quarta-feira, 11 de julho de 2012

Poemas do Viandante (296)

João Queiroz - Sem título (?)

296. A ESTREITA PASSAGEM PARA O LADO DA NOITE

a estreita passagem para o lado da noite
um caminho estelar aberto e lento
tudo o que peito pode ainda albergar
o peso desmedido da candura na alma
e um rasto de luz e sombra no espírito

houve invernos em que o amor servia o corpo
trazia-lhe conforto e um pouco de calor
acompanhava-o se pela manhã cantava
houve invernos em que o amor trazia a solidão
um exercício frágil na esquina dos dias
a porta que se fechava e o mundo desaparecia

pego nas tuas mãos e não espero nada
o dia nasceu cinzento e a cidade calou-se
ao longe escuta-se o zumbido dos campos
o ronco matinal das árvores ao florescer
e se havia uma pedra no olhar
ou o júbilo de antes descia pela memória
era o coração a vociferar na tempestade
a luz cerúlea a pedir estrelas na manhã
uma promessa de vida aberta sobre a loucura

por vezes pego numa palavra e olho-a
ela resiste e depois entrega-se mansamente
abre o coração de cada sílaba
e deixa que eu espreite os campos secretos
onde a azáfama de gerações depositaram detritos
restos inúteis com os quais construo o sentido
um dicionário de sentimentos
e uma ontologia lexical para uso privado

liberto da tradição o meu ser estremece
e falo alto nas ruas da cidade
e não há quem não me julgue estrangeiro
perdido na saudade e incendiado de álcool

de tudo o que compreendi
ainda são as tuas mãos o que mais amo
pequenas passagens abertas para o poente
instrumentos de precisão para o prazer tardio
o fio que me liga à terra do passado

havia um pequeno e pobre jardim
caminhos de terra e canteiros murados a tijolo
vasos para as plantas secarem no verão
trago tudo isso no bolso da memória
pesa e verga-me para o chão
mas eu canto o prodígio desse silêncio
e olho para passado com o desejo da aurora

a estreita passagem levava-me a uma terra de rosas
saibro batido pela inclemência das gerações
o exercício torpe de esquecer a herança
a pobre estirpe sem prodígio ou ouro
que me trouxe o barro para as paredes desta casa

terça-feira, 10 de julho de 2012

Poemas do Viandante (295)

João Queiroz - Sem título (2005)

295. O SENTIMENTO COM QUE DESENHAS A VIDA

o sentimento com que desenhas a vida
abre-se na noite para um duelo sem razão
vem ulcerado e um odor impuro mancha o céu
tudo se expande na flacidez do espaço
breves clarões incidem sobre o corpo
iluminam pequenas cicatrizes a rouquidão da voz

recomeço a meditação sobre a origem do mal
e conto as horas perdidas no sonho
as flores puras e brancas trazidas nos braços
a pérgula esquecida onde passeávamos no verão

a fome nesses dias de sagrada pobreza
a castidade ameaçada pelo devaneio
procissões de raparigas fechadas para o sacrifício
e na fenda viciosa da terra nasciam sedições
exercícios de fogo e água
o breve arquipélago da memória em ebulição

cheguei à cidade trazido da cidade
e o horizonte era um mar de janelas e telhados
as linhas do eléctrico a brilhar ao sol
e um resto de janeiro transfigurado em primavera

tão descritivo é o teu sentimento
disseste e afagaste o animal deitado por terra
fiquei à espera das palavras que haveria
enquanto o sol se avermelhava e morria no oceano
e tudo caminhava para a serenidade monstruosa
com que os teus dedos exigiam o meu amor

descrevo o gelo que me paralisa a respiração
e oiço a malícia sobre as ruas magoadas pela noite

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Poemas do Viandante (294)

João Queiroz - Sem título (2008-9)

294. NÃO HAVIA FALÉSIAS OS MONTANHAS ESCARPADAS

não havia falésias ou montanhas escarpadas
a luz chegava tingida de cetim e brilhava um instante
para descer a pique sobre a planície e morrer
uma morte nascida de um impulso interior
a vida íntima despenhada na crueza da paisagem
aquele grito que sufocaste ao partir

era uma mecânica frágil assente num plano inclinado
íamos e vínhamos e a tua voz rouca cantava
as ruas ainda eram pequenas passagens
segredos entreabertos no corpo adormecido da vila

um pensamento chegava e eu seguia-o na luz que trazia
deixava-o brilhar por um instante
incandescer sobre a frágil mobília da casa
criar a ilusão de um amor pela junção fria dos corpos
estilhaçar todas as esperanças que o deus enviava

não quero saber da eternidade nem me fales por parábolas
pertenço a uma estirpe que não ama mistérios
e as palavras que ouvimos são transparentes e afáveis
deixam correr o mundo nelas sem dor ou metafísica
palavras plásticas para as coisas de plástico
palavras musicais para tudo o que tem ritmo e dança
palavras de vento para o que nasce no mar e é salgado
basta que te dispas e entregues o corpo à minha língua
e deixes ondular a respiração sobre o caos da melancolia

esqueci a hora em que amei pela primeira vez
essa experiência mutilada  nascida da ignição do desejo
uma conjura ditada pela dinâmica hormonal
o cansaço das paredes e os jardins rombos da imaginação
tudo se confundia na sombria inquietação do instinto
a seda dos corpos e o veludo febril do pensamento

não me recordo já da época em que floriam as glicínias
o pavor que havia se uma perturbação rondava
ou das horas em que oravam perante a sagrada família
esse culto nómada que de casa a casa leva uma ordem
um estranho arranjo de imperativos e súplicas
o desespero das pequenas gentes pela enormidade da vida

toco na lua com os meus dedos manchados de tinta
e o céu exausto de tantos olhares escurece
ó negra cúpula erguida sobre os pilares vindos da terra
uma ardósia escrita a sangue e estrela cadentes
em cada ferida que dilacera a alma faço cair o álcool
e na escura noite grito o teu nome preso nas trevas
o milagre de escutar a música das esferas celestes

domingo, 8 de julho de 2012

Poemas do Viandante (293)

João Queiroz - Sem título (1998)

293. ERA APENAS UM ESBOÇO NA PAISAGEM

era apenas um esboço na paisagem
a promessa de uma árvore
o símbolo solar do desassossego que cresce
toma conta do mundo
distribui os dias pelas semanas
e recolhe-os no pátio do esquecimento

amei a deus sobre todas as coisas
e agora estou nu
caminho pela noite sôfrego e impotente
e conto as horas sobre a cilada do amor

o desperdício da vida nunca é demais
a natureza traz um imperativo
e cada corpo entrega-se à ordem
que emana do vórtice
chegada a hora em que tudo começa

desço lentamente amparado ao muro
sinto o calcário no sangue das mãos
o medo que se expande em mim
e rezo para que o instinto não me traia
neste horizonte de escombros
matéria inerte à espera da respiração
o divino odor inalado com vagar
breves inspirações
e longas pausas para oxigenar o coração

não sei do que falas se dizes a lei da natureza
talvez seja um traço de adrenalina
aquela dor que abre o ventre
a busca desesperada da terra
não sei nada de leis nem da natureza
como as maçãs que a terra dá
e oiço cantar as raparigas
puras e cândidas na traição armadilhada

talvez seja esse o imperativo da maternidade
o desaguar do ser no lago do mundo
a casa branca rasgada no azul do céu
nada sei da natureza e da sua lei
da repetição infinita do gesto
a pedra que cai ao ritmo das marés

quantos anos tens perguntaste-me
e eu contei-te a minha vida
fui educado no amor da precisão
o esquadro e a régua
o trabalhar lento do compasso
esses exercícios matinais
a delituosa prevenção do mal

deixei de esboçar paisagens
os corvos vinham e comiam-nas pela manhã
e tudo ficava tão vazio
que ouvia deus chorar

sábado, 7 de julho de 2012

Poemas do Viandante (292)

João Queiroz - Sem título (?)

292. INCLINO O OLHAR PARA A MONTANHA

inclino o olhar para a montanha
e aspiro o ar frio da tarde
faço das pedras gruta
e arvoro a casa
onde te aguardo ao anoitecer

não pertenço a este tempo
e os lugares que me foram dados
esqueço-os mal chega o outono

sento-me e enumero as espécies
amieiros bétulas e sobreiros
o carvalho e o choupo
cerejeiras e freixos
adormeço entre folhas e ramos
e um sonho vagaroso arde
no desvão da memória

aproximo-me da infância
desço ao poço fundo
e encontro na água fria
a luz trémula do teu olhar

estou nu e escondo-me no jardim
a tua presença frondosa
espero-a na sombra
desejo-a na hora
em que cansada se vá

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Poemas do Viandante (291)

João Queiroz - Sem título (?)

291. UM PORTO EM RUÍNAS DEBRUÇADO SOBRE O MAR

um porto em ruínas debruçado sobre o mar
batido pelo sal furioso das águas
iam e vinham e voltavam irascíveis
atiravam-se violentas sobre a pedra
e rosnavam no seu hálito marinho
uivavam se a rocha se erguia e resistia
e tornavam sempre e sempre
movidas pelo frio do vento
e um desejo de vingança inscrito nas ondas

uma fotografia de família lembrava a tempestade
um rasto de árvores arrancadas e raízes ao sol
o silêncio das palavras por dentro da fúria
tudo isso fotografado de longe
agora impresso em papel brilhante
o desespero de guardar na memória o imemorável
a hora em que o perigo se inclina sobre nós
e uma ave de veludo lembra o anjo da morte

se clareia sobre a cidade
apagam as luzes e deixam que o dia venha
com o seu cortejo de ofícios
o sólido argumento da dor iluminada
a pressa esquiva da urgência fatal
as ruas crescem de pessoas e de passos
fantasmas especados sob o império do sol
candelabro de sete braços
a impenitência de dormir pelos jardins

o trigo joeirado é agora pão
e sento-me para transformar o mundo
incendiar os castelos e vilas fronteiriças
abrir rombos  nas linhas inimigas
paciente espero pela audácia da noite
enquanto escrevo uma carta de amor
sob o véu vermelho da distância
um copo de vinho e pão sobre a mesa

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Poemas do Viandante (290)

João Queiroz - Sem título (2005)

290. O FILAMENTO INCANDESCENTE DA LÂMPADA QUEBROU-SE

o filamento incandescente da lâmpada quebrou-se
e sobre o mundo vieram densas trevas
um segredo marítimo trémulo como uma quimera infantil
o antigo exercício de obscuras profecias

de onde vem o pão e o trigo e a semente e a água
e a terra e o que a terra traz em seu seio
e as palavras que nela habitam e são enigma
pego no mistério da palavra e desfaço-o em sílabas
e cada sílaba abre-se em ínfimos átomos
que se decompõem em partículas
pura energia e nela habita o latir do cão
o ronco de um motor no escuro dos campos
a tua mão abandonada ao vento

o pé da videira brota do pó ensanguentado
ergue uma promessa de vinho à tua mesa
desenha uma aritmética silenciosa
onde mãos sorrateiros se inclinam para os cachos
e nos lagares há um cheiro a mosto
à sombra deixada por cristo na última ceia
o grito de guerra do batalhão conduzido para morte

pego num verso e deixo-o morrer 
olho o cadáver hirto e preso na lividez
e sonho no poema um cemitério
as campas ordenadas segundo uma funesta geometria
e vendo-se ao longe eternos ciprestes
sombreando campas ávidas de poetas

o ódio visceral semeia terraços de papoilas
ali crescerá a cidade sobre a indiferença do olhar
as autoridades ordenarão o espaço
tracejarão ruas e praças a promessa da morte
e no centro haverá uma festa
diónisos dormirá sob o olhar radiante de apolo

não há quem cante nas ruas desertas
o orvalho secou nas rosas abertas
e os passeios escondem o suado arfar da terra

despes-te e não encontras o corpo
julho aqueceu-o e tomou-o por dentro
dilatou-lhe as células levedadas pelo desejo
ergueu-as e cresceram para o céu
eram nuvens incandescentes
segredos trémulos as lâmpadas de água

sobre a cidade o campo choveu

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Poemas do Viandante (289)

João Queiroz - Sem título (?) (1998)

289. CONDUZO O BARCO PELO DESABRIGADO DESERTO

conduzo o barco pelo desabrigado deserto
e procuro a casa onde a eternidade se demora
pois a peste grassa pela cidade 
e ninguém pode entrar ou sair
desse círculo de fogo que protege a doença
evita-lhe a contaminação dos homens
o peso insuportável das orações

as areias batidas de sol contêm um desejo
água que se perde pela fenda aberta
cada nome que a boca pronuncia ao anoitecer
os gestos com que encerravas as trevas
e desenhavas a planície lisa da pele
sarcófago que guarda os restos do amor

de coração contrito e mão arrependida
lanço pétalas sobre o andor vazio
e aguardo o perdão pela violência das palavras
pelo tecido quente das omissões

quem habita o desabitado deserto
sabe escutar a seiva dos cactos
e domar cada demónio embriagado
que a noite amamenta no seio escuro
seio de estrelas perdidas na galáxia
a que deram o nome de um santo
pois todos os santos têm um caminho
- estrada dura e plena de abominação -
e transportam um odor de flores sobre a varanda

ali escutam despidos a voz de deus
entre folhas secas e um rasto de bolor

terça-feira, 3 de julho de 2012

Poemas do Viandante (288)

João Queiroz - Sem título (2008/9)

288. VENHO DO TEMPO AVARO DA POBREZA

venho do tempo avaro da pobreza
dos dias em que a míngua descia sobre as cabeças
entrava nas casas para traçar o vazio
uma onda fria de ausência
o medo desmedido da eternidade

se havia um excesso de sentimento não o sei
apenas a desolação crescia
desenhava uma angústia febril nas paredes
e a melancolia segmentava-se
um rasto de carvão e jornais rasgados
os homens que passavam de bicicleta

estou sentado ao vento da noite
e a serra d’aire brilha ao longe
um vulto negro e incerto
a promessa de abandono e limpidez
no rosto sofrido com que amavas os dias

recupero a tua memória perdida
eram os dias da grande guerra
e os soldados marchavam incautos
presos a um destino surdo
à ração esquiva da morte em combate

uma paliçada de canas dividia o mundo
e um génio falava do outro lado
a almotolia do azeite
e as primeiras flores do coração

nuvens de poeira e restos de palha
um afogado perdido nas águas do tejo
a primeira morfologia das constelações
sobre tudo isso veio o esquecimento
e traçou um plano de combate
armadilhou a terra bravia da memória
e roubou ao inimigo cada recordação

o talento da crueldade nasce nessa moradia
é um exercício lento de combustão
uma suspeita nunca confirmada de amargura
as mãos sujas pelo crime prosperam na madrugada
são brancas e trazem na lividez a faca
com que cortam o fio que te liga à vida

uma ave voa no tumulto dos céus
estrelas solitárias dormem em alvoroço
e na terra ouvem-se os primeiros trovões
a descarga eléctrica na torre da igreja

qual seria o teu ofício ainda não o sei
recordo-me que vinhas de longe
e sentavas-te ao entardecer
para contar essas estranhas histórias
que me povoam a infância
a terra coberta de erva canária
os primeiros regatos trazidos pela invernia

sobre o presépio um céu azul e estrelado
e nunca mais houve natal que não fosse esse natal
um deus pequeno e sujo entre palhas
o rumor de gente a entrar pela porta
e um anjo sentado no musgo
apascentava breves rebanhos perdidos na terra

dobrado o cabo da boa esperança
e as tormentas domadas pela arte de navegar
espero pela manhã com o rosto preso na almofada
e o barulho das parras batidas pelo vento
o corpo a arder no desejo do teu

desenho um mapa para me orientar
e deixo sinais de obediência
ajoelho-me silencioso perante o altar
e espero que deus fale
e traga ao meu coração o primitivo ardor
a incandescência com que te abria o corpo
e sentia em cada célula
o odor suave do teu sangue de fêmea
a tecelagem primitiva com que me envolvias
no círculo desenhado pelas ancas
a música que crescia no palco
um incêndio na seiva das árvores
o grito estrangulado no peito
quando dizias fala para mim
ainda tenho a graça da juventude
o sexo molhado à espera do teu
na fímbria onde o desejo se abre
e se abate como uma nuvem negra
sobre os telhados de zinco da cidade

venho do tempo avaro em que amava a pobreza
os dias em que encostado ao poço
comia laranjas se era delas o tempo
e tudo era a simplicidade de ser
pequenas promessas levedadas em segredo
o rasto de poeira antes da cidade

levo no bolso a penúria desses dias
e amo-a na pureza com que ela me devolvia
cada coisa que eu dava a quem a pedia