João Queiroz - Sem título (2008-9)
294. NÃO HAVIA FALÉSIAS OS MONTANHAS ESCARPADAS
não havia
falésias ou montanhas escarpadas
a luz
chegava tingida de cetim e brilhava um instante
para descer a
pique sobre a planície e morrer
uma morte
nascida de um impulso interior
a vida
íntima despenhada na crueza da paisagem
aquele grito
que sufocaste ao partir
era uma
mecânica frágil assente num plano inclinado
íamos e
vínhamos e a tua voz rouca cantava
as ruas
ainda eram pequenas passagens
segredos
entreabertos no corpo adormecido da vila
um pensamento
chegava e eu seguia-o na luz que trazia
deixava-o
brilhar por um instante
incandescer
sobre a frágil mobília da casa
criar a
ilusão de um amor pela junção fria dos corpos
estilhaçar
todas as esperanças que o deus enviava
não quero
saber da eternidade nem me fales por parábolas
pertenço a
uma estirpe que não ama mistérios
e as
palavras que ouvimos são transparentes e afáveis
deixam
correr o mundo nelas sem dor ou metafísica
palavras plásticas
para as coisas de plástico
palavras
musicais para tudo o que tem ritmo e dança
palavras de
vento para o que nasce no mar e é salgado
basta que te
dispas e entregues o corpo à minha língua
e deixes
ondular a respiração sobre o caos da melancolia
esqueci a
hora em que amei pela primeira vez
essa
experiência mutilada nascida da ignição
do desejo
uma conjura
ditada pela dinâmica hormonal
o cansaço
das paredes e os jardins rombos da imaginação
tudo se
confundia na sombria inquietação do instinto
a seda dos
corpos e o veludo febril do pensamento
não me
recordo já da época em que floriam as glicínias
o pavor que
havia se uma perturbação rondava
ou das horas
em que oravam perante a sagrada família
esse culto nómada
que de casa a casa leva uma ordem
um estranho
arranjo de imperativos e súplicas
o desespero
das pequenas gentes pela enormidade da vida
toco na lua com
os meus dedos manchados de tinta
e o céu exausto
de tantos olhares escurece
ó negra cúpula
erguida sobre os pilares vindos da terra
uma ardósia
escrita a sangue e estrela cadentes
em cada
ferida que dilacera a alma faço cair o álcool
e na escura
noite grito o teu nome preso nas trevas
o
milagre de escutar a música das esferas celestes