quinta-feira, 16 de maio de 2013

Da fonte do amor

Jean Delville - L'amour des âmes (1900)

Na história da humanidade sempre o amor foi sentido como um excesso, não um excesso da natureza, mas um excesso que ultrapassa a natureza, como se esta, em si mesma, fosse incapaz de dotar os corpos de tão sublime sentimento. Um corpo é desejável. No entanto, o desejo é incapaz de explicar o amor, de explicar precisamente o amor que sinto por quem está num dado corpo. É nesta impotência da explicação empírica que o homem compreende que uma outra coisa é necessária para que o amor possa nascer. Esse lugar amoroso é a própria alma e todo o amor tem na alma a sua fonte. Duas almas amam-se e, de súbito, o desejo dos corpos é mais do que um desejo, é uma luz que cai sobre eles e, ao nimbá-los, torna-os sublimes.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Poemas do Viandante (415)

Frantisek Kupka - O desafio (1903)

415. Ergo o desafio tecido de vertigens

Ergo o desafio tecido de vertigens
e deixo fluir o medo,
a dor excessiva que fere a carne,
desenha o informe trazido pelo tempo
e crava o aguilhão no centro do peito.

No lago do passado, sobre as águas frias,
flutuam velhas caravelas,
barcaças rudes tracejadas a carvão,
umas mãos brancas e febris
estendidas para o vazio que as espera.

Nessa obscuridade a que chamam amor,
deponho as armas inúteis,
entrego o velho castelo
à sombra silenciosa da tua sombra
e aguardo o rigor cruel dessa boca.

Um presságio desenha-se no horizonte,
e o monstro que me espera
eleva-se na majestade dos céus.
O seu peso não tem medida
e o olhar rasga-me as entranhas da alma.

Perdi o ofício que me atava à vida.
Esqueci cada desafio trazido pelo tempo.
Exausto, anseio pela floresta,
e canto, imóvel e sereno, a loucura
do corpo lacerado pela solidão.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Orfismo e cristianismo

Alexandre Séon - Lamento de Orfeu (1896)

Os limites espirituais do politeísmo grego expressam-se plenamente no mito de Orfeu. Diz a lenda que tendo perdido Eurídice, a amada levada pela morte, Orfeu desce aos infernos para a resgatar para a vida. Consegue convencer os deuses infernais a libertarem a amada. Estes, porém, impõe-lhe uma condição. Que nunca olhe para ela enquanto durar a travessia do reino dos mortos. Orfeu, todavia, não consegue resistir à necessidade de certificação ou ao desejo e acaba por perder Eurídice. 

O orfismo reflecte a impotência perante a morte, a incapacidade do homem resgatar a alma (Eurídice) do túmulo (o corpo ou o reino dos mortos). De certa forma é a isto, ao mistério que aqui se representa, que o cristianismo veio responder. Também Cristo desce ao reino dos mortos, não como corpo que procura no fundo de si a sua alma, mas como aquele que morreu e que na morte, na morte do homem velho, encontrou uma nova vida, melhor: encontrou a vida. Orfismo e cristianismo respondem ao mesmo problema, mas a vitória do cristianismo está toda ela contida no destino diferente que tiverem Orfeu e Cristo na sua descida ao reino dos mortos.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

A anunciação e a proclamação

Oskar Kokoschka - A Anunciação (1911)

O que faz da Anunciação um episódio central do cristianismo é a capacidade de escuta de quem é a receptora do anúncio. Escutar é, desse modo, uma dimensão central do caminho do espírito. A vida pública está ligada ao regime da proclamação. Mais do que escutar, os que têm papel central na esfera pública querem proclamar a sua verdade. O caminho do espírito, porém, não se inscreve no regime da publicidade. Quem quer entrar nele terá de pôr de lado qualquer veleidade à proclamação e aprender a escutar. O homem na sua finitude e falibilidade não é o anunciador da verdade, mas aquele para quem a Verdade é anunciada. Saber escutar é, desse modo, uma virtude central no caminho do viandante.

domingo, 12 de maio de 2013

Haikai do Viandante (142)

Caspar David Friedrich - Cape Arkona at Sunrise (1803)

Luz pálida e pura
da súbita madrugada
abre a noite escura.

sábado, 11 de maio de 2013

A outra solidão

Alexander Harrison - Solitude (1893)

Para além daquela solidão terrível sentida como abandono, há uma outra que se aventura para lá da terra firme e entra nas águas inquietas e tenebrosas. Perscruta a noite e esquece a segurança. Nessa solidão, o espírito enfrenta o terror trazido pela incerteza e aprende a confiar no porvir. Abrir-se à solidão significa, então, abandonar-se a si mesmo e confiar no espírito que o habita, deixar-se guiar, aprender o sentido da corrente, da sua própria corrente. A solidão é o lugar onde cada um pode encontrar-se consigo mesmo, o sítio da noite escura do espírito. A solidão é o lugar da verdade de si.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Dos limites da fantasia

Alexandre de Riquer - Fantasia

O discurso do senso comum, muitas vezes dinamizado por uma certa divulgação pseudo-científica, tem valorizado, para além do domínio artístico, a dimensão da fantasia. Desde a importância da fantasia na vida sexual até à sua mobilização no âmbito da publicidade e da técnica de vendas, passando pelos múltiplos usos quotidianos do fantástico, a fantasia tornou-se um vocábulo que facilmente é mobilizado como panaceia do aborrecimento e do cansaço. 

O resultado desta banalização do exercício fantástico da imaginação está longe de ser percebido. Seja a fantasia realista ou inverosímil, ela é sempre um exercício de suspensão do contacto com a própria realidade. Perante uma realidade tida como prosaica, a subjectividade recria-a, imagnariamente, à luz dos seus desejos. Esta velha propensão da humanidade para a fantasia esconde uma inconfessável impotência para acolher e maravilhar-se com a própria realidade. A usura que o olhar quotidiano sofre, impede-o de uma atenção à própria realidade. A fantasia surge, então, não como um remédio mas como uma técnica de intensificação da patologia quotidiana. 

Em diversas tradições espirituais da humanidade, e contrariamente ao que se pensa, a crítica ao desejo funda-se na fuga mundi que ele introduz através da fantasia. Essa crítica à consciência desejante não é, na verdade, uma crítica do desejo, mas ao delírio que, pela fantasia, desvia o desejo do seu objecto real. O que nessas tradições - por exemplo, na mística cristã - está em jogo não é um desvio da consciência relativamente à realidade, mas a aprendizagem de uma atenção ao que é real, como caminho que conduz ao espanto (a experiência que, segundo os gregos, leva à filosofia) perante aquilo que é, e ao deslumbramento perante a verdade.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Poemas do Viandante (414)

Emilio Sánchez Cayuela (Gutxi) - Silencio (1985)

414. Desenho o silêncio nas margens da palavra

Desenho o silêncio nas margens da palavra
e deixo-o correr pelos dedos,
rio de água clara,
fruto caído e sombra de pássaro.

Trago-o preso no coração,
mancha de incenso pela tarde,
a pergunta perdida
na esquiva desolação da cidade.

Dispo-te quando chega o estio,
e traço uma fronteira de rumores.
Esqueço cada palavra
e deixo-te, silêncio, nascer pela alvorada.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

O desejo da insignificância

Salvador Dali - Cabeça de Medusa (1962)

Apesar de Perseu, a Medusa continua a petrificar-nos. Sedutora, leva a que desviemos o olhar do nosso caminho e concentremos nela todas as nossas atenções. Transformados em pedra, tornamo-nos errantes, sem saber onde vamos e o que procuramos. A velha Górgona não é um mero monstro mitológico, mas a nossa capacidade de ilusão que nos ata de pés e mãos ao que é lateral e insignificante. O desejo da insignificância é o caminho que nos leva à Medusa e nos transforma, apesar de vivos, em rocha dura.

terça-feira, 7 de maio de 2013

A inocência

Jean-Léon Gérôme - A inocência (1852)

A inocência é uma das temáticas mais misteriosas da vida humana. Na tradição ocidental, ela é figurada pelo estado paradisíaco, no qual o homem desconhecia o mal. Ora, segundo o mito, a entrada do homem neste mundo dá-se com a Queda. Deste ponto de vista, chegamos já ao mundo num estado de culpabilidade. Aquilo que surge então como o grande desafio é tornar-se inocente, não no sentido de retorno a um estado de inconsciência perante o mal ou de alienação pela real situação em que o homem vive. O que homem deve procurar é a inocência neste mundo e nas solicitações que ele lhe coloca. Não é fugir do mundo e abster-se de agir nele, mas tornar a sua acção isenta de culpa, inocentá-la pela intenção com ela é levada a efeito, inocentá-la por ele próprio aprendeu a inocência.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Confusão geral

Stanislaw Ignacy Witkiewicz - Confusão geral (1920)

Há na vida quotidiana um estado geral de confusão, estado esse inimigo da vida espiritual do homem. A sociedade, ao complexificar-se e ao centrar-se na dimensão da produção/consumo, tornou-se estruturalmente confusa. Ao mesmo tempo, os indivíduos, uma vezes seduzidos outras amedrontados, perderam a capacidade de tornar para si mesmos claras as verdadeiras razões pelas quais vale a pena viver. A confusão social e a confusão individual intensificam-se uma à outra, tornando cada vez mais a vida caótica. O triunfo dos interesses materiais sobre o espírito, apesar de fortemente apoiado na razão científica e calculadora, está a rasurar todo o sentido da existência humana. Para onde quer que o homem se volte, apenas encontra ruído, poluição e uma confusão generalizada.

domingo, 5 de maio de 2013

Um espaço para a liberdade

Giorgio de Chirico - El enigma de la fatalidad (1914)

O determinismo - crença de que tudo o que acontece se regula por uma causalidade necessária - é uma espécie de secularização do fatalismo metafísico. Uma providência inescrutável determina a priori a ordem do mundo e o destino de cada um. Muito curiosamente, não foi a ciência moderna que libertou os homens da pesada mão da fatalidade mas as religiões, na sua dimensão de experiência espiritual. A liberdade foi uma criação do espírito religioso - e de forma absolutamente acentuada do espírito do cristianismo - que abriu uma brecha entre a fatalidade metafísica e o determinismo secular, lembrando aos homens que são feitos para a liberdade, fornecendo-lhes mesmo métodos de emancipação e de libertação da subjugação à pura necessidade. Na verdade, aquilo que está em causa nas religiões - apesar de tantas vezes obscurecido - é esta possibilidade de ser livre, é esta proposta de emancipação da fatalidade do mundo.

sábado, 4 de maio de 2013

Haikai do Viandante (141)

Carlos de Haes - Aguas buenas, Pirineos (1882)

Montanha sagrada,
por ti sigo o meu destino.
Vou só e sem nada.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Poemas do Viandante (413)

Vincent Van Gogh -  Road with Cypress and Star (1890)

413. O vento arde sobre os ciprestes

O vento arde sobre os ciprestes,
traça redemoinhos na paisagem,
deixa vestígios de luz no horizonte
e a promessa de um incêndio
no imóvel movimento das cores.

Olho a pulsação das árvores
e sinto o arpejo das almas
subindo lentamente aos céus.
 
Eternos e precários ciprestes,
sombra tardia aberta na vida,
cálice abandonado na terra,
um excesso romântico de Deus.
 
Os astros correm nos céus,
desenham páginas de silêncio
na astúcia que derramam
sobre as casas escondidas
na desolação da planície.
 
Pobres caminhantes, a vida joga-se
como um sobressalto desolado
entre o segredo de um nome
e a sombra levitada do cipreste.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O véu da ilusão

Vincent Van Gogh - Salgueiros ao pôr-do-sol (1888)

Há três coisas, efectivamente, que impedem o homem de conhecer Deus de alguma maneira. São, em primeiro lugar, o tempo, em segundo, a corporalidade, em terceiro, a multiplicidade. Enquanto estas três coisas estiverem em mim, Deus não está em mim e não opera verdadeiramente no meu foro íntimo. (Meister Eckhart, Sermões Alemães, XI)

O tempo, a corporalidade (isto é, o espaço) e a multiplicidade de coisas de natureza espácio-temporal surgem, na perspectiva do místico renano medieval, como o véu que impede o contacto directo com a verdadeira realidade. Sublinhe-se que não estamos perante um véu de natureza moral. Aquilo que impede o contacto do homem com o Absoluto não é, em primeiro lugar, uma conduta em desacordo com os princípios morais ou com a lei dada aos homens nos chamados mandamentos divinos. Antes de uma hipotética imoralidade há uma ilusão, ilusão essa que leva os homens a tomar como o efectivamente real a dimensão empírica captada pelos nossos sentidos. O apego ao tempo, ao corpo, à multiplicidade das coisas finitas é problemático porque, ao prender-nos numa ilusão sensorial, nos impede a abertura à verdade. A imoralidade deriva da ilusão e não o contrário. E o carácter problemático de uma conduta imoral reside em que ela reforça o véu de ilusão que cobre o homem e impede que o Absoluto desça nele e opere nele e a partir dele e da sua relatividade.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Uma lúgubre realidade

Leon Frédéric - A era do trabalhador (1895-97)

Como será possível denominar o quadro com o estranho título de A era do trabalhador? O que vemos, em primeiro plano, são mulheres e crianças e não encontramos vestígio de trabalho nem figuras que possam preencher o conceito de trabalhador. O que nos diz então este quadro sobre a era do trabalhador? Diz-nos que a actividade do homem se reduziu à sua condição natural, à pura corporalidade, à mera estratégia da sobrevivência da espécie, à preocupação com a reprodução da vida. A era do trabalhador é o tempo histórico em que o homem, despido da espiritualidade, se entrega plenamente aos afazeres da reprodução e da sobrevivência. A era do trabalhador é a confissão de uma dificuldade pela qual a espécie passa. Todas as suas forças se concentram nas dinâmicas biológicas ligadas ao corpo. A era do trabalhador, contrariamente ao que se propaga nas diversas retóricas sociais, não é a do reconhecimento da dignidade do trabalho e do trabalhador, mas o tempo em que a actividade do homem perdeu o sentido espiritual que dava dignidade tanto ao trabalho como àquele que o executava. A luminosidade do quadro de Leon Frédéric oculta, na beleza dos corpos e na esperança trazidas por novas vidas, a lúgubre realidade do homem moderno, a sua oclusão na pura corporalidade, o esquecimento daquilo que faz dele mais do que um animal.

terça-feira, 30 de abril de 2013

Amor entre ruínas

Edward Burne Jones - Amor entre ruínas (1894)

Veio, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça. (Paulo, Romanos 5. 20)

Se olharmos o quadro de Burne Jones, numa primeira impressão, percebemos as ruínas como um cenário onde o amor é representado. O par ali representado parece exterior ao lugar. Mas, parafraseando Paulo de Tarso, podemos dizer que, onde abundam as ruínas, superabunda o amor. A desolação das ruínas e a consolação amorosa estão intimamente ligadas, como se o amor fosse sempre o triunfo sobre a ruína, sobre a desolação trazida pelo tempo, fosse sempre uma promessa de eternidade nascida no centro da destruição que o tempo traz consigo.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Poemas do Viandante (412)

Vincent Van Gogh - Olive Trees (1889)

412. Oliveiras, livros abertos na planície

Oliveiras, livros abertos na planície,
memória vinda de um tempo esquecido,
rasto silente de quem passou
e deixou um sinal sobre a terra,
o gesto com que se abre a mão
e espera que alguém receba a dádiva.

Toco-te nas folhas e o corpo canta,
sente o cheiro de terra forte e rasgada,
o trabalho das gerações preso no fruto,
a esperança da estirpe que cria raízes
e inscreve na terra uma seara
de troncos rudes e cobertos de musgo.

Velhas árvores salvas da cilada,
o tempo ardiloso ronda-vos cheio de luz,
prestes a tomar-vos os campos
e fazer de vós ramos onde arde o futuro,
promessa de uma terra vazia,
a canção do outono silenciada no lagar.

domingo, 28 de abril de 2013

Do sofrimento e da desolação

Albert Bloch - The Grieving Women (1950-57)

O utilitarismo tem como ponto fundamental a maximização do prazer e a minimização da dor. Este princípio hedonista aplica-se ao indivíduo mas também à sociedade. Em Stuart Mill, por exemplo, o indivíduo deve aprender a adequar a sua felicidade à felicidade do grupo. Estas teorias, bem como as materialistas, esquecem demasiado depressa a estranha ligação que há entre prazer e dor ou entre felicidade e desolação. Isto era muito claro para os pensadores gregos, mas a deriva subjectivista trazida pela modernidade acabou por criar um mundo onde a infelicidade, a dor, o sofrimento e a desolação - apesar da sua presença ominosa - não são dignos de ser considerados nem de ser vistos. O triunfo do sujeito sobre a dúvida em Descartes transforma-se na ideologia da felicidade e do apagamento da dor. O próprio cristianismo, fundado no sofrimento e morte de Cristo, foi sendo adocicado - por exemplo, pela retórica vazia do amor (não é que o amor seja coisa vazia, mas o modo como se fala dele é-o muitas vezes) - de forma a não incomodar as boas consciências que sob ele possam florescer. Não se trata de fazer a apologia do sofrimento. Trata-se de não o negar e de perceber que ele faz parte da viagem, pois confronta-nos radicalmente com a nossa natureza frágil, finita e falível. Também ele, porventura de maneira mais acentuada do que a felicidade e o prazer, nos ensina alguma coisa sobre a realidade e a autêntica natureza daquilo que somos.

sábado, 27 de abril de 2013

O silêncio e o nada

Odilon Redon - O silêncio

O silêncio não diz nada (rien), talvez porque é o nada (néant) que «diz» o silêncio. Compreendo que o nada (néant) é silencioso e que apenas podemos perceber o nada (néant) no silêncio. (Raimon Panikar, Mystique plénitude de Vie, p. 162

Há no mundo de hoje uma enorme poluição sonora. Não há lugar algum para onde possamos ir sem que o ruído nos invade. O pior, porém, são as palavras que nunca se calam dentro de nós. Esta poluição é o sintoma de um medo profundamente enraizado. Medo de quê? Medo de enfrentar esse nada que fala no silêncio, medo de se abrir para ele, medo de nos esvaziarmos para que ele seja nada em nós. O silêncio é a abertura para além do domínio das imagens sonoras, para além da multiplicidade das línguas e da pluralidade das palavras. No silêncio, escutamos, vazios, o Logos, esse nada anterior a todos os seres, esse verbo anterior a todos os sons. E isso aterroriza-nos, como o silêncio dos espaços infinitos já aterrorizava Pascal.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Haikai do Viandante (140)

Francesco Guardi - Capriccio of a Harbor (1760-70)

Um porto ensombrado
acolhe barcos e homens.
Zarpam lado a lado.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

De crepúsculo em crepúsculo

Pierre Bonnard - Crepúsculo (1892)

O crepúsculo não é apenas a claridade que permanece depois do pôr-do-sol ou que antece a alvorada. Por analogia, crepúsculo designa a condição do homem. O homem possui uma consciência crepuscular. Isto significa que ela não é uma consciência obscura ou absolutamente tenebrosa. Mas significa também que a luz da sua consciência está longe, muito longe ainda, da mais pura luminosidade. O grande equívoco do Iluminismo foi pensar que, com o predomínio da razão, o homem transitava de uma consciência crepuscular para uma consciência luminosa. Essa não é, contudo, a natureza do homem na Terra. Enquanto envolto na vida deste mundo, o homem não progride das trevas para a luz, mas desloca-se, infinitamente, de crepúsculo em crepúsculo.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Poemas do Viandante (411)


411. A tília perdida no caminho

A tília perdida no caminho
abre-se solitária e austera ao viandante.
Promessa de floresta nos campos,
as folhas tintas de sombra,
luz da tarde a despontar ao longe.

Sou um velho animal ferido
e sob os teus ramos contei os dias,
tracei mapas de urze e abandono,
esperando, transfigurado, um sopro
que tocasse no íntimo da folhagem.

O silêncio de Deus caiu sobre ti
e, se um relâmpago cruzava os céus,
era apenas o eterno desamparo
de uma nuvem que se acolhia
no húmido regaço de outra.

Olho os teus ramos tocados de vida
e oiço o cântico do anjos.
Palavras feridas cintilam-te nas raízes
e rasgam um caminho de solidão.
Nele, tranquilo, aguardo por ti.

terça-feira, 23 de abril de 2013

O combate enigmático

Arshile Gorky - Combate enigmático (1937)

Não há combate mais enigmático do que aquele que alguém trava consigo mesmo. Não quer ele melhorar e ultrapassar-se, ser outro e ter novas virtudes e reconhecidos méritos? Onde reside o enigma? Assim pergunta a pessoa sensata, tão habituada a reduzir tudo à dimensão da sua sensatez. Mas o enigma não se oferece aos que persistem na sensatez. Aquele que combate o enigmático combate consigo mesmo está preso numa névoa obscura, a névoa da sensatez. É dela que ele se afasta combatendo, mas não sabe ainda que o enigma do combate reside na sua inutilidade. Se o véu, um dia e inesperadamente, se rasgar, descobrirá que não lhe resta aceitar-se naquilo que é. Nessa hora, a insensatez triunfou e ele está pronto para o caminho da sabedoria.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

O medo e a ameaça

Juan Genovés Candel - Amenaza (1969)

Talvez o grande inimigo da vida do espírito não seja o mundo e as suas seduções mas o medo. A ideia de se abandonar ao vento do espírito, de abrir mão de si e das suas seguranças, pode gerar - e gera, certamente - um sentimento de ameaça, de estar na vida desprotegido e entrega ao cuidado de algo que não se controla. Abdicar da vontade própria, pôr de lado as ilusões que constituem o cerne da identidade é o contrário da inclinação natural do homem. A sedução do mundo é apenas um analgésico e um tranquilizante perante a ameaça da verdadeira liberdade.

domingo, 21 de abril de 2013

Orfandades

Giovanni Segantini - Gli orfani (1886)

Talvez o sentimento de orfandade ultrapasse em muito a experiência da perda parental. Por terrível que seja a orfandade biológica e familar, ela inscreve-se - porventura, ganha sentido - num outro sentimento de orfandade anterior e consitutivo da nossa experiência do mundo. Talvez vir ao mundo seja já sentido como orfandade, como a perda de algo decisivo e fundamental. E esse sentimento de perda acompanha o homem ao longo da vida, como se fosse um sinal para que ele tome consciência daquilo que perdeu. De certa maneira, a tematização da derrelicção em Heidegger é uma aproximação a essa orfandade originária. Só que esta não é o sentimento de um puro abandono no mundo de um ser para a morte, mas o vestígio que desencadeia a reminiscência e põe o homem a caminho do que perdeu.

sábado, 20 de abril de 2013

Haikai do Viandante (139)

Francis Picabia - El árbol amarillo (1909)

Árvore amarela
abre-se sobre a floresta,
traz a luz com ela.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Poemas do Viandante (410)

Malcolm Morley - Leopard Panthera (1997)

410. Brilham na noite os olhos do leopardo

Brilham na noite os olhos do leopardo,
diamantes que perfuram as entranhas,
e abrem na vida o mistério da morte.

Soberbo animal decaído na terra,
rasto de fogo sob o gélido pavor,
vertigem que sacode a poeira
e rasga a luz em tecidos de sombra.

A pura espera de sangue na boca,
um hálito de facas afiadas
apontado ao coração da vítima,
dança arcaica no terreiro obscuro,
onde o deus armou o altar.

Esses teus olhos resvalam na alma
e o corpo transido entrega-se
ao galope do anjo negro.
E sob o luminoso olhar canta-se
o requiem que a morte concede
ao vestígio de dor que anima a vida.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Caminho de sabedoria

Pablo Picasso - Pareja de pobres (1903)

Segundo o bispo Alberto, um homem pobre é aquele que não se satisfaz com nada que foi criado por Deus; e isto está bem dito. Mas nós dizemos ainda melhor e tomamos a palavra pobreza num sentido ainda mais elevado: é um homem pobre aquele que não quer nada, não sabe nada e não tem nada. (Meister Eckhart, Sermão alemão n.º 52)

Será preciso, para compreender estas palavras de Eckhart, distinguir entre ciência e sabedoria. A ciência é a posse de qualquer coisa, de uma imagem da realidade, de uma representação das coisas. A sabedoria, porém, nasce do desapossamento total. Ela é, de facto, pobreza de espírito. A importância da pobreza não deriva de haver pobres socialmente, mas no facto de que quem procura a sabedoria deve aprender a tornar-se pobre de espírito. O que significa isto? Significa que deve abandonar todo o conhecimento ilusório adquirido no mundo, todo o domínio das aparências com que se auto-ilude. A pobreza de espírito, porém, não é apenas uma purga cognitiva e uma limpeza teórica. Ela é também uma purificação da vontade, ao abandonar toda a vontade de poder e todo o desejo de posse. Aniquilar em si a vontade de poder, de saber e de possuir é o primeiro passo para uma abertura à verdadeira sabedoria. Estas são as mais estranhas palavras que se podem dizer a uma consciência moderna, tão orgulhosa das suas conquistas, dos seus poderes e dos seus saberes. Não compreende que na verdade, por útil ou agradável que tudo isso seja, não deixa de ser vento que passa.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Folhas mortas

Ernest Biéler - La Ramasseuse de feuilles mortes (1909)

Colher as folhas mortas para as transformar em fertilizante que, ao ser devolvido à terra, alimentará a vida. Quando Platão diz que uma vida não examinada não merece ser vivida, é de folhas mortas que ele está a falar. Examinar a vida vivida é recolher as folhas mortas e, através de severo e meditativo exame, dar-lhe um sentido que alimentará a vida a viver. Nada do que se fez, pensou ou omitiu é sem préstimo. Pelo contrário, reside nessas estranhas folhas que o tempo arrancou de nós a matéria viva que a vida exige para entrar nesse reino inquietante a que damos o nome de futuro.