quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Paraíso terrestre

Pierre Bonnard - Le paradis terrestre (1916-20)

Os séculos XIX e XX alimentaram o equívoco sonho de construir o paraíso na terra. Decepcionados com os resultados infernais obtidos, os homens abandonaram o projecto e declararam-no uma utopia. Esqueceram-se, todavia, de questionar se tinham escolhido os meios mais adequados para tão desmedido desiderato. E se o problema fosse não do projecto mas dos meios escolhidos para o realizar? E se o equívoco residisse na escolha do caminho e não na meta a alcançar?

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Inspirar e expirar

Antonio Tápies - Inspiração - Expiração (1997)

Os ciclos vitais não são apenas estratégias biológicas para manutenção no homem da vida animal. São também a base da vida social e da sua aventura espiritual. Ao momento da inspiração, da aquisição e da vinda do novo, corresponderá o momento da expiração, da purificação e do abandono daquilo que é já matéria morta. Inspirar e expirar são a autêntica regula da vida espiritual.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Haikai do Viandante (216)

JCM - Speculum (2008)

espelho de água
no verão lembra a viagem
luz sombra imagem

domingo, 28 de dezembro de 2014

Em cada amanhecer

Paul Delvaux - O amanhecer (1943)

Há para o espírito do homem uma clara vantagem na concepção cíclica do tempo. A concepção linear da duração arrasta com ela um contínuo sentimento de perda, de perda irremediável. O futuro não é uma conquista, mas a perda definitiva do passado e do presente. Mas, se pensarmos o tempo de forma cíclica, descobrimos no contínuo retorno do mesmo um crescimento e um aumento do vigor espiritual. Sabemos que após cada noite - por fria e escura que seja - virá a irrupção súbita da luz ao amanhecer. E se esse amanhecer está já tingido pela luz que diminui até que venha de novo a noite, o viandante sabe que depois virá uma nova manhã, mais rica, mais densa e mais plena de sentido que a anterior.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Abrir brechas

Lucio Fontana - Concetto Spaziale (1960)

Pensa-se muitas vezes que a vida espiritual é o cumprimento de regras, como se o essencial da existência humana fosse a normalidade moral, essa redução da vitalidade ao preconceito social, à ideia feita, ao hábito comunitário. A vida do espírito, contudo, está muito para além disso vive noutros espaços que a moralidade não consegue frequentar. A sua natureza não é a da regra, mas de abertura de brechas por onde a luz possa passar e iluminar o caminho do viandante.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Natividade mística

Sandro Botticelli - The Mystical Nativity (1500-01)

E se as narrativas sobre o nascimento do Filho de Deus em Belém não tiverem qualquer correspondência factual, se pertencerem apenas ao domínio do mito e não da história, serão elas falsas? Depende do regime de veridicção adoptado. Se for um regime em que a verdade depende da correspondência do discurso aos factos, então, no caso de serem não históricas, serão falsas. Mas se o regime de veridicção for outro, se a verdade não for uma mera correspondência entre factualidade e discurso mas uma realização de uma possibilidade inscrita no real, então as narrativas da natividade são a mais pura das verdades, aquela a que todos os homens são chamados a realizar na sua vida. A natividade do filho de Deus não é um mero facto, mas a possibilidade que, segundo o Cristianismo, os filhos de Deus trazem em si mesmos. Uma natividade mística.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Poemas do Viandante (490)

Jim Dine - A Woodcut in the Snow (1983)

490. os sedimentos deixados

os sedimentos deixados
pela vida

são como o sangue que corre
no coração

chegam e partem ao ritmo
da pulsação

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O espaço do silêncio

Fernando Roscubas y Vicente Roscubas - Espaços de silêncio (1994)

Os lugares de silêncio, nos dias de hoje, são pequenas bolhas na superfície da terra. O ruído, nas suas múltiplas formas, tomou conta do mundo e impõe aos homens - a alguns deles, pelo menos - uma terrível provação, a de criarem, através de uma dura ascese, um espaço de silêncio dentro do ruído geral. Nele, esperam ouvir a voz silenciosa que por eles chama.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Haikai do Viandante (215)

JCM - Heimat (2014)

deslizam as águas
esquecidas da fria fonte
luz no horizonte

sábado, 20 de dezembro de 2014

Uma casa em ruínas

JCM - Ruínas (2014)

Que mais precisa o viandante para abrigo do que uma casa em ruínas? Ele sabe que todos os abrigos são passageiros e que o efémero que se manifesta numa ruína opera também naquilo que é novo. Cada abrigo é importante não porque se permanece nele, mas porque há que deixá-lo para trás. 

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Um caminho de vida

Salvador Dali - Cavaleiros do Apocalipse (1970)

Há múltiplas formas de pensar a simbologia dos quatro cavaleiros e respectivos cavalos que surgem no Apocalipse de João. Os símbolos são verdadeiros depósitos de sentido, permitindo encontrar neles significações contraditórias. A lógica que os rege, se de lógica podemos falar, não se coaduna com a interdição da contradição e com o terceiro excluído. No símbolo, identidade e contradição coabitam e o terceiro está incluído. Podemos ver nesses símbolos do texto de João a profecia de terríveis desgraças, mas não será desapropriado de compreender neles uma indicação do caminho espiritual, marcos na viagem do viandante que procura aquilo que por ele chama, aquilo que, numa outra linguagem, se poderá dizer o caminho da vida feliz. 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Poemas do Viandante (489)

Adolphe-William Bouguereau - Evening mood (1882)

489. canto a distância de onde

canto a distância de onde
te vejo

deixo-a crescer no fundo
de mim

para que de ti se me acorde
o desejo

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Tarefas ociosas

Filippo de Pisis - O arqueólogo (1928)

Segue-me, e deixa os mortos sepultar os seus mortos (Mateus 8:22)

A viagem não é um assunto de arqueólogos, esse entretenimento do mundo moderno onde os mortos se entregam à tarefa de desenterrar os mortos. Se já era vã e ociosa a tarefa dos mortos a sepultar os seus mortos, o que se poderá dizer desta inclinação mórbida pelo que está morto? Seguir o caminho do espírito é procurar o que está vivo, é seguir a via que conduz à verdade e à vida.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O caminho principal

Paul Klee - Caminhos principais e caminhos laterais (1929)

Só a ilusão pode levar o viandante a distinguir entre caminhos principais e caminhos laterais. Seduzidos pelas aparências, os homens traçam estranhos mapas e entregam-se a taxionomias insensatas. Quando a aparência mais densa começa a dissolver-se, o viandante descobre que todos os caminhos são o caminho principal, desde que ele, naquela hora, o esteja a percorrer.

domingo, 14 de dezembro de 2014

O caminho da restauração

JCM - Mitologias (Restauração) (2007)

A cultura ocidental assenta toda ela num estranho pressuposto, o da vida como um projecto de restauração. Herdada da cultura judaico-cristã, a narrativa vetero-testamentária da queda encontra nos textos neo-testamentários o seu complemento na ideia de restauração, em Cristo, do estado adâmico prévio à queda na condição humana. Num tempo em que as percepções de fim do mundo assediam a cultura ocidental, o retorno aos textos fundadores poderá abrir um outro caminho de meditação. A queda e a restauração são os constituintes de uma vida que ganha o seu sentido na tensão entre estes dois pólos. Se a queda parece não ter fim, então é preciso recordar a promessa da restauração.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Poemas do Viandante (488)

Ferdinand Hodler - O dia (uma figura) (1896)

488. toda a inocência que espera

toda a inocência que espera
o anoitecer

toda a ânsia que se exalta
na fria noite

toda a beleza que para ti
me fez nascer

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A abertura infinita

JCM - Mitologias (ó mar salgado...) (2008)

O fascínio que o mar exerce sobre a alma tem a sua raiz na conexão que o espírito faz entre a vastidão das águas e duas ideias que parecem ser parte integrante dessa alma, a abertura e o infinito. Sento-me nas areias e olho a água e, na rebentação reiterada das ondas, oiço o infinito a abrir-se diante de mim, como se chamasse pelo meu nome, aquele nome que só ele sabe.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Rasgar a penumbra

Lyonel Feininger - Calle en penumbras

Rasgar a penumbra para que a luz venha, não de súbito, mas lentamente, à medida que se avança no caminho e que os olhos vão suportando novas e mais intensas claridades.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Estrela polar

Salvador Dali - Visiones de la Eternidad (1936-7)

Ver tudo "sub species aeternitas", mas a vida exige inscrever cada acção no tempo. A viagem é sempre a tensão entre a visão do eterno e a contaminação da temporalidade. O essencial é saber o que faz de estrela polar, se o eterno se o temporal.

domingo, 7 de dezembro de 2014

A relação com a paisagem

Meyer Schapiro - Abstract Landscape (1971)

Há sempre, na viagem existencial, uma dupla relação do viandante com a paisagem, relação marcada pelo afastamento e pela proximidade. Ao longe, a paisagem surge depurada, quase uma ideia, uma linha abstracta no horizonte. Ao tornar-se próxima, a paisagem vai perdendo a sua natureza ideal e ganha a pulsação daquilo que está vivo e se abre para acolher quem assim se aproxima.

sábado, 6 de dezembro de 2014

A apropriação do mérito

Pep Llambías - Serie Gestos 'Dar' (1996)

Recebeste de graça, dai de graça (Mateus, 10:8)

Se de forma inopinada aproximarmos a cena da expulsão, por Cristo, dos vendilhões do templo e a injunção em epígrafe (recebeste de graça, dai de graça), percebemos uma ordem das coisas que antecede - não historicamente, mas ontologicamente - as formas conhecidas do comércio social. Aquilo que possuímos é ainda o fruto da graça e não do nosso mérito. A perversão da vida entre os homens, a sua errância, nasce da apropriação do mérito, como se o talento, a vontade, a inteligência, a diligência e até a capacidade para cultivar esses dons fosse propriedade do indivíduo e não algo que ele tivesse recebido gratuitamente.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Poemas do Viandante (487)

Vincent Van Gogh - Noche estrellada sobre el Ródano (1888)

487. o sono desce pela noite

o sono desce pela noite
sobre o olhar

e ateia no céu um rio
de estrelas

onde te aguardo
ao acordar

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Inscrito na terra

JCM - Símbolos, signos e sinais (2007)

Assim como as nuvens desenham estranhos padrões nos céus, também o viandante o faz na terra. O seu caminho, se olhado de longe, perde a sensação de acaso que um espectador vê ao olhar a partir da proximidade, e deixa-se perceber como um conjunto de padrões que ele inscreve na terra.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Nos caminhos que se cruzam

JCM - Black & White Dreams (2014)

Imaginar a viagem como um exercício infinito de escolha entre caminhos que se cruzam. Uma viagem sem mapa, sem roteiro, sem bússola. O viandante, despido de todos os dispositivos de orientação, entrega-se  à pura disposição da graça, como se cada escolha fosse, ao mesmo tempo, a realização da mais pura liberdade e o cumprimento de uma insuperável necessidade.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

De degrau em degrau

JCM - Chemins que ne mènent nulle part (2007)

A escada será um dos símbolos que melhor representam a ideia de caminhos que levam a parte nenhuma. Na escada, a imaginação entrevê uma ascensão infinita, um subir de degrau em degrau, num elevar-se sem fim. A escada não leva a parte nenhuma, pois cada degrau será apenas um meio para se alcançar o próximo. Dito de outra maneira, não há fim para a viagem.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A finitude e o infinito

Jacinta Gil Roncalés - Búsqueda del infinito (1991)

Perdido no turbilhão da vida, o viandante faz da sua finitude o caminho, o mais improvável dos caminhos, para encontrar nos limites de si mesmo o infinito que por ele chama.

domingo, 30 de novembro de 2014

Poemas do Viandante (486)

Charles le Roux - Borde del bosque (1855)

486. as folhas mortas cantam

as folhas mortas cantam
no sopro do vento

velhos pássaros feridos
pela noite

um resto de pão ázimo
que há-de levedar

sábado, 29 de novembro de 2014

Do ciclo das estações

JCM - Heimat (2014)

Há uma aprendizagem central no ciclo das estações. O renascimento primaveril e a exuberância do Estio radicam na longa ascese que começa no Outono. Como as árvores, também o viandante começa a abandonar o peso das folhas mortas, para se despir de todas as ilusões. Sem o trânsito pelo escuro Inverno, é impossível aspirar pela chegada da luz .

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A memória da errância

JCM - Time on space (2007)

O tempo que se inscreve na pele, abrindo sulcos na planície do corpo, é um sinal - quase diria, uma memória - da errância que constitui parte substancial da viagem. Muitas vezes a luz que ilumina o espírito ausenta-se, coberta por uma nuvem. Então, o viandante perde-se no caminho, avança e recua, traça linhas sinuosas que não levam a lado nenhum. E tudo isso se inscreve nesse inusitado mapa que é a pele. Mais do que as vitórias, são os enganos, as ilusões e as derrotas que nos sulcam o corpo.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

À volta da linha

Wassily Kandinsky - À volta da linha (1943)

Podemos imaginar a viagem espiritual como um processo no qual seguimos uma certa linha, aquele recto caminho que nos foi dado. Essa imagem não sendo completamente ilusória é, todavia, incompleta. A viagem é também o esforço - há quem diga a ascese - de retornar da errância à volta da linha para o recto caminho, o qual e apesar de nos ter sido dado só existe nesse esforço criador que nos aproxima dele, inventando-o a cada aproximação.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Haikai do Viandante (214)

JCM - Símbolos, signos e sinais (2007)

Mar de areia e sal
cobres o chão de sinais:
vens e logo vais.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Do florescer

Kenneth Noland - Florescer (1960)

A viagem espiritual está longe de se deixar descrever pela metáfora dialéctica em da transformação do botão em flor, de um botão que contém em potência o flor em que se transformará. Devemos imaginá-la antes como uma outra forma de florescimento, no qual a flor se vai tornando, na viagem, cada vem mais naquilo que é, vai sendo cada vez mais flor.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A tempestade

Gustavo Torner - Como a tempestade (1959)

Temos medo de pensar em tempestades, não vá esse pensamento atraí-las. O caminho do viandante, porém, não está isento delas. Tarde ou cedo elas acabam por chegar para moldar o espírito e abrir uma via que, talvez sem se saber, estava fechada. Tudo o que acontece na viagem, tempestade ou bonança, faz parte da aprendizagem da via, queiramos ou não.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Poemas do Viandante (485)

Remedios Varo - Modernidad (1936)

485. estou exausto de tanta modernidade

estou exausto de tanta modernidade
e no passado não há como caminhar
tão pouco a glória do futuro me chama
para da nova era o nome anunciar

restam-me os dias com a sua sombra
e o velho sonho nunca sonhado
restam-me alguns devaneios
abertos sobre um oceano cansado

como eu queria ser não moderno
ter toda a luz na lenda e no mito
e ao acordar de manhã rezar
a oração que outro tivesse escrito

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Da multiplicidade das paisagens

Giorgio Morandi - Paisagem (1913)

Uma ilusão comum reside na convicção de que, na viagem, o viandante encontra múltiplas e diferentes paisagens, às quais, para sobreviver e prosseguir o caminho, terá de se adaptar. A ilusão não está na convicção da existência dessa multiplicidade, mas no facto de ela ocultar que o viandante traz em si, também ele, uma multiplicidade de paisagens que vai projectando no caminho, num jogo de revelação, no qual ele descobre aquilo que lhe pertence.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Um estranho sortilégio

Julián Momoitio Larrinaga - Ballet

Deixar o corpo elevar-se, suspender a gravidade, traçar um halo de beleza no espaço desolado do mundo. Quando as luzes se apagam e o movimento cessa,  os espíritos tornam-se corpo e o mundo acorda de um estranho sortilégio.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

As luzes do mundo

Otto Dix - Lichtsignale (1917)

A ânsia do homem pela luz leva-o muitas vezes a confundir as luzes do mundo com a luz do espírito. Basta, porém, alguma atenção para se vislumbrar, sob os efeitos das luzes mundanas, os sinais da morte e das trevas. Sempre que, pela mão do homem, a luz se excede em brilho e em exuberância, deveremos de imediato suspeitar que algo muito negro se acoita e esconde naquele brilho.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Haikai do Viandante (213)

JCM - A night at the opera (2008)

Para lá dos montes
põe-se um sol outonal.
Fria luz no horizonte.

domingo, 16 de novembro de 2014

Do papel do equívoco

Jean Dubuffet - Banco de equívocos (1963)

Quantas vezes a vida não é senão um banco de equívocos, de erros, de mal-entendidos? Perante isso, há a tendência para ver a fonte do mal nas capacidades interpretativas do sujeito. É ele que se engana, que interpreta mal as vozes que o chamam, que se deixa enredas nas teias do erro. E no entanto a palavra equívoco tem, na sua raiz, um outro ensinamento. Pode-se dizer que a ambiguidade presente no equívoco está na igualdade (āequus) das vozes que chamam (vocāre) o homem. É a própria realidade que o enreda e o leva à perda. Mas se assim é, poderá ainda a perda ser considerada uma perda? Não será antes um caminho de aprendizagem?

sábado, 15 de novembro de 2014

Estabelecer pontes

Camille Pissarro - Charing Cross Bridge, London (1890)

A ponte enquanto símbolo não é apenas aquilo que une dois pontos do caminho que, por um qualquer acidente, se cindiu. A ponte é o único caminho que resta ao viandante, pois a sua viagem é o contínuo estabelecer de ligações entre o aquém e o além, descobrindo, porém, que o aquém, o além e a ligação que os une são uma e a mesma coisa. Só se pode unir aquilo que já está unido.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Abandonar-se

José Bellosillo - Adentrándome (1992)

Onde estiver o corpo, lá se juntarão também os abutres (Lucas 17:37).

Penetrar no mistério, perder a materialidade, tornar-se cada vez mais inefável, quase uma sombra, quase uma luz. E a viagem não é outra coisa senão este abandono da gravidade, este tornar-se imponderável, este abandono do corpo para entrar no reino onde a luz pronunciou o nosso nome.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Poemas do Viandante (484)

Georges Seurat - Mulher sentada num prado (1882)

484. a dor desenfreada que se abre

a dor desenfreada que se abre
no coração

e pede que a sombra venha
sobre a luz

para que uma paz silenciosa
desça em ti

e assim te abras ao mistério
que há em mim

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O acesso

Al Held - Acesso (1967)

Quando nos perguntamos pelo acesso ao caminho tornamos esse acesso obscuro e enigmático. Mas o acesso ao caminho que nos cabe não é obscuro nem tem a natureza dos enigmas. Ele não é longínquo nem de uma realidade que nos transcende ou que pertença a outro tempo. O acesso está aqui e agora, está na mão que abrimos, nos olhos com que vemos, no coração que pulsa, na respiração que nos traz a vida.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Uma certa ânsia

JCM - Entre ruínas (2014)

Nunca as ruínas devem deixar de ser motivo de meditação. Encontramos nelas, por vezes, uma certa beleza que não existia antes do efeito do tempo trazer a perda. Se a meditação se prolonga começamos a entrever que essa perda é menos efeito do tempo do que de uma certa ânsia que habita a matéria e a conduz à derrocada pelo desejo do espírito que nela se encontra ausente.

Haikai do Viandante (212)

JCM - Black & White Dreams (2014)

O dia escurece
na fria sombra da floresta.
Tudo anoitece.

domingo, 9 de novembro de 2014

Uma pequena fenda

JCM - Time on space (2007)

Muitas vezes a densidade da matéria parece constituir um muro que se ergue perante o viandante. A viagem parece então impossível e um fim anuncia-se na solidez daquilo que se constituiu como obstáculo. O espírito, porém, não deve descrer da potência da sua natureza. Nestes momentos, a viagem não é mais do que o trabalho de abrir uma pequena fenda na pedra. O tempo fará dela uma passagem.

sábado, 8 de novembro de 2014

O nosso lugar

JCM - Distopia (sem saída) (2014)

Esperamos sempre uma saída, um ir para além, uma transcendência. Esperamos sempre que haja uma porta que se possa abrir e um lugar para onde fugir. E se não houver? Se não houver, resta-nos permanecer no lugar que é o nosso, mas permanecer abrindo-nos à sua estranheza e ao mistério que ele contém. Para ele, não há um além nem um aquém. Ele é o aqui que é todo o aquém e todo o além que estão disponíveis para a nossa viagem.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

A terra devastada

Jeffrey Smart - Wasteland I (1945)

Olhamos o baldio aberto pelo abandono e pensamos o que terá assim devastado a terra. A meditação leva-nos invariavelmente para a retirada do Espírito. Isso, porém, não passa de uma ilusão. O Espírito não se pode retirar de onde nunca esteve. A devastação é antes o sinal de que algo foi construído sem que o Espírito ali estivesse. Era apenas matéria e, como toda a matéria, teve o destino que é o seu, a desolação.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Poemas do Viandante (483)

Edvard Munch - The hands (1893)

483. a velha desolação do dia que acaba

a velha desolação do dia que acaba
na luz da noite

o sussurrar de alguém que espera
a cor do destino

o silêncio que se abre na ausência
da tua voz

eis a renúncia com que a rosa se abre
à luz do fogo

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Atravessar a escuridão

JCM - Heimat XII (2007)

Aprender a traçar um mapa na escuridão. Caminhos que unem pequenos pontos de luz, algumas manchas luminosas a indicar um aglomerado de vida, o mistério das cores que vencem as trevas. A viagem não é mais do que esta travessia na escuridão na esperança de que tudo se torne luminoso. Não torna, essa não é a condição deste mundo nem de quem nele vive. Há que atravessar a escuridão.