sábado, 1 de maio de 2010

Poemas do viandante

98. ESPERA

a viagem
essa hora aprazada
inunda-me
de poeira

aí te espero
como num alpendre
destelhado
olhos fechados
um incêndio
prestes a florir

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Poemas do viandante

97. ÁRVORES

começaram a florir
as lentas árvores da cidade
rebanho perdido
nestes dias
que maio chama
para a rápida morte

ainda nada está decidido
estendem para o céu
as pobres árvores
os ramos
dedos cansados
de tanto florir

cobertas de folhas
esperam o Outono
o frio que te há-de
despir

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Poemas do viandante

96. FLORESTA

a floresta tardia
veste-se de
natureza caligráfica
arvora letras
sílabas indecisas
as primeiras palavras
com que o vento
então falava

domingo, 25 de abril de 2010

Poemas do viandante

95. ESPLENDOR E CINZA

no jardim virado ao pretérito
traço a rua por onde
imóvel
caminhas

vens
sem vestes luminosas
esplendor e cinza
dos meus olhos

sábado, 24 de abril de 2010

Poemas do viandante

94. OS QUATRO ELEMENTOS: TERRA

montes sobre a planície
a ilha a que chamas
presente
poeira lançada sobre o muro
daquela casa
que é uma lezíria

assim tão sólida
recorda campos baldios
à espera que mendigos cheguem
e de joelhos
estendam a ferida mão
sobre a poeira da terra

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Poemas do viandante

93. OS QUATRO ELEMENTOS: ÁGUA

uma orquídea
o rumor de algum pássaro
a pele suada
à luz da tarde

deixo cair a mão
sobre a névoa do meio-dia
e afogo-me na água
onde tudo arde

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Poemas do viandante

92. OS QUATRO ELEMENTOS: AR

nem sempre é naufrágio
o que derrota os barcos
e devolve o marinheiro a terra

nem sempre é medo
o que cala o solitário
e na escuridão o encerra

há ainda o vento
sopra onde quer
e para aqui ou ali te leva

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Poemas do viandante

91. OS QUATRO ELEMENTOS: FOGO

o lume arde
nesses dedos
cobertos de seda
vestidos de cambraia

o lume é uma máquina
decepa as mãos
na vindima ardente
de uma ilusão

sonhos são sedas
e cambraias a arder
nos dedos mecânicos
da decepada mão

lume
o sonâmbulo sonho
onde te escuto
sob a copa desta faia

terça-feira, 20 de abril de 2010

Poemas do viandante

90. MÃO QUEBRADA

uma ligeira comoção
a nortada uivava
e o coração desordenado
crescia
tumor ancorado
na falência das células

nasci sob o princípio de incerteza
a mão quebrada
o toiro cantando
na solidão da arena
a tua voz ao longe a sussurrar
no desamparo de mim

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Poemas do viandante

89. PALAVRAS

as palavras ditas
véspera das que hão-de vir
cobrem de rugas
o palácio

deixam um hálito vulcânico
sobre a mesa
um longo verão
sem pão e vinho

o rosto
pássaro pousado
na sóbria memória

chamaste-lhe morte

domingo, 18 de abril de 2010

Poemas do viandante

88. CANTO

um frio silêncio caiu
a pedra branca talhada
indício de fogo e gelo
o espaço feito noite
a palavra desaguada
sacudida de esperança

canto
é tudo o que resta
se a sombra de tuas mãos se vai

canto
no frio silêncio do gelo
no fogo da palavra
no espaço sem esperança

canto
e a súbita primavera ateia

de flores o velho castanheiro

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Poemas do Viandante (86)

Asher Brown Durand - Forest in the Morning Light (1855)

86. De que vale

De que vale
o refúgio
na floresta,
se a noite

morre
na luz da manhã?

Indecisa,
exígua,
rio sem margens,

a luz chega
e anoitece
o coração.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Poemas do Viandante (85)

Georgia O'keeffe - White Rose and Larkspur (1900)

85. A rosa branca

A rosa branca
do abandono
trago-a comigo.
Dorme na noite,
relâmpago
coberto de nuvens
e vento da floresta.
Quando se abre,
a terra treme,
e um império nasce
na água do mar.

domingo, 11 de abril de 2010

Poemas do Viandante (84)


Francis Bacon - Figura tumbada en el espejo (1971)

84. Quando o espelho

Quando o espelho 
se abre,
vejo de mim
o velho rival.

Canta, pássaro
nocturno.

Se o escuto
perco a luz
e oiço o rumor
do feroz animal.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Poemas do Viandante (83)

Salvador Tuset - Anticoli (1913)

83. Junho

Junho
abre-se.
Refúgio
de luz,
ardor
de rosa,
incêndio
de matagal.

domingo, 4 de abril de 2010

Poemas do Viandante (82)

Pablo Picasso - Cabeça de Fauno (1937-1938)

82. Ausentou-se

Ausentou-se,
perdeu o limiar
e a voz ecoou
na noite desabrigada.

Ao ir pelo mundo,

o viandante rodopia 
no centro da vida.
 

Fauno nas trevas, 
anjo sobre a cidade,
a escura luz
destes versos.

sábado, 3 de abril de 2010

Poemas do Viandante (81)

 Christian Bérard - The Seventh Symphony. A Bird (1938)

81. Um animal ferido

Um animal ferido 
tomba
pelo chão,
entre juncos 

de sombra
e ervas abertas
para a luz.

Pobre orquídea 
de fogo
e penumbra,
pássaro caído
na véspera do verão.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Páscoa e tempo

O mistério pascal, a morte e a ressurreição. Por vezes, diz-se "tempo de Páscoa", mas nunca se percebe nessa declaração a tautologia aí presente. Pensamos que há um tempo de Páscoa, outro de Natal, um de Carnaval, ou pensamos em tempos profanos, como aqueles onde, nos dias de hoje, decorre a vida dos homens. Isso ajuda-nos a falhar a compreensão da tautologia. Entre cada instante e a Páscoa cristã há uma semelhança que talvez seja pertubadora. A Páscoa dos cristãos é marcada pela morte de Cristo e a sua ressurreição. Ora esta narrativa plasmada no tempo, entre sexta-feira e domingo de madrugada, permite apreender a essência do instante temporal. Nas Confissões (IX, 14), Agostinho de Hipona, enfrenta o tempo com uma aporia: "Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a perguntar, já não sei." Uma aporia é o sintoma de uma dificuldade, quando não de um mistério.

O que acontece a cada instante é uma morte e uma ressurreição. Na cruz do instantes (cruz, pois lá se cruzam passado e futuro) crucifica-se o ser que somos mas que deixamos de ser, morremos para o que fomos, que passa a ser apenas memória e passível de rememoração. Mas essa morte é a condição de possibilidade da vida que está a chegar. Morremos e ressuscitamos, instantaneamente. A Páscoa ao sacralizar esse instante de morte e ressurreição dá-lhe uma dimensão absoluta. Na mais relativa das relatividades, o instante, encontramos a dimensão do absoluto. Ao morrermos, ressuscitamos para a eternidade. Esta já está aí, embora sejamos cegos para o que está aí. A Páscoa talvez não seja mais do que um exercício de abertura dos olhos ou de focalização do olhar.

domingo, 21 de março de 2010

Poemas do Viandante (80)


Claude Monet - The Red Kerchief: Portrait of Camille Monet (1860-70)

80. Sob a sombra

Sob a sombra,
um desejo
de água,
promessa
de noite,
se demoras.

E assim fico
no vidro
da manhã,
esperando
o sono,
contando
as horas.

terça-feira, 9 de março de 2010

Poemas do Viandante (79)

George Inness - Twilight (1860)

79. Veio o crepúsculo

Veio o crepúsculo
no dorso da tarde
e pediu pão e vinho.

Saciado, levantou-se,
ergueu os olhos
para a noite 

e, como uma rosa,
em silêncio se despediu.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Poemas do Viandante (78)

 Martin Johnson Heade - Approaching Thunderstorm (1859)

78. Das nuvens

Das nuvens,
o silêncio
do entardecer.
 

Tão húmido
e tão frio,
desliza na voz
que o vai trazer.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Poemas do Viandante (77)

77. Penumbra

Penumbra
de silêncio
e fogo.


Alegria
de sombra,

um cavalo
de sangue.


A voz
que oiço 

e logo calo.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Poemas do Viandante (76)

76. Despes as palavras

Despes as palavras.
Em cada sílaba
sopra o vento.
E tudo flutua,
a dor ao relento,
ou a seda rasgada
que te deixa branca,
leve e nua.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Poemas do Viandante (75)

75. Um império

Um império
de ervas e
tormentos,

um fulgor
de sedas,
um anjo
que desliza
e trémulo
voa na praia
do esquecimento.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Poemas do Viandante (74)

74. Os dias

Os dias
onde tudo era
água.
Uma rosa

abria-se
no quintal

e a dor crescia 
vinda 
no vendaval.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Poemas do Viandante (73)

73. Uma erva baloiça

Uma erva baloiça
sob a luz
do vento.

Vai e vem,
leve
se arqueia,

e ao tocar a terra
ergue-se
para o firmamento.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Poemas do Viandante (72)

72. Sem rosto ou idade

Sem rosto ou idade,
sem luz na colina,
repouso na melancolia


e espero a sombra
que do poente 
leva ao meio-dia.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Propriedades

Chegar ao momento da verdade, àquela hora em que o ser e o compreender coincidem. O que sou eu? Nada, puro nada. Tudo o que trago não me pertence, tudo o que ostento foi roubado, tudo o que proclamo, plagiado. Mas será que compreendo tudo isso? Não, não compreendo. Todos dizemos coisas que não compreendemos. Quando o compreender, poderei dizer que tenho tudo e que sou o Rei do mundo. Agora, não passo de um pobre súbdito ajoujado ao peso das suas inúteis posses.

Poemas do Viandante (71)

71. No desejo da mão

No desejo da mão,
a voz da alegria.

E um grito ilumina
o que fica de cada dia.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Poemas do Viandante (70)

70. UM PUNHAL RASGA A NOITE

Um punhal rasga a noite
e canta em silêncio.

Ave de sombra,
pássaro de seda,
luz na boca que fala.