domingo, 24 de fevereiro de 2019

O sal do silêncio (5)

Tal-Coat, D'ardeur, 1972

Fevereiro declina. Deixa um rasto de luz sobre os muros e aquece os gatos deitados ao sol. Ouve-se um sussurro, pássaros voam entre varandas. Numa janela uma planta florida deixa cair a sua bênção sobe quem a olha. De repente, o cavalo do vento foi esporeado, logo se empinou, enquanto um relincho agitava as primeiras folhas que antecipam a Primavera.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

A desconhecida

Saul Leiter, Carol Brown in “Harper’s Bazaar”, c.1958

Era a mulher mais bonita da vila. Os homens andavam de cabeça perdida, tentavam cortejá-la, mas eram goradas todas as aproximações. Chocavam com uma altivez que, chegaram a confidenciar-me, roçava a provocação. Quanto maior o seu desdém maior o desejo que provocava. Quando chegou o forasteiro, eram assim que com rancor aqui ficou conhecido, ela cedeu à sua corte. O ambiente ficou explosivo. O noivado, porém, foi curto e em breve se realizou o casamento. Na hora em que o padre perguntou ao noivo se a aceitava por mulher, ele, perante metade da vila, respondeu que não. Ao ouvir aquela palavra, ela caiu. Quando a ergueram, moribunda, a face estava sulcada de rugas. Ninguém a reconheceu.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Pintura e haikus (7)

Pierre Bonnard, Le Paradis terrestre, 1916-20

O torpor de Eva
e o silêncio de Adão.
Luz no paraíso.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Impressões 21. O seu mundo

Michel Larionov, Le Thé, 1906

Não há nada como estar em comunidade para que o silêncio cresça, a solidão se amplie e cada um, partilhando o espaço com os outros, descubra um mundo própria e incomunicável, onde só ele pode habitar.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Poesia do Viandante (708)

Wassily Kandinsky - Black Spot I (1912)

708. manchas máculas

manchas máculas
nódoas negras
na plana planície
das cores
ó sargaço
                de sombra
ó punhal
                de penumbra
ó oxímero
                de ondas
lépida leveza da luz

(24/12/2016)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

O sal do silêncio (4)

Antonio Tápies, Cuatro Tazas

Os dias crescem como se fugissem das trevas. Os pássaros cantam mas ainda não vejo despontar as folhas nas árvores, ou talvez esteja desatento. Se estivesse perto do mar ia ver as gaivotas e os barcos que regressam da pesca. Assim, sento-me e espero que um anjo mudo se sente ao pé de mim para que eu converse com ele.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Meditação Breve (97) Saber

Zao Wou-Ki, 10-11-58/30-12-70

De tudo o que se deseja saber, talvez a única coisa que saibamos, e não sem imprecisão, é esse desejo e a inquietação que ele acendo no peito.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Impossibilidade

Clarence H. White, Evening Interior, ca. 1899

Os boatos eram múltiplos. Havia quem falasse numa estranha doença que lhe roubara a beleza. Outros insinuavam que teria um amante secreto e que este a abandonara. Uma versão que chegou a estar em voga dizia que antes de vir para aqui tivera um filho, o entregara ao cuidado de uma ama e ele teria morrido. Um dia, em que aceitou, para surpresa minha, receber-me, confidenciou que estava ao corrente do que se dizia, mas que a sua beleza nunca a interessara. Que não, que nunca tivera um filho ou um amante. Era virgem e continuaria sê-lo, agora que decidira encerrar-se naquela casa. Disse-o sem hesitação. Depois, pediu com delicadeza que saísse e, de súbito, descobri que tinha o coração destroçado. Nunca um amor foi tão impossível.

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Impressões 20. Manifestação

Constantine Manos, The Boston Symphony Orchestra. Boston, Massachusetts, 1958

A música é um corpo de sons dotado de alma. Alturas há que dos acordes se solta uma imagem fugaz, que paira, por instantes, na obscuridade, rodopia para depois, mal cai o silêncio, desaparecer. Quem a viu não tem dúvidas. É a alma da música que ali se manifestou, dizem.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Poesia do Viandante (707)

Kurt Schwitters - Bild mit weither Stange (1938)

707. hastes desprendem-se

hastes desprendem-se
da imagem
perdem-se em êxtase
                de ervas
                e leves
ascendem aos céus
semeados de seda
e advérbios a arder
no vómito do vento

(24/12/2016)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Haikai do Viandante (366)

Benvenuto Benvenuti, Mattino, 1935-40

Manhã sobre o bosque,
pássaro de asas azuis.
Uma nuvem passa.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

O sal do silêncio (3)

Eduardo Gruber, ¿S-T?, 1999

Sento-me numa pedra e oiço o tilintar do vento. As folhas dobram-se, enquanto meço, com olhar enviesado, a distância entre a sombra e a luz. Ergo-me e dou os primeiros passos sobre a terra. A canção que havia em mim desprendeu-se dos lábios e perde-se no silêncio anil dos céus.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Micronarrativa (13) Oração

Pierre-Louis Pierson, Priére, 1860s

Rogo para que venha a palavra que terei a dizer, naquele lugar cujo nome esqueci. Suplico para que a luz me ilumine quando aguardo o rolar inquieto da noite. Imploro o sal que me há-de temperar o corpo e torná-lo pasto de uma boca ávida.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Impressões 19. Ao domingo

Henri Le Sidaner, Le Dimanche, 1898

O domingo nasce no interregno entre dois esquecimentos. Chega como o dia da memória, esse tempo em que os campos esperam a candura daquelas que, pálidas e vestidas de branco, elevam aos céus o ardor inocente da terra.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Poesia do Viandante (706)

Frances Hodgkins - Augusta Month (Walls, Roofs and Flowers) (1939)

706. telhados e flores

telhados e flores
erguem-se
sobre
casas e muros
as largas lojas
de vento e fogo
a ruidosa ruína
da paixão incendiada
na sílaba das ruas

(24/12/2016)

sábado, 9 de fevereiro de 2019

O sal do silêncio (2)

Francisco Farreras, Coudrage N.º 120 A, 1985

Era um caminho de silvas e pó e nele seguiam cantando os anjos. As palavras emanavam das suas bocas e caíam a prumo sobre a terra, enraizavam e na manhã seguintes eram já arbustos. O verde que deles se desprendia elevava-se aos céus. Então, era uma nuvem ou uma águia, o mais das vezes um raio de sol que me iluminava ao amanhecer.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

O sal do silêncio (1)

Ana Peters, Azul prusi, 1993

Sorrio, se oiço falar do fulgor da música. Toda a tarde procurei um nome divino, mas a memória esquiva frustrou-me o desejo. Sem nome, não há culto e sem este os dias não passam de dias, horas envoltas na poeira do que passa. Um acorde tingido pela perfeição chega a mim. Aguardo, é apenas uma vogal, uma sílaba. Lentamente, do magma da memória chega o nome e uma deusa matinal dança perante as vésperas do meu olhar.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Impressões 18. Na praça

Pierre Dubreuil, La grande place, Bruxelles, 1908

É nas grandes praças que as pessoas, ávidas e ferventes de paixões, se encontram. Ali reverbera a luz, como se fosse eterna a estiagem, mas logo a combustão a tudo transforma na cinza da melancolia e no azinhavre da amargura.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Haikai urbano (45)

André Kertész, The Street of the castle, Paris, 1932

O passado chega
preso em névoa e silêncio.
Pedras, sangue e sal.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Poesia do Viandante (705)

Georgia O'keeffe - A Celebration (1924)

705. celebremos a passagem

celebremos a passagem
célere do tempo
a distância
que se encurta
no cordame da vida
o verde vime
no crepúsculo do mar

(23/12/2016)

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Micronarrativa (12) Abandono

Toulouse-Lautrec, Seule, 1896

A hora em que, por fim, a solidão chega. Desce sobre o espírito como uma bênção, a graça de um deus sempre desatento ou avaro na distribuição dos seus favores. Traído o corpo, abandona-se sobre o leito como se este fosse um sepulcro e o lugar da libertação.

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Impressões 17. Figuras do crepúsculo

Kati Horna, Doll Surimpression, 1950's

Essas figuras que vagueiam ao crepúsculo, turvam-se quando a noite chega, vestem-se de cal e poeira e, quando a aurora as encontra, dormem de olhos abertos na sua cama de terra.

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Meditação Breve (96) Oração

Jan de Meyere, La Prière, 1927 [daqui]

Oração, esse exercício lento e melancólico, no qual a humanidade, inquieta e de olhos vendados, hesita entre a petição e o acolhimento.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Haikai do Viandante (365)

Paul Gauguin, Breton Village in the Snow, 1894

Neve sobre neve,
da noite à claridade.
Frio de Fevereiro.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Poesia do Viandante (704)

Albert Rafols Casamada - Mayo (1978)

704. maio amadurece

maio amadurece
no trigo da memória
desfolha-se grão
a grão
no arquipélago
da tarde
ilhas em chamas
num oceano de álcool

(23/12/2016)

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

A dança

Winslow Homer, A Summer Night, 1890

Dançaram toda a noite. Não havia, entre os presentes, quem as conhecesse e naquela época ainda era usual ver mulheres a dançarem umas com as outras. Talvez os homens não se sentissem à vontade ou achassem a tarefa indigna. Quem lá estava, não deu pela sua chegada. De súbito, viram-nas enlaçadas a rodopiar sob o luar. Não havia música, mas quem as viu afirma que nunca vira ninguém a dançar com tanta precisão. Sim, foi essa a palavra usada, precisão. Quem ali estava ficou a noite toda a vê-las no seu incansável rodopiar. Ao chegar a aurora começaram a dissolver-se, até que a luz da manhã as fez desaparecer. No chão, estavam as roupas que elas vestiam.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Haikai urbano (44)

Maximilien Luce, La Rue Mouffetard, Paris, 1889-90

Na rua Mouffetard,
o bulício do comércio
roda sem parar.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Meditação Breve (95) Obsolescência

Eliot Elisofon, Sleek new Chevrolet Corvette standing in show room, 1953

A beleza dos objectos criados pelo engenho humano cresce à medida que estes se vão tornando obsoletos. A obsolescência dos homens é um perigo quase sempre fatal. A dos objectos humanos é o caminho para a glória estética.

domingo, 27 de janeiro de 2019

Micronarrativa (11) Paciência

Benvenuto Benvenuti, Calafuria, 1940

Ela saiu pela noite, um barco esperava-a, e desapareceu. Quando ele se levantou de manhã, não a viu. Subiu, então, à torre e começou, não sem obstinação, a perscrutar o horizonte. Fez daquele lugar a sua habitação. Se lhe perguntam se ainda a espera, responde que a sua paciência não tem fim.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Poesia do Viandante (703)

Tal-Coat - Glauque (1972)

703. campos de girassóis

campos de girassóis
verdiágua
desfilam sob a grua
do olhar
giram na sonolência
do sol
fecham-se
se a corola da noite
anoitece os céus

(23/12/2016)