segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Arqueologias do espírito 5

Eduardo Nery, Escadas, 1970
O uso da escada terá sido antecedido pelo recurso a outros objectos que lhe fizeram a vez. No entanto, ela inscreve-se como um símbolo arquetípico no espírito humano. Nela se combina o impulso para ascender e a sabedoria tácita do esforço. Capturado no corpo, preso à terra, envolto nas necessidades da carne, o homem transporta no fundo de si a necessidade de se elevar. Uma experiência muito arcaica ter-lhe-á mostrado que, não sendo ave, só o poderá fazer degrau a degrau, numa escada sem fim. 

domingo, 30 de agosto de 2020

Meditação Breve (136) Café

Diogo de Macedo, sem título, 1923
O café, no tempo em que era a pedra angular de toda uma cultura pública, existia como um espaço onde as solidões se partilhavam, um portal que ligava a realidade e o sonho. Em rumorosos silêncios ou em sufocados ruídos, nele se alimentavam os desejos da carne, os devaneios da imaginação, os eflúvios do espírito. 

sábado, 29 de agosto de 2020

Diálogos morais 44. Leitura

Henri Fantin-Latour, A leitura, 1870
- Escuta...
- Sou toda ouvidos, mas...
- A sério, vais gostar, tenho a certeza.
- Não tens falta de certezas, ou não fosses a irmã mais velha.
- Pára com essas coisas, apenas quero proporcionar-te um pouco de prazer.
- Imagino, aliás nunca é outra coisa que queres proporcionar.
- É uma passagem brilhante.
- O problema é esse. De tão brilhante, ainda me ofusca e eu fico cega.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A Sarça Ardente - 33

António Areal, sem título, 1960

Bebo o vinho dos dias de festa
e sento-me
à sombra da cerejeira.

Dedilho a harpa do desejo:
escuto-te
no murmúrio da memória.

Um aroma de cerejas levita
em silêncio
no sal secreto das tuas mãos.

Julho de 2020

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Impressões 58. Homens

Luis Dourdil, Pintura II, 1974
Talvez os homens sejam apenas sombras sonhadas por outras sombras. O melhor é caminhar em silêncio, evitar ruídos, fechar portas e janelas, manter as luzes apagadas. Nada seria pior do que acordar os sonhadores e destruir o seu sonho.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Micronarrativa (37) O peso da graça

Minya Diez-Dührkoop, Dancer Clotilde von Derp-Sacharoff, 1910
Nela tinham pousado todos os encantos que as Graças poderiam derramar. O seu peso, porém, era tão excessivo que uma sombra caiu sobre ela. Quem a olhasse nos olhos sentia neles uma dor inconsolável, um pedido para que a libertassem da dádiva divina.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Haikai urbano (60)

Terreiro do Paço (autor e data desconhecidos)
As sombras sonâmbulas
sonham-se em sonhos de água. 
Tágides do Tejo.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Arqueologias do espírito 4

António Carneiro, Paisagem – Leça da Palmeira, 1905
Nos pequenos veleiros, de recreio ou de trabalho, manifestam-se a leveza daquilo que o vento impele e a imponderabilidade do que flutua nas águas. No lugar obscuro onde o espírito encontra a fonte originária, não encontramos apenas a presença do ar e da água, mas daquilo que com esses elementos dialoga, que os metamorfoseia de possíveis ameaças em deuses benévolos. O espírito é impelido pelos ventos e flutua sobre as águas, pois também ele, como um pequeno veleiro, é leve e imponderável.

domingo, 23 de agosto de 2020

A Sarça Ardente - 32

Jorge Vieira, sem título, 1948
As orquídeas florescem-te nos dedos,
cobertas de sombra,
adormecidas
no cântico das aves de Verão.

Olho-as, e a madrugada nasce
em pétalas de luz,
em casulos
tecidos na música da maresia.

Julho de 2020

sábado, 22 de agosto de 2020

Meditação Breve (135) Expectativa

Jorge de Oliveira, Expectante, 1949
Expectativas nascem de um cálculo de probabilidades ou na promessa feita por um outro, mas elas trazem consigo uma revolta contra o tempo. Possuir uma expectativa é antecipar o futuro, torná-lo presente, dissolvê-lo na sua natureza do ainda não, evitar que ele seja a pura surpresa de um desconhecido.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Haikai do Viandante (398)

Rosa Carvalho, Paisagem, 1952
Secreta paisagem
dobada na erva tardia.
A vida murmura.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Histórias sem nexo 11. Bléo

Adriano Sousa Lopes, A blusa azul, 1925-28
Blandiciosa, Bléo ablusa-se numa blusa blue. No blogue, bloqueia blagues e blasfémias. Liga-se ao bluetooth, põe blush, faz bluff. Num blister, blinda-se da blenorreia. Blim!

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

A rapariga do bar

Querubim Lapa, Bar, 1946
Frequentava um bar onde existiam raparigas para dançar com os clientes. Havia uma, esquiva e enigmática, que me fazia arder de desejo. Dançava apenas e nunca permitia sequer que a olhassem nos olhos. Ao contrário das outras, nunca saía acompanhada. Uma tarde, os seus olhos pousaram nos meus. Quase ceguei. Quando saiu, aceitou a minha companhia. Propus-lhe que viesse a minha casa. Anuiu. Mal fechei a porta, beijei-a. Entregou-se com volúpia aos meus lábios. Enquanto dançávamos, despia-a. Ao cair a última peça, descobri que não houvera corpo algum dentro daquela roupa. Nunca soube que lábios beijei ou que olhos me queimaram as entranhas. Uma voz dizia, diz ainda: eu sou a tua loucura. 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

A Sarça Ardente - 31

Thomas Joshua Cooper, Cabo Espichel, 1994

Parto para porto desconhecido.
Espera-me o Outono
e um cortejo de folhas mortas.

Parto para a ilha do esquecimento.
Escrevo o nome
no coral das cordas do coração.

Parto para a terra da abundância.
Escuto aquilo que é
na sombra do silêncio de uma rosa.

Julho de 2020

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Arqueologias do espírito 3

Manuela Marques, Espace 3, 2016
Chegados ao termo de um longo corredor sobressaltamo-nos. Uma porta interrompe a viagem e institui um enigma. Não é sem temor que a abrimos, pois não sabemos com que mundo nos vamos deparar, se benfazejo, se ameaçador, se desafiante. Cada porta, e muitas são as suas espécies, não é mais do que a projecção das portas com que deparamos quando viajamos dentro do nosso espírito. Seguimos a via e, a certa altura, somos confrontados por uma porta. Abri-la ou não é uma decisão de vida ou de morte. 

domingo, 16 de agosto de 2020

Diálogos morais 43. Expectativa

Emmerico Nunes, sem título, 1913
- O que estás a fazer deitado no chão?
- Chiu! Não quero acordar-te.
- Não vês que já acordaste.
- Não, não vejo nada.
- Pois não.
- Não passas de uma fingida.
- Como?
- Finges que estás a dormir para me expiar.
- Estás bêbado. Para te expiar? Ora... Ora...
- Sim, para que mais haveria de ser?
- Para ver se restou alguma coisa para mim.

sábado, 15 de agosto de 2020

Haikai urbano (59)

João Hogan, Casario de Lisboa, 1952
Casario de Lisboa,
sombra duma sombra antiga.
Pólen da memória.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Arqueologias do espírito 2

José Salís, Alta mar, 1920
O lugar onde um deus irado tem o reino despótico e a morada luxuosa, esse mesmo sítio onde barcos e homens desaparecem para sempre, é um reflexo do pélago perturbado que existe no mais fundo dos seres humanos. Olhamos o oceano, esmagados pela sua desmedida, temerosos das suas armadilhas, inquietos pelo sopro do vento que ondula as águas, e sentimos um frémito na fímbria do que somos. Se em nós se fizer silêncio, depressa descobrimos todos os perigos que há no recôndito da nossa alma.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

A Sarça Ardente - 30

Tal-Coat, Glauque, 1972
As dunas escondem o ir e vir do oceano.
Paredes de areia cobertas de cactos,
erva rala a tremer ao vento.

Alguém caminha por elas, solitário,
procura uma pedra, um pássaro,
a senda que leva ao poente.

As gaivotas voam como se cantassem.
Desenham círculos e espirais,
numa partitura de sombras e seixos.

Ao longe, ecoa o choro das sirenes.
Os pescadores são fantasmas,
balançando na música do nevoeiro.

A tarde rasga o lençol que vela a noite.
Do porto, saem os barcos.
Procuram cardumes de rosas no jardim do mar.

Julho de 2020

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Impressões 57. A mulher que dança

Gjon Mili, Study of nude female dancer. 1942
Ao dançar, a mulher deixa de ser mulher, perde a alma que a liga ao mundo humano e torna-se ave e anjo, cujas asas lhe nascerão na hora em que a gravidade queira fazê-la cair no imenso lodaçal da terra.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Micronarrativa (36) Amor trágico

Odilon Redon, Dos amantes en una barca, 1902
Foi um amor trágico, não porque os amantes morreram em nome de uma paixão impossível, mas porque fugiram para longe da convenção, consumaram o seu amor e logo descobriram o cansaço um do outro que nunca mais os abandonou.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Haikai urbano (58)

Francis Smith, Lisboa - Alfama, 1920
Gente sobe e desce
entre o casario de Alfama.
Ecos de Lisboa.

domingo, 9 de agosto de 2020

Impressões 56. A mulher de fumo

Jiri Georg Dokoupil, Desnudo de la ventana, 1989
Ao espreitar despida pela janela, a mulher torna-se incerta. O corpo esfuma-se e não é mais do que um esboço que a realidade atenuou, o fumo inquieto deixado pelo fogaréu rápido do desejo, pelo lume arrefecido do amor.

sábado, 8 de agosto de 2020

A Sarça Ardente - 29

Richard Diebenkorn, Ocean Park n.º 96, 1977
Traineiras rompem as águas,
voltam ao porto
carregadas de peixe,
enredadas em mistérios.

Sento-me no âmbar das areias
e deixo o murmúrio
das ondas
serenar em mim.

Junho de 2020

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Os jogadores de damas

Júlio Resende, Jogar às Damas, 1945
O que afligia o taberneiro era eles nunca beberem vinho. Não é que não fizessem despesa. Eram até clientes melhores que todos os outros, mas o seu negócio era vender vinho e eles acabavam por desprezar aquilo para que vivia. Chegavam à taberna, sentavam-se diante do tabuleiro e jogavam damas durante duas horas. Todos os dias. Bebiam café e refrigerantes. Comiam sempre qualquer coisa. Eram parcos em palavras, mas não hostis. Os jogos entre eles eram épicos. Tinham uma concentração enorme que os raptava do que se passava ao redor. Chegada a contenda ao fim, despediam-se e saíam. Não havia noite em que não fossem encontrados completamente embriagados, arrastando-se pelas ruas da aldeia.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Arqueologias do espírito 1

George Pierre Seurat, Forêt à Pontaubert, 1881
Nunca a floresta deixa de fascinar os homens. É o lugar onde se escondem os perigos ancestrais e, ao mesmo tempo, o abrigo perante o avanço da superficialidade que a vida civilizada traz consigo. Aquilo que toca os homens, no mais secreto que há neles, é a sensação de que viver nela, percorrê-la, conhecer-lhe os caminhos e as clareiras os torna mais autênticos, como se a autenticidade nascesse do sombrio, da súbita luz que o ramalhar do vento deixa passar, do húmus que cobre a terra.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Haikai urbano (57)

Nadir Afonso, Lisboa
 Tão leve Lisboa
nas asas sombrias do corvo.
Água, vento e luz.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Histórias sem nexo 10. Corpete

Horst P. Horst, Mainbocher Corset, 1939
Cresce, comedido e comovido, no côncavo colorido de um crepitante concerto, um corpo composto e comandado pela cruel crueza de um corpete.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

A Sarça Ardente - 28

Lucio Fontana, Ambiente spaziale (Labirinto bianco), 1968

Desenho as pétalas brancas
do porvir.
Com elas componho flores
e uma promessa
de água a correr.

Imóvel, enfrento a noite
e o futuro.
Levo na mão o peso
da luz
e a cicatriz do silêncio.

Abril de 2020

domingo, 2 de agosto de 2020

Meditação Breve (134) Fortuna

Dorothea Lange, Unemployed men stand in line to get a free dinner, 1932
Nunca sabemos por que razão se está ou não na terrível situação de ter de recorrer à caridade. Há quem pense que a razão está na injustiça social, há quem julgue que isso se deve ao mérito pessoal ou à falta dele. Talvez seja apenas uma questão de sorte e de uma disposição benevolente da deusa Fortuna. Esta é, para muitos, a pior das explicações, mas isso não faz dela a mais inverosímil.