domingo, 5 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (320)

320. NINGUÉM SABE A HORA DA RECONCILIAÇÃO

Ninguém sabe a hora da reconciliação,
o mundo aberto à placidez,
ao rumor dos teus passos no jardim.
Ninguém sabe o tempo dos astros,
as estrelas inquietas
que cintilam nos teus olhos.

Componho um livro de histórias,
traço em cada página o segredo,
o lento fulgurar de uma vida.
Depois entrego-o ao silêncio da noite,
à constelação mais tumultuosa
e espero que a árvore frutifique.

Tudo o que escrevo são orações,
uma acção de graças
pela letargia que há em cada ser.
Na quietação que nos habita,
uma voz ressoa,
ave de papel a latejar sobre o infinito.

Penso na coragem reservada dos heróis,
penso nos peregrinos perdidos,
penso no campo devastado pela cólera.
Não há ciência para tal pensamento
e sento-me se a madrugada vem
e anuncia o tempo da reconciliação.

sábado, 4 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (319)

319. TENHO A VIDA A SANGRAR, DISSESTE

Tenho a vida a sangrar, disseste
e recolheste o pensamento
sob um véu invisível,
despido de geometria,
pura seda do oriente,
a casa vacilante da infância.

Olho-te na lonjura dos dias
e vejo-te despida
na solidão que cresce,
invade o mundo
e faz ecoar a música
no fundo da tua alma.

Abro os braços para te acolher
e a fronteira de silêncio cede,
abre-se à dança do amor,
as tuas mãos nuas inclinam-se
e a lua reverbera
na constelação da noite.

A vida é uma ilha que sangra,
o lago onde o amor desliza,
sombra silenciosa
que escorre entre os dedos,
se em segredo me olhas
na rebentação das ondas.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (318)

318. SENTO-ME NESTA CADEIRA E PERSCRUTO A HISTÓRIA

Sento-me nesta cadeira e perscruto a história,
os círculos de expansão e a flor contraída,
a escuridão ancestral que sobre nós cai
e o terrível silêncio de Deus a falar em mim,
trazendo uma palavra demasiado grande
para que o meu coração a sustenha,
a saboreie antes de a entregar ao vento,
ao desejo dos homens amontoados em tendas
ou à dissipação das horas sobre a terra furtiva.

Vivemos no tempo do tempo distorcido,
das aves sem penas e das casas destelhadas.
Vivemos no tempo em que o amor rareia
e os homens intrépidos se escondem na floresta,
pobres sombras coleccionadoras de amargura,
giesta precária nascida fora de estação.
Quando o reflexo do céu fende as águas,
o símbolo que guia a vida perde a cor
e os homens vêem o tempo oscilar no trapézio,

mas a história não finda e gira em torno de ti,
afaga-te a pele e escurece-te o ventre e o coração,
desenha na margem do rio estranhos hieróglifos:
uma fiada de jarros brancos e um bando de patos mudos
para assegurar o trabalho do futuro decifrador,
perito em minas e descobridor de alçapões,
o grande sacerdote do passado irremediável,
pobre oficiante desconhecedor do tempo distorcido,
amante de um corpo decomposto em pó e cinzas.

Agostinho de Hipona sabia o que era o tempo,
se não se perguntasse pelo o seu ser
e não aspirasse à vanglória de uma definição,
exercício de cruel raquitismo inventado pela razão
para submeter o voo imponderável do mar
ou a dinâmica dos milhafres sobre a montanha.
Se suspenderes perante o bosque todas as perguntas,
virão pássaros  furtivos tomar-te a mão
para te conduzir em silêncio ao centro do mundo.

Desse lugar sem nome, virá a luz negra do futuro,
o exercício de adivinhação a que te entregas
no desespero de todas as causas estarem perdidas.
Abençoa a perdição e ergue os olhos aos céus,
o caminho para o cume apenas agora começa,
senda improvável escavada na pedra dura,
paisagem de abismos em torno do decrépito corpo.
Canta, pobre perscrutador, pois a história balança
e descreve piruetas sob o império do céu,

divorcia-se do tempo e entrega-se ao celibato,
ao rumor da solidão feito de metonímias,
de grandes oximoros com que nega a realidade
e constrói uma praia de sentido no caos da vida.
Também eu pertenço à ordem de Melquisedeque
e não tenho princípio gerador  nem fim de geração.
O tempo é uma corda de sisal e por ela subo e desço
para visitar os mortos na vida e os vivos na morte,
para Te escutar a palavra que não cabe em mim.

Sento-me na nau dos corvos para ouvir o mar
e oiço o búzio do teu amor a cantar dentro de mim.
Dispo-te e o fulgor do sexo anuncia-me a morte,
a estranha escada por onde vou e volto no tempo,
a cadeira firme com que olho a história:
são inexplicáveis os ventos de agosto sobre as águas,
os negócios do mundo na cegueira dos mercadores,
o declínio da terra no fulgor da ciência.
Também eu sou filho d’Aquele que não tem filhos.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (317)

317. SÃO FRÍVOLOS OS DIAS QUE NOS CABEM

são frívolos os dias que nos cabem
a herança de antepassados dadivosos e cruéis
que raptaram para si a terra rude
e deixaram à descendência o musgo suave
terras de seda e planícies de algodão
malévolos antepassados que tanto nos amaram
e esse amor esgotou a nossa energia
a velha sabedoria da terra
o rumor dos passos na sombra da cidade

ontem estive nas praias da normandia
e vi as crateras abertas nos campos de batalha
o ferro retorcido e o cimento esfacelado
estive em omaha e utah em sword e pointe de hoc
e chorei por aqueles que desembarcaram na morte
mas também por quem a recebeu dos ares
chorei por amigos e inimigos
e pela crueldade da vida que mandou morrer
gente mais nova que os meus filhos

eram duros os nossos antepassados
vieram num tempo que pedia a flor da virilidade
e como recompensa a cruz da morte
o sepulcro em terra distante e estrangeira
ontem estive nos cemitérios da normandia
fui a colleville-sur-mer e não esqueci la cambe
e não tinha flores para deixar em cada campa
nem uma palavra para dizer
ou a breve oração que conforta almas perdidas

o uivo da vida é agora suave ronronar
os tempos mudaram e tudo é incerto
as amplas avenidas tomaram o lugar da ruela
e erguem-se cidades nos campos de batalha
enriqueceram os homens e as casas cresceram
mas a estirpe definha atada ao prazer da hora
ao sussurro dos mercadores no átrio do templo

para que nascemos nós nesta terra
se já não sabemos domar o vento do norte
ou com a força da mão parar a tempestade
ontem estive na normandia
e toda a minha vida é uma canção frívola
cantada por um cantor de cabaret
em cada campa havia uma acusação silenciosa
e um juiz erguia-se nas trincheiras desfeitas
para me condenar à vida fácil
e à liberdade inconsciente que esconde a morte

o amor dos antepassados é uma maldição
roubou-nos o outono e o inverno
levou com ele a escarpa e o deserto
e encheu a alma de sonhos de néon e alumínio
construídos sobre os cemitérios invisíveis
com que o rude amor nos abriu as portas
para entrarmos pervertidos no degredo do paraíso

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (316)

316. Palavras são armadilhas afáveis

palavras são armadilhas afáveis
deixadas no caminho do incauto viandante
tecem uma iluminação de sons
sobre a esquadria inóspita do mundo
e prometem tudo o que não podem cumprir
os lilases em tuas mãos
o lenço que te cai sobre os ombros

sobre o que não se pode falar
é preciso guardar silêncio
assim o disse o filósofo no século que passou
mas a sua visão estava doente
como uma rosa fanada pelo tempo
nada há sobre que possamos falar
mas tememos a hora vazia
e trocamos palavras para esquecer o medo
ou a angústia que vem pelo crepúsculo

cheguei a este instante da vida
e sei que não há o dizível nem o indizível
se quem me ama me dirige a palavra
diz na fala o indizível do seu amor
e tudo o que os homens apontam como indizível
só o é porque eles o disseram
por isso ao olhar o horto e o jardim
ou ao escutar os bandos de estorninhos
descobri que nada disso me interessa

 falo porque sou humano
e não sei latir ou ganir como um cão
para exprimir a dor ou o prazer
uso palavras para perfurar o silêncio
e riscar de carvão a brancura da parede
cada frase que construo é um jardim
pequenas violetas e arbustos sem nome
os velhos vasos de aspidistras secas pelo verão

falamos pois amamos as emboscadas
com palavras e uma gramática rude
construímos laços e anzóis
e pensamos que tudo isso é uma cidade
ruas e avenidas ou um porto e o cais
assim cresce o comércio sonoro
e institui-se um mercado secreto
a palavra que te dou pela palavra que recebo

passa assim a vida
e no fluxo das palavras esquecemos o rio
déspota feroz que corre sem parar
da nascente do passado para a sombria foz

terça-feira, 31 de julho de 2012

Poemas do Viandante (315)

315. NÃO TENHO TERRA NATAL OU PÁTRIA

não tenho terra natal ou pátria
desconheço o lugar a que pertenço
o corpo pesa e esmaga-me o olhar
e de todas as coisas que vi
nada sei para além de um nome
o rasto de um ruído esquivo
reflexo da sóbria luz das estrelas

amo a solidão que nunca tive
e as tardes entregues à meditação
longas as noites abandonado ao frio
ao vento vindo do deserto
às mulheres na dádiva do amor
amo cada hora onde te pensei
casa ancestral de uma estirpe sem glória

sinto-me perdido neste gélido descampado
sem searas nem chaminés benfazejas
a pulsação débil
o regurgitar da vida pela boca da morte
desisti de saber o que é a verdade
seja um mar de pássaros altivos
ou uma pátria de gente extraviada

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Poemas do Viandante (314)

314. A FACE COM QUE O DIA SE ABRE

a face com que o dia se abre
tem ainda vestígios da noite
uma camisa de dormir de seda pura
e um véu tecido de névoa
sobre cada esquina da rua

vem amarrotada a luz da aurora
e os regatos que correm sem fortuna
entregam-se à trágica claridade
que pelas casas se abate
deusa cruel sem rosto ou destino

e tudo cabe na abóbada celeste
o rio e as suas margens
o outono a entregar-se na névoa fria
e o ramo de violetas esquecidas
no túmulo do soldado desconhecido

pego na dor que me consome
aguardo a decifração do enigma
e vejo o dia clarear
sob a injunção de um deus
que na terra tem o vasto império 

domingo, 29 de julho de 2012

Poemas do Viandante (313)

313. DE QUE ME VALEM OS SENTIDOS

de que me valem os sentidos
se o que por eles vem está tocado de sombra
e deixa na boca um rasto amargo
como se tudo estivesse para acabar
e apenas restasse um sopro de escuridão
vindo pela fresta rasgada na parede
promessa adiada ou um sonho transfigurado

recolho-me no pensamento que me toca
e oiço o ribombar das águas no paredão
o mar vem solto fustigar o silêncio
e o mundo é uma luz dentro de mim
o seu brilho dói-me nas mãos
e se pergunto pelas horas
não há quem me dirija a palavra

há dias em que construo uma botânica
pequenas colecções de folhas
o irreprimível vício das taxionomias
se chegas ao abrigo de uma sentença
o meu coração debruça-se sobre a mentira
e conta uma a uma as pétalas de luz
que fulgem no incêndio desse olhar

retomo as informações que pelos sentidos
do mundo sob a máscara da verdade coligi
construo uma física precária
e com ela vou terra fora
sem bússola ou mapa que me guie
o sol ao pôr-se diz-me as trevas
e o coração anoitece dentro de mim

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Poemas do Viandante (312)

312. DEIXO A LUCIDEZ NA TERRA SECA

deixo a lucidez na terra seca
e colho flores silvestres
breves intimações de luz
num universo longínquo
feito de profecias sagazes
e de memórias dolorosas

um velho retrato de família
o livro aberto sobre a mesa
as primeiras canções iluminadas
pela voracidade da infância

construí um mundo rudimentar
tracei caminhos e fronteiras
e em lado algum vi o nome
que um dia descobri ser o teu

resta-me desfazer a geografia
e entregar cada imperativo
à necessidade que o criou
amadureço na luz de setembro
e se as vestes se rasgam
entro despido na água do mar