Jacinta Gil Roncalés - Hipócrita (1998)
Naquele
tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Guardai-vos de fazer as vossas
boas obras diante dos homens, para vos tornardes notados por eles; de
outro modo, não tereis nenhuma recompensa do vosso Pai que está no Céu. Quando,
pois, deres esmola, não permitas que toquem trombeta diante de ti, como
fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, a fim de serem louvados
pelos homens. Em verdade vos digo: Já receberam a sua recompensa. Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita, a fim de que a tua esmola permaneça em segredo; e teu Pai, que vê o oculto, há-de premiar-te.» «Quando
orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar de pé nas
sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos pelos homens. Em
verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando
orares, entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo
a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há-de recompensar-te. «E,
quando jejuardes, não mostreis um ar sombrio, como os hipócritas, que
desfiguram o rosto para que os outros vejam que eles jejuam. Em verdade
vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para
que o teu jejum não seja conhecido dos homens, mas apenas do teu Pai
que está presente no oculto; e o teu Pai, que vê no oculto, há-de
recompensar-te.» (Mateus
6,1-6.16-18) [Comentário de Bento XVI aqui]
Uma das leituras possíveis do evangelho de hoje, Quarta-feira de Cinzas, é dada pela tensão entre dois pólos. O público e o privado, o secreto e o manifesto. A vida espiritual é marcada pela sua realidade interior e o segredo é a sua natureza. O segredo não resulta de uma decisão de exclusão do outro, mas é a própria operação do espírito, na intimidade de cada um, que é secreta, que não pode tornar-se pública sem que se degrade e se torne numa outra coisa, por vezes mesmo, como salienta o texto de Mateus, no mais claro exercício de hipocrisia.
O espaço público é o lugar dos negócios deste mundo, o sítio da pólis e da economia, mas também o palco onde nos apresentamos enquanto pessoas. Apresentar-se enquanto pessoa não é apenas manifestar uma dignidade proveniente da nossa natureza racional. É também apresentar-se enquanto persona, enquanto máscara teatral. Este ser pessoa, com a sua dimensão de máscara, torna claro o que há de pura representação na vida pública, no teatro a que chamamos esfera pública.
A vida do espírito é uma vida de presentificação, de tornar presente, e não de representação. O caminho é o de abandonar, passo a passo, a persona e apresentar-se na nudez e solidão do seu próprio ser. Nudez significa aqui a verdade de si mesmo, sem filtros, sem velamentos, sem a distorção que a relação com os outrosa exige ou, no mínimo, impõe.
Implica a vida espiritual uma fuga mundi? Não propriamente. Implica a separação clara das águas, a compreensão de que nas coisas do espírito a verdade e a autenticidade são os elementos centrais. Pode implicar mesmo uma presença no mundo, no espaço público de representação, como sinal e símbolo de uma outra possibilidade que ultrapasse a hipocrisia das máscaras individuais e distorção das ideologias, autênticas máscaras sociais. Isso será tornar manifesto um caminho secreto que cada um, no silêncio e na solidão, deve procurar.
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Nota: Com este post inicia-se uma série de comentários ao evangelho diário da liturgia católica. Este projecto durará, se tal for possível, o período da Quaresma. Sublinhe-se que não se pretende nem uma interpretação litúrgica nem teológica, para as quais não se possui competência. Os comentários visam uma confrontação dos textos com uma via espiritual que não abandona a razão e o exercício do pensamento filosófico. Os textos do evangelho serão sempre seguidos de um link para um comentário autorizado, do ponto de vista eclesial, desses textos.