João Queiroz - Sem título (2005-6)
298. AS ESTRADAS COBERTAS DE GELO
as estradas
cobertas de gelo
e uma
intempérie sobre a rocha escarpada
passava os
dias a observar a montanha
a desenhar
rastos e trilhos
o longo
caminho que leva ao precipício
um vulto
vinha pela luz da manhã
caminhava
por senda de terra batida
sob a
estreita misericórdia do céu
não trazia
flores nos braços ou pássaros no ombro
nem palavras
que sossegassem corações
a luz a cada
passo fazia-o mais e mais vulto
e a sua
densidade crescia contra a sombra da floresta
primeiro era
folha e ramos
logo madeira
e agora uma estátua de pedra
um uivo ressoou
para lá da planície
e tudo em
mim se abriu para os teus olhos
e eles
vieram na volúpia da viagem
oscilaram e sentaram-se
no peito aberto
cantavam
nesta praça desvalida de flores
uma ária
antiga perdida no júbilo da madrugada
sedimentos
de rocha e restos de folhas secas
o basalto e
o granito e o calcário
e voltava
sempre e sempre às enumerações
uma esperança
de compor o mundo
e abrir uma
janela na paisagem
a pequena
fresta para o outro lado
aquele que
não tem norte nem horizonte
nem caminho
que leve
ou abrigo
onde o salteador se esconda
olho para a
fotografia pousada sobre a mesa
e tudo se
inclina na seca garganta da memória