sábado, 22 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (362)

Ben Shahn - Sing Sorrow (1946)

362. MUITAS HORAS VAGUEEI PELAS RUAS

Muitas horas vagueei pelas ruas.
Procurava um gesto,
a sombra de uma árvore,
o indício de uma voz,
o mar encapelado que me traria
o teu rosto.

Em vão passaram dias e meses.
Uma úlcera nasceu na alma,
cresceu pelo corpo,
traçou caminhos sem destino,
a terra queimada,
lâmina a sangrar-me os pés.

Peço-te a gangrena de uma palavra,
a prova inútil da solidão,
o cadáver do amor,
para que o luto desça
nos meus olhos,
que derrotados possam descansar.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (361)

Julio Gómez Biedma - Un agujero negro

361. SOBRE AS FALÉSIA DO SENTIMENTO, A NOITE ABRE-SE

Sobre as falésias do sentimento, a noite abre-se
para te acolher num jardim moldado na terra,
o lento trabalho do secreto formigueiro
sob o abençoado cântico da cigarra.
Para que servem as alegorias nesta hora?
Ouvem-se os pássaros na rocha negra,
e no areal rasgado pelas águas espalham-se
algas, conchas, restos de plástico e madeiras
carcomidas, o ardil antigo do comércio.

Todos se acercam, ociosos, do seu destino,
e vão triunfantes sobre ervas e caminhos,
esquecidos de quem no fim os espera para entoar
a canção, a vitória desolada sobre a vida.
Leio o livro do Êxodo e adormeço tranquilo,
as portas fecham-se e os teus olhos cobrem-me
com a seda amena que te nasce no coração.
Sonho inquieto com a volúpia estendida no umbral
e oiço o pulsar brando da melancolia da manhã,
a voz tecida no uivo que ressoa em cada palavra.

Uma lacuna de sangue abre-se na memória,
poço negro e frio, ventoso e sem fundo.
Grito, mas o eco não me devolve a voz
e uma vertigem traça-me a fogo o ventre,
cresce nos ombros e derrama-se no cérebro.
Por ali, entra a serra que o distante passado me dera
e a infância vazia de tudo o que nela crescera,
o jardim que as mãos desenhavam num caderno
sem folhas nem capas, apenas uma breve memória,
a falésia escarpada na volúpia da aurora.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (360)

Paul Cezanne - Mountains in Provence (1886-890)

360. A COR MUSICAL DAS TUAS PALAVRAS ERGUE-SE

A cor musical das tuas palavras ergue-se,
risca a casa de uma ondulação suave,
o mar avistado de longe sob o império
da neblina, meio caminho entre luz e trevas,
argúcia da vida ao proteger-nos do fogo
ou do frio das intempéries vindas pelos dedos,
para rasgar o lençol molhado da solidão.

Retomo o caminho que me deste na infância.
Só assim te oiço cantar na lonjura deserta,
os caminhos cortados e rios intransitáveis,
a música que vinha desabar em mim
e me lembrava de que teria um corpo e uma alma,
as faces descobertas voltadas para o sol,
a recordação de cada povo que dorme em mim.

Pego-te na mão em silêncio e olho as árvores.
Aguardo que a boca se abra para o fogo
da montanha, onde uma casa de colmo espera
por nós, as janelas inclinadas ao vento,
o segredo que um deus te deixou nos lábios.
O solo coberto de ervas frescas abre-se aos teus
passos, e uma estrela murmura na tarde: vem.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (359)

Paul Gauguin - Y el oro de sus cuerpos (1901)

359. TODAS ESSAS PERPLEXIDADES TRAZIDAS NO CORPO

Todas essas perplexidades trazidas no corpo,
a angústia fabricada pelo passar das horas,
uma dor estranha ao dobrar da esquina,
os músculos que se deslassam ou os ossos
doridos, ateando pesadelos na noite,
a face entrecortada aberta no salitre da casa.

Sempre que o outono se aproxima, o calor redobra,
desenha matagais em fogo, tragédias luminosas,
abre sulcos na pele e sobressaltos no coração.
São violentos para a tua alma os meses do estio
e nessa violência se despedem e entregam ao ocaso,
o suspiro aberto no peito, as águas que virão.

De olhos abertos, escondes-me o segredo,
a pele lêveda, o desejo insaciável na noite fria.
Dolente, estendes a mão e tocas-me ao de leve.
Um sino dobra no fausto do passado,
desenha uma canção que a vida esquecera
e agora brilha na caruma baça do dia.

Abre o alvoroço  da tua casa à minha mão
e deixa que o vento sossegue o incêndio.
De todas as coisas que nos cabem, a mais difícil
é a verdade do que somos, a luz impiedosa sobre
a cabeça, o lugar onde o esquecimento nasce
e se derrama para nos salvar, náufragos da ilusão.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (358)

Salvador Dali - Lilas del tiempo

358. O TEMPO NÃO É UMA HASTE OU UM BARCO

O tempo não é uma haste ou um barco,
não é a mão estendida sobre a vida
ou o sopro do vento contra a parede da tarde.
Feroz labirinto de sentido único,
ondulação que vai mas não volta,
espuma tão frágil que logo se dissolve.

Não sabemos de onde veio nem o destino,
apenas as rugas que sulcam a pele,
os dentes cariados com que o mundo devora
a vida, precária flor sobre a terra abandonada.
Lançamos-lhe armadilhas, metáforas, metonímias,
e ele corre serenamente sobre a paisagem,

traça sulcos e chama-lhe rios da memória,
por vezes toma um ar sério e glorioso,
outras não passa do velho andrajoso
que desenha ruínas a que chama história.
Ou gesta ou caminho ou outra coisa sem sentido,
pois o tempo é inimigo da semântica,

cavaleiro que não repousa sobre a terra,
sempre a meio caminho entre o nada que fabricou
e o outro nada que de longe o chama.
O tempo não é uma casa branca de orvalho
nem o rosto da lua na vastidão negra do céu,
mas o desejo que me prende ao que não aconteceu.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (357)

Julio Romero de Torres - Canto de Amor

357. NÃO É VÃO AQUILO EM QUE O AMOR SE DEPOSITA

Não é vão aquilo em que o amor se deposita
e traz da invisível obscuridade para a luz,
fazendo eclodir sobre as águas uma sombra,
o cântico sereno do que chega à plenitude.
Nesse extremo cuidado de tudo cuidar abre-se
a lâmpada radiosa e sem mácula do meio-dia,
a hora em que o universo, por instantes, suspende
a marcha que o impele sempre mais além,
para redesenhar fronteiras e criar, onde nada
havia, o espaço para a nossa funda interrogação.

Aqueles que mais amam são os que perguntam.
Em cada pergunta cindem um átomo de amor,
pura energia libertada sobre as paisagens,
que se levantam perante os olhos da alma,
que assim vislumbra o mundo e a matéria,
as flores recolhidas no abraço de um ramo
deixado, como sempre fizeste, junto à parede
do fundo, a antecâmara dos dias felizes,
as horas em que, crianças sem ocupação,
nada sabíamos da nossa eterna sabedoria.

E logo que o nosso amor toca na raiz,
a árvore floresce e desdobra-se depois
em frutos, as tuas mãos presas nas minhas,
o teu corpo despido sugado pelo meu.
E a tudo o amor liberta da ávida servidão,
aos homens que perante o nada se ajoelham,
aos anjos que se calam diante do desastre,
a Deus preso no silêncio com que cobre a vida,
a deixa levedar entre miasmas de dor
e as rosadas pústulas do incerto prazer.

Canto nesta manhã a pura ascese da matéria,
o triunfo de cada corpo sobre o caos,
o ronronar flébil das agulhas na vastidão do
pinhal, breve pomar de antigas caravelas,
promessas que o tempo trouxe e logo desfez.
O fogo decanta o amor da impura inclinação
e abre-o para as paisagens que o amante
descobre na terrível solidão da coisa amada,
pomar vazio à espera de um olhar incendiado,
uma porta para a clareira do súbito fervor.

domingo, 16 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (356)

Jean-Michel Basquiat - Earth (1984)

356. CELEBRAMOS O AÇO QUE PERFURA O ROSTO DA TERRA

Celebramos o aço que perfura o rosto da terra
e, incapazes de escutar os anjos,
não ouvimos os gritos que dela chegam,
inundam as florestas que perderam a bênção,
o gesto com que ungias o coração do mundo
e asseguravas a todas as coisas a ordem.

Somos os irados peregrinos que olham
para o incêndio que te lavra nas entranhas,
e descobrem na lava os escombros
com que escondes a abissal cicatriz que nós,
filhos pobres e insaciáveis do velho Prometeu,
pelo aço não mais deixaremos de tracejar.

A precária caravela perdeu-se no mar de trevas,
e as ruas são apenas uma ferida aberta
em teu corpo esguio de mulher tardia,
aquela que chegou dentro de um segredo,
o rumor nascido para além da fronteira,
a noite polar em que dormindo aguardavas.

Mater silenciosa, o que fizeram do teu silêncio?
Ouve-se o ruir das paredes na planície fria
e mil anátemas são lançados sobre o portal,
onde o dia e a noite em discórdia se separam,
rasgando mais e mais a pele suave da tua face,
que o aço incansável não para de perfurar.

sábado, 15 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (355)

Paul Klee - Destrucción y esperanza (1915)

355. O MUNDO FOI TOMADO PELOS CURADORES DO MAL

O mundo foi tomado pelos curadores do mal,
incendiários sem rosto nem alma,
vómito vindo do abismo inominável,
pelo qual o declínio do que amámos chega,
traça uma rota no saibro escuro,
um casebre onde a encurralada vida grita,
no desespero esperançoso de que a rosa volte
e abra as suas pétalas puras para o céu.

Quebraram o suave jugo que ao tempo continha
naquele lento fluir das estações inexoráveis,
cavalo tresmalhado perdido nos matagais,
que o vurmo deslizante da negra mão ateia.
Os terríveis emissários falsearam a moeda,
o fundo oculto em que a vida se firmava,
para que as gerações se sucedessem e as estirpes
fugissem do terror antigo, agora retornado.

E aberta a caixa sem nome tudo treme e vacila,
as sólidas constelações dos céus, a rocha
firme que o velho e amado mundo suporta.
Sonho ainda com o teu puro coração
e, na ácida corrosão que os dias desenham,
deixo escapar dos lábios inermes a palavra
ó figlia del tuo figlio, e canto sobre a noite
a casa e o jardim que a infância me fez amar.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (354)

Dante Gabriel Rossetti - Venus Verticordia (1864-68)

354. DESDOBRAS-TE EM MIL APARÊNCIAS

Desdobras-te em mil aparências,
essas velhas fotografias que assinalam a minha
ausência, perdido num mundo tão distante,
a amarga consciência de te não saber,
as horas que se tornaram dias, meses, a vida.
Ó pobre epopeia da perdição,
resta-me o desejo de te ter desejado,
nesses tempos em que a chuva caía, o sol raiava,
e as estações enfileiradas nos carris partiam,
umas atrás das outras; nunca mais voltaram.

Pego na tua face acabada de inventar
e desenho-lhe olhos, boca, nariz,
para contemplar a minha obra ao som da música
que se estende sob a copa bravia dos céus,
enquanto a violência do amor cresce,
estrondeia nas células da minha alma
e abre-se, flor de pétalas vermelhas cravejadas
de incenso, a glória descarnada desta mão.

Rasgo-te a carne com o sopro do sexo
e vejo o sangue fluir sobre a pele,
um risco insano e anémico traçado de luz,
um vale que se abre para que o cirza de saliva,
e ali construa a casa que me espera,
alicerces, paredes, janelas, um telhado de erva,
aquele jardim de anémonas pendendo na água,
a esperança de adormecer na esquina do teu corpo.

Tinhas a cegueira por nome e uma promessa
de floresta bravia, arvoredos banhados de insectos,
a luz de um anjo a saltar-te dos olhos,
e o corpo vazio à espera da minha sombra.
Sai da moldura onde te escondes e me evitas,
vem lábil e eterna, luminosa e negra poisar nesta
cama, de lençóis gastos e linho rasgado,
e deixa que imóvel o teu corpo se entregue
ao desconcertado zumbido do deus do amor.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Da graça e da força

George Grosz - Kraft und Anmut (1922)

Poder-se-á traduzir o título do quadro de Grosz, Kraft und Anmut, por vigor e elegância. Estaria certamente de acordo com o espírito da obra. No entanto, prefiro outra tradução: força e graça. Graça no sentido daquilo que é gracioso, não no sentido de graça divina, pois em alemão esta graça diz-se Gnade. Este afastamento lexical entre Anmut e Gnade não permite compreender aquilo que é de imediato perceptível em português: o carácter gratuito da graciosidade, da beleza. A graça de uma mulher, a sua elegância, não é uma mera obra sua mas uma dádiva recebida, um dom. e sem ele não há esforço que dê graça a uma mulher. Dito de outra maneira, a graça é uma Graça. Já Kraft reenvia para a ideia de exercício e de esforço. A força ou o vigor são um produto próprio, o resultado de um exercício que pretende transformar a fragilidade do homem em força. Daí, o carácter eternamente rude da força, ao contrário da natureza etérea da graciosidade feminina.