, se o seio que, com o ímpeto, se desvelou. O som dessa explosão ecoou durante muitos anos dentro de mim. Talvez fosse apenas a voz da sabedoria que descia sobre mim. Naqueles dias, ainda não sabia quão ridículo é todo o amor.

domingo, 18 de agosto de 2019

Haikai do Viandante (377)

George Pierre Seurat, A Gray Day at the Grande Jatte, 1888
Cinzas matinais
caem nas águas do rio.
Voa o Verão.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Impressões 38. Memórias ancestrais

Martin Munkacsi, The Rent-Barracks, Budapest, c.1923
Por vezes, somos transportados para a infância. Como num sonho onde se é levado para o paraíso, damos os mãos e fazemos uma roda. Ao rodopiarmos cada vez mais rapidamente, uma música desprende-se das esferas celestes e escutamos velhas canções nascidas há muitos séculos. Sabemos cantá-las, pois em cada um de nós vive a memória ancestral da humanidade.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (735)

Mordecai Ardon - Anywhere (1971)
735. o odor do outono

o odor do outono
desfaz-se em
folhas mortas
cobertas
de paixões
e pavores
extenuadas
pelo ramalhar
do plátano ao poente

(29/12/2016)

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Haikai urbano (49)

Alfred Stieglitz, Reflections, Night–New York, 1896
Sombras do passado
caem no silêncio da noite.
Secreta cidade.

domingo, 11 de agosto de 2019

A desaparecida

Edvard Munch, Summer Night´s Dream (The Voice), 1893
Caminhava devagar nas noites de Verão. O calor impelia-a para a rua. Só assim, dando um passeio, o temor se aquietava. Era o que dizia. Talvez não passasse de uma mera justificação. Se o não fizesse, acrescentava, a noite seria atormentada por um sonho, onde uma voz desconhecida, vinda da escuridão, chamava por ela. Mal o Verão começava, ela, temerosa, dava o seu passeio, que suspendia no primeiro dia do Outono. Estes passeios terão demorado uma década. Começaram pelos quinze anos e continuaram até ao seu desaparecimento. Numa noite quente de lua nova, saiu como habitualmente. A certa altura, todos na aldeia o confirmam, ouviu-se uma voz estranha chamar por ela. Não tornou a aparecer.

sábado, 10 de agosto de 2019

Meditação Breve (107) Conferências

Albert Bloch, Conference, 1951
Esses lugares sórdidos onde se manifesta o que se esconde por detrás das máscaras sociais. Mundos de onde a verdade foi excluída, a justiça expulsa, a beleza afastada e o bem escorraçado. Ali, nenhuma luz penetra, apenas o odor sulfuroso onde as trevas preparam o inferno que desaba sobre os homens.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Meditação Breve (106) A flauta de Eva

Henri Rousseau, La Encantadora de serpiente, 1907
Como tudo seria diferente se Eva fosse uma encantadora de serpentes. Em vez de se deixar encantar por elas, tocaria a sua flauta, todas se lhe renderiam e as suas pretensões seriam subjugadas no fluxo infinito das notas musicais. Em vez de expulsos do paraíso, os homens viveriam ali resguardados pela flauta de Eva. 

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (734)

Hervé Télémaque - Jeu de l'Ombre (1997)
734. um jogo de sombra

um jogo de sombra
sombreia dans
l’ombre sombre
e sombria
do papel
carcomido pelo carvão
ombragé
dans le soleil
que nos éveil
de
setembro em septembre

(28/12/2016)

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Micronarrativa (23) Homicídio

Saul Leiter, Carol Brown in “Harper’s Bazaar”, c.1958
Quando entrou não mais consegui tirar os olhos dela. A sua beleza era tão comovente, o seu encanto tão cativante, que, por mais que o quisesse evitar, o olhar fixava-se naquele rosto. Acabei por matá-la. Não exagero. Lentamente, a imagem dela, aos meus olhos, começou a desfocar-se, a ficar granulada, até que os grãos se separaram uns dos outros. Aquele monte de poeira é o que resta dela.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Haikai do Viandante (376)

William Turner, Tarde de Verão, 1827
Na margem, um cão
ladra aos barcos que passam.
Verão, luz e água.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Impressões 37. Rios eléctricos

Alfred Eisenstaedt, Electricity emitted from machine at MIT, Boston, MA. 1949
Há noites em que sonho rios eléctricos. São rápidos, turbulentos, inquietantes. Habitam-nos peixes de cortiça e piranhas de madeira. Quem neles mergulha volta a terra de baterias carregadas. Quem os observa fica cego, tamanha é luz que deles se desprende. Quem os sonha enlouquece lentamente.