sexta-feira, 29 de maio de 2020

Impressões 52. A sombra

Artur Pastor - Série Nazaré, 1953/57
Na parede, uma sombra projectada por outra ganha vida, resiste à luz, cobre-se no silêncio da eternidade, enquanto o revérbero do mar se reflecte em segredo no céu, que cintila movido por um sol de seda e cetim.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Micronarrativa (32) O sonho da modelo

Carl Mydans, Art students at the painting class. Texas, 1939
Era uma modelo muito requisitado nas escolas de pintura. Pousava não por necessidade ou vocação. Alimentava, não sem teimosia, uma secreta esperança. Um dia, depois de acabar a última sessão, ao levantar-se viu saírem vivas dos quadros réplicas suas. Eu sabia, gritou. Um dia haveriam de vir comigo.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

A Sarça Ardente - 20

Jaime Burguillos, Ocaso, 1976

O teu silêncio preenche-me o coração.
Dele faço palavras
e semeio-as na terra virgem
presas na pétala pura do provir.

O teu silêncio preenche-me o coração.
Oiço-te no murmúrio
do mundo, na cidade cercada
pela sarça ardente do esquecimento.

O teu silêncio preenche-me o coração.
A música das esferas celestes
cai em cataratas
de abandono e rios de verde e melancolia.

O teu silêncio preenche-me o coração.
Atravesso o mundo
e a maçã que colhi levo-a
na púrpura de seda dos  teus segredos.

Março de 2020

sábado, 23 de maio de 2020

Haikai do Viandante (394)

Paul Cézanne, House and Trees, 1890-1894

A casa entre árvores
sussurra o prazer da tarde.
Dias de Primavera.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Meditação Breve (128) A sagrada família

Eve Arnold, Fisherman and family. Island girl. Bahia Honda, Cuba, 1954
Um homem, uma mulher e uma criança. De imediato reconhecemos aí a realização de um dos mais poderosos arquétipos da cultura ocidental, o da sagrada família. O que torna algo num arquétipo? A excepcionalidade. O que institui Maria, José e o Menino num arquétipo é o carácter absolutamente excepcional e inusitado daquilo que os junta. É a sua não normalidade que lhes permite constituir-se como uma norma que durante séculos ordenou o caos que é a família dos seres humanos.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Meditação Breve (127) A verdadeira sabedoria

Robert Capa, German soldiers surrender to American troops. Cherbourg, France. June 26th, 1944
Todos acabaremos por nos render, por maiores que tenham sido as nossas vitórias. Uma moral repelente que cultuava super-homens julgou que poderia fugir à capitulação. Enganou-se. Também uma rendição demasiado humana esperava quem se louvou nessas fantasias da adolescência. A verdadeira sabedoria começa quando se descobre quando e a quem nos devemos render.

domingo, 17 de maio de 2020

Uma surpresa

Gjon Mili, Stroboscopic image of ballerina Nora Kaye leaping. 1947
A primeira vez que a vi foi numa fotografia estroboscópica, onde o seu corpo se decompunha numa multiplicidade indefinida de imagens. A técnica permite muitas coisas, das quais nunca se imagina a realidade. Conheci-a num grupo de amigos dados às artes. Os dias passaram e acabámos comprometidos. Daí ao casamento foi um curto passo. Infelicidade ou cansaço não serão as palavras adequadas. Passados alguns meses descobri que a fotografia que me atraíra era falsa. Não era uma ilusão mas a própria realidade. Ela era muitas. O sonho de qualquer homem? Duvido. Casei com uma mulher e agora tinha um harém em que todas as minhas mulheres eram a mesma, que continuamente se multiplicava. 

sexta-feira, 15 de maio de 2020

A Sarça Ardente - 19

Joan Hernández Pijoan, Paistge amb una alzina, 1974

Coração sitiado pelos tambores do inimigo,
coração perdido no feno
dos dias sombreados na luz de Setembro.

Os lábios abrem-se para o visco de um fruto,
desenham uma auréola
na penumbra breve da boca.

Oiço então um rumor no vidro da janela.
Pássaros tocados pela graça
abrem-se para a memória da madrugada.

Março de 2020

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Haikai do Viandante (393)

Harry Callahan, Chicago, ca.1950

Árvores sem folhas
sobre um manto de neve.
Segredos de Inverno.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Diálogos morais 38. Abandono

Hans Baumgartner, Limmatquai in Zürich. 1938
- Chega, larga-me!
- Não vás, peço-te.
- Inútil implorar. Cansas-me.
- O que posso fazer?
- Nada.
- Nada? Não, vem comigo.
- ...
- Eu levo-te.
- De bicicleta?

sábado, 9 de maio de 2020

Haikai urbano (54)

John Gutmann, Goodbye Berlin, 1933
Os pássaros partem
presos à luz da manhã.
Vendaval de Inverno.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Meditação Breve (126) Entregues à Fortuna

Fred Herzog, Jackpot, 1961
Qual será o momento em que alguém troca a expectativa de ser recompensado pelo que faz por uma graça da deusa fortuna? Nesta troca, não há apenas uma desconfiança relativamente à ordem do mundo, mas também uma baixa expectativa sobre os seus poderes.

terça-feira, 5 de maio de 2020

A Sarça Ardente - 18

Ana Peters, Homenaje C.D.F., 1995-98

As paredes florescem de dor,
se o sol da manhã
as toca com lanças de silvas e sargaços.

Uma mulher caminha presa na sombra
e leva nos dedos anéis
roubados ao ardor da aurora.

Extenuado, hesito na vereda a seguir
e recolho-me na gruta da tarde.
Pego no tear do tempo e teço as túlipas do Verão.

Março de 2020

domingo, 3 de maio de 2020

O seu mundo

Horst P. Horst, Elsa Schiaparelli, c. 1934
Casei com ela seis meses depois de a conhecer. Foi amor à primeira vista. Recíproco, pelo menos foi o que pensei. Uma vez por outra, dizia que não pertencia a este mundo e sorria. Não havia enigmas no sorriso. Não tivemos filhos, não tinha chegado a altura, pensava eu. Passava muito tempo diante do espelho, mas não mais que outras mulheres. Entre espelhos e mulheres há um trato muito antigo e com ela não seria diferente. Um sábado, antes de sairmos para um jantar de amigos, ela estava diante do espelho. Olhava-o fixamente. De súbito, o seu corpo é sugado pela imagem do espelho e funde-se nela. Volta-se e começa a afastar-se. Olha para mim e diz este é o meu mundo. Nunca voltou.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Diálogos morais 37. A recusa

Mac Adams, Mystery #17, 1976
- Vens comigo?
- Por que razão haveria de ir contigo?
- Não estás aqui para isso?
- Há limites para tudo, até eu tenho os meus limites.
- Não terei problemas em tornar a compensação mais interessante.
- Dispenso eufemismos.
- Diz o teu preço.
- Esquece, nunca acompanharia ninguém com umas botas dessas.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Haikai do Viandante (392)

Lee Miller, The Shadow of the Great Pyramid, Egypt, 1938
Da grande pirâmide,
a sombra cai sobre o mundo.
Tempo de declínio.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Meditação Breve (125) Da leveza

Robert Mapplethorpe, Baby’s Breath, 1982
Em tudo o que é leve pensamos a fuga à nossa condição. O corpo, sujeito às férreas determinações da gravidade, aspira à natureza dos pássaros ou à insubstancialidade dos anjos, como se isso o regatasse de uma natureza decaída, sujeita à dor e à morte.

sábado, 25 de abril de 2020

A Sarça Ardente - 17

Tal-Coat, [Paisaje], 1954

A cidade esconde-se dos pássaros,
deixa-os perdidos
em volteios de sombra e sangue.

A cidade ergue-se em segredos
suspensos nos jardins
trazidos pelo fim do Inverno.

A cidade escorre em praças vazias,
tragada pelo tumulto
dos meus passos a fervilhar de ambrosia.

Março de 2020

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Impressões 51. A realidade

William Henry Fox Talbot, The Tower of Lacock Abbey, 1845
Tocada pelo tempo, a realidade construída pela mão dos homens não sofre erosão, mas é sujeita a um longo processo de desvanecimento, no qual vai perdendo a cor, até que desaparece no horizonte onde nada se distingue.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Histórias sem nexo 7. Dualidades

Maurice-Louis Branger, A la terrasse d’un café, Paris, vers 1925
Duas damas nada domésticas dão dois dedos de conversa. Deambulam desgostos, desenham doidices, descrevem dúvidas. Dão-se à doce dolência nascida da despótica desgraça do desejo.

domingo, 19 de abril de 2020

Haikai do Viandante (391)

Ansel Adams, El Capitan, Winter, Sunrise, Yosemite National Park, California, 1968
O amanhecer
desceu sobre a fria floresta.
Sombras da aurora.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Meditação Breve (124) O uno e o múltiplo

Harold Edgerton, Stroboscopic Study of Man Hitting Tennis Ball, 1949
Não somos um nem somos muitos. Somos apenas o jogo contínuo entre a unidade que desejamos e a multiplicidade em que nos dividimos.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

A Sarça Ardente - 16

Jacinta Gil Roncalés, Composición en fríos, 1991

Deixemos um louvor à terra,
ao aroma
das primeiras chuvas,
os cardos a despontar nos dedos da noite.

Somos exilados e em peregrinação
levamos no vazio
os círios colhidos
em silêncio no lago da memória.

Na neve há uma coroa de água,
a brancura
oblíqua da alma,
os lábios a latir na luz do coração.

Março de 2020

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Micronarrativa (31) A verdade

Edward Weston, Meraux Plantation House, Louisiana, 1941
Durante muito tempo foi um lugar vibrante. As gerações sucediam-se, presas à certeza da continuidade. A casa era renovada ao gosto de cada época, sem que perdesse a sua unidade, a luz que a guiava. O último membro da família, porém, morreu sem filhos nem herdeiros. A estirpe cansou-se e a casa encontrou a sua verdade no abandono e na ruína.

sábado, 11 de abril de 2020

Pintura e haikus (16)

Carlo Carra, Casa Abbandonata, 1930
Casa abandonada
no silêncio da floresta.
Tempo de passagem.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Cansaço

Duane Michals, Empty New York, 1964
Não, está enganado. Não foi nenhuma ameaça. Não havia guerra nem epidemias no horizonte, a vida corria como sempre. As pessoas cansaram-se. Sim, cansaram-se das outras, do trânsito, do ar irrespirável e foram-se embora. A cidade foi-se esvaziando e hoje não tem mais moradores do que uma pequena aldeia. Para onde foram? Ninguém sabe. Os que aqui ficaram não se interessaram pelo destino dos que partiram. Não temos televisão, nem imprensa, não ouvimos rádio. Caminhamos pelas ruas, observamos os lugares vazios e podem passar-se meses sem que avistemos outro ser humano. Raramente trocamos palavras. Se alguém morre, o mais certo é que não haja quem disso se aperceba. Também nós estamos cansados.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Diálogos morais 36. O tempo

Constantine Manos, Shepherds with goat. Crete, Greece, 1964
- O que esperas?
- Que o tempo passe.
- Não é isso que ele faz continuamente?
- Nem sempre.
- Nem sempre?
- O tempo existe para nos contrariar. Quanto mais desejamos que passe, mais ele permanece imóvel.
- Não é verdade, olha um  relógio. Não brinca com o nosso desejo, avança indiferente e inexorável.
- Um relógio não é o tempo.

domingo, 5 de abril de 2020

A Sarça Ardente - 15

Sam Francis, Around the Blues, 1957-62

A discórdia nupcial das nuvens
ressoa em trovejos
na lonjura sem medida dos campos.

Cavalos pastam silêncios de erva
e uma sirene ecoa
ao longe, sobre a caruma dos pinheiros.

O ardor da solidão chama por mim,
enquanto espero
do anjo o anúncio do alvor da aurora.

Março de 2020

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Haikai do Viandante (390)

Robert Mapplethorpe, Orchid and Leaf in White Vase, 1982
Contra a escuridão,
em vaso branco floresce
a luz duma orquídea.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

O homem entre ruínas

Dmitri Kessel, A man walking through the remains of an ancient temple in Athens. 1944
Todas as manhãs era visto a passear entre as ruínas. Verão ou Inverno, chovesse ou fizesse sol, ao raiar da aurora ele aparecia e passeava, durante umas horas, para cá e para lá. Um passo lento, parecia querer absorver o espírito do lugar em cada aspiração. Chamavam-lhe, não sem ironia, o homem entre ruínas. Não se conhece quem tenha trocado alguma palavra com ele, ou quem dele se tivesse aproximado. Formou-se uma tradição de distanciamento e era nessa distância que ele ia e vinha. Um dia, desavisado, um forasteiro dirigiu-lhe a palavra. Ele estancou, olhou-o perplexo e todo o seu corpo se tornou imponderável. À vista de todos, ergueu-se aos céus e desapareceu atrás de uma nuvem.