segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Haikai do Viandante (7)


abre-se ao terror
da noite a velha árvore - 
murmúrios de luz

domingo, 23 de outubro de 2011

Haikai do Viandante (6)


Chuva de Outono
enche a noite de cansaço.
Um punhal na lua.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Um espectáculo odioso


A miserável morte de Muammar Kadhafi, mais uma das execuções, pela plebe em delírio, de inúmeros ditadores mais ou menos odiosos, a que tenho assistido ao longo da minha vida, deixa-me, como sempre, um traço de amargura no fundo do coração. Compreendo que numa cultura fundada na lei de talião se possa comemorar com exuberância este tipo de acontecimentos. Mas a minha consciência de ocidental, mesmo que o Ocidente tenha cometido inúmeras atrocidades, sente uma veemente repulsa por estas iniquidades. São duas as fontes culturais da minha repulsa. Por um lado, a ética da justa medida aprendida com os gregos. A justa medida, interpretada nos nossos dias, significa a sensatez da pena, a racionalidade de um processo jurídico a que o réu deve ser submetido, mesmo que ele nunca o tenha permitido aos seus adversários. Mas a lei da razão herdada dos gregos, na cultura Ocidental, foi enriquecida pelo convívio com a grande novidade cristã, o perdão do inimigo, a lei do amor como princípio fundamental das condutas individuais. Este é o núcleo duro dos valores éticos fundamentais do Ocidente. É este núcleo que deve ser cultivado quotidianamente, mesmo, ou ainda mais, numa sociedade que, como a nossa, está a perder o norte. A razoabilidade aristotélica e o sacrifício do Cristo são o suficiente para tudo julgar, condenar e perdoar. O perdão não significa a eliminação da pena, mas a sua razoabilidade e a sua limitação, de forma a que a pena não seja um acto de vingança. Kadhafi tinha direito àquilo que terá negado a muitos, a ser julgado por um tribunal independente, num processo justo.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

236. SERENIDADE

chegaram os dias propícios
a aragem toca
o arvoredo
um gato corre
e o sol recolhe-se
para lá dos montes

no silêncio da noite
respiro
e deixo vir a tua voz
cantar sobre a luz
que dardeja
a serenidade

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Últimos dias

Brjullow: Der letzte Tag von Pompeji


Sabe, porém, isto: que nos últimos dias sobrevirão tempos trabalhosos. Porque haverá homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afecto natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela.  (S. Paulo, 2 Timóteo, 3: 1-5) 

A meditação sobre a expressão últimos dias é fundamental na tradição cristã. Se entendermos por últimos dias aquelas que antecedem a parusia de Cristo, a sua segunda vinda, então todos os dias são os últimos dias. A possibilidade do retorno de Cristo na alma do homem não é um acontecimento distante. Isso implicaria a temporalidade e o decurso histórico. Mas o fundamental não estará nesse fim da história, onde Cristo retorna, mas no que está para além da história e da temporalidade. Eternamente, Cristo está a retornar para julgar os vivos e os mortos. Por isso, a descrição paulina dos últimos dias aplica-se tanto à época em que viveu como à nossa, ou a qualquer outra. Esses últimos dias serão trabalhosos, pois a vinda de Cristo, a sua descida na alma humana é obstaculizada pelo amor-próprio nas múltiplas modalidades que Paulo de Tarso descreve. Vivemos, de facto, os últimos dias, e vivemos a corrupção fundada no egoísmo. Isso é verdade socialmente, mas também o é para cada um de nós. Daí, a necessidade da conversão do ego ao totalmente Outro, a esse vazio que espera o nosso vazio para o preencher.

domingo, 16 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

235. DESERTO

no desconcerto que são os dias
espero ainda um vislumbre
a força da água a correr
o vento vindo
do vazio

aí germina o deserto
e os cactos
e o amor que nasce
em quem toma
o deserto pela casa
onde nasceu

O templo vazio


O templo, no qual Deus, seguindo a sua vontade, quer poderosamente reinar, é a alma do homem. Deus a formou e criou justamente bem igual a si mesmo, como lemos ter Nosso Senhor dito: "Façamos o homem segundo a nossa imagem e semelhança!" (Gn 1,26). E foi também o que ele fez. Tão igual a si fez a alma do homem que, dentre todas as esplêndidas criaturas por Ele maravilhosamente criadas, não há, nem no reino do céu nem sobre a terra, nenhuma que se iguale tanto a Ele, a não ser unicamente a alma humana. Por isso, Deus quer ter esse templo vazio, a ponto de ali não haver nada mais do que Ele só. (Mestre Eckhart, Sermões Alemães: Sermão 1 "Intravit Jesus in templum et coepit eicere vendentes et ementes")

Este excerto de Eckhart permite surpreender duas questões essenciais, ambas respeitantes à alma. Em primeiro lugar, é nela que reside a imagem e semelhança com Deus. Poderíamos contrapor a materialidade do corpo à alma, mas isso pouco nos ajudaria, para além de nos deixar reféns de um conjunto de dualismos de natureza aporética. A segunda questão poderá esclarecer esta. Deus quer a alma como um templo vazio. É no vazio que reside a natureza da alma. Esse vazio, devido à sua relação com o templo, é uma abertura. O que é solicitado ao crente - no fundo, a todo o cristão - é a abertura de si-mesmo. Mais que esta ou aquela acção, o que está em jogo é o esvaziar da alma de tudo o que indevidamente a ocupa, sejam preocupações mundanas, sejam vontades e ilusões próprias, seja, inclusive, o plano de salvação pessoal. O vazio é o vazio, e tudo o que se coloca nesse vazio torna-se num obstáculo à presença de Deus no templo. O que está em jogo então não é a minha salvação pessoal ou do mundo, ou seja do que for, mas a da presença do Criador na sua criatura. Essa presença é a própria salvação da criatura e luz para o mundo criado. Inopinadamente, o cristianismo, naquilo que nele é mais essencial, revela um estranho parentesco com disciplinas espirituais bem distintas dele, como o budismo zen ou o tibetano. Fazer em si o vazio para que o Vazio o preencha.

sábado, 15 de outubro de 2011

Destinos e limbos

O último poema da série Poemas para Afrodite, que deveria ter sido postado ontem, sofreu um singular destino. Encontra-se encerrado no limbo de um disco rígido externo ao qual o autor deste blogue deixou de ter acesso. Diversas tentativas, mesmo profissionais, para entrar em contacto com o conteúdo do disco mostraram-se infrutíferas. Naquele limbo digital encontra-se, entre muitas outras coisas, toda a produção poético do autor do blogue, da qual, para muitos dos casos, não há qualquer outra cópia. Há muito que deixei de escrever em papel, e aquilo que fora escrito em papel há muito que estava em suporte digital e o papel devolvido ao pó da terra.

Mais que digno de lamentação, o caso coloca uma questão interessante. Se nem uma empresa super-especializada em recuperação de dados, a que penso recorrer em breve, conseguir salvar o acervo do disco, então toda aquela poesia que lá se encontra, e da qual não tenho qualquer duplicado, desaparecerá. Será o sinal definitivo de que não merecia qualquer atenção. Veremos o que vai acontecer.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

233. POEMAS PARA AFRODITE (xiv)

a tua pele
sob esta mão
um mar de cetim
e se te olho
no fundo
dos olhos
tudo treme
e dança em mim

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

232. POEMAS PARA AFRODITE (xiii)

respirar
o suor do teu
ventre
e fazer
desse corpo
um abrigo
feroz e doce
fresco e quente

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

231. POEMAS PARA AFRODITE (xii)

põe em mim
o calor
dos teus dedos
e arranca
deste corpo
cada um
dos teus
segredos

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

230. POEMAS PARA AFRODITE (xi)

entre as tuas coxas
repouso
a boca
e bebo água
e vinho
e ébrio abraço-te
se cantas viva
e louca

domingo, 9 de outubro de 2011

Da inefabilidade do poema

Poderemos ainda pensar o insondável que se manifesta, ao vir à linguagem, na poeticidade do poético? Se considerarmos esse insondável como um logos apofântico, cuja revelação, permitiria um regime de veridicção, afastamo-nos decisivamente desse núcleo originário de onde brota aquilo que toma forma de poema. O que toma a forma de discurso, mesmo poético, não possui a raiz nesse discurso, mas naquilo que é o prévio do discurso, nesse rumor que percorre o ser e o impele para a palavra. No entanto, esse rumor não deixa de ser o rumor do próprio logos, nessa ânsia de manifestação. Introduzir a metáfora do rumor terá alguma vantagem? Faz-nos abandonar o campo da negação, campo dado em metáforas como insondável ou inefável. Esse rumor, porém, indica ainda um acontecer e a produção (poiésis) desse acontecer. Será nos conceitos de dynamis e energeia que se abre o caminho para a poeticidade do poético. Mas o trajecto terá de ser entendido à rebours da lógica do discurso filosófico. A exploração dos conceitos de dynamis  e de energeia não visa a sua definição e precisão lógico-discursiva, mas uma viagem para o domínio pré-conceptual como preparação para para o salto - trata-se efectivamente de um salto para a consciência comum e também científico-filosófica - para a experiência da dynamis (potência) e da  energeia (acto). Dando, sem análise crítica, como boas as traduções canónicas por potência e acto do par dynamis e energeia, podemos dizer que há que fazer a experiência da potencialidade e da actualidade, não apenas a escuta de ambas, mas a experiência do operar agónico que as conduz e as constitui, para nós, como rumor. Aqui está já presente o logos, mas ainda não cindido e submetido a um regime de veridicção. Neste conflito e amplexo erótico, são expelidas as matérias que o poema fixa através das múltiplas estratégias da escrita poética, mas a poeticidade reside no tumulto da agonía, e o poeta vive na fronteira entre o caos agónico e o cosmos lógico-sintáctico. A inefabilidade do poema reside, aos nossos pobres olhos, no facto de ele ser ao mesmo tempo um guarda-fronteiriço e um emissário desse mundo que se subtrai, na vitória da lógica e da sintaxe, à experiência humana,

Poemas do Viandante

229. POEMAS PARA AFRODITE (x)

a tua na minha
língua
é onda
mar revolto
um campo
de musgo
onde preso
me solto

sábado, 8 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

228. POEMAS PARA AFRODITE (ix)

se despida
a luz te toca
estremeço
e tudo em mim
é desejo e ânsia
e pura vontade
de morte
e recomeço

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

227. POEMAS PARA AFRODITE (viii)

deixar correr
o sémen
em teus lábios
e escutar
o murmúrio
do corpo
na cama coberta
de naufrágios

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

226. POEMAS PARA AFRODITE (vii)

se te toco
o rosto
dás-me
nessa boca
um licor de rosas
e mosto

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

225. POEMAS PARA AFRODITE (vi)

nessa distância
de mar e
assombro
deixo a língua  correr
da brancura
do seio
ao fogo
do ombro

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

224. POEMAS PARA AFRODITE (v)

a mão
em teu colo
fremente
e a boca
sôfrega
repousa
na nascente

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

223. POEMAS PARA AFRODITE (iv)

adormeço
no teu corpo
e espero
a manhã
para acordar
em alvoroço


domingo, 2 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

222. POEMAS PARA AFRODITE (iii)

toco-te
a espádua
e bebo
o vinho
na tua boca
de água

sábado, 1 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

221. POEMAS PARA AFRODITE (ii)

abandona a roupa
pelo chão
e deixa a luz
trazer
um mistério
de seda
ao império
da minha mão

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Poemas do Viandante

220. POEMAS PARA AFRODITE (i)

o olhar aberto
à tua pele
o mar do corpo
à míngua
e trémulo
o ventre
respira-te ao sabor
desta língua

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Poemas do Viandante

219. PROMESSA

os sonhos de água
naquelas noites
de invernia
acodem-me agora
brandos e leves –
promessas
de amor
se chega o dia

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A Igreja e os modernos

Bento XVI, nesta sua viagem à Alemanha, relembra a necessidade de ser firme na fé contra os ventos de secularização e exprime o receio de que na Alemanha o catolicismo se protestantize, deixando ao livre-arbítrio de cada um aquilo em que quer acreditar. Referiu também que a Igreja está demasiado instalada e com pouca espiritualidade. Todos estes temas acabam por ser diversas faces de um mesmo e único problema, o da relação, ainda difícil, entre a tradição católica e a modernidade ocidental. A autonomia da consciência, a valorização da experiência, a capacidade crítica da razão, levantaram um conjunto de obstáculos à transmissão de uma tradição que, muitas vezes, se ancorou na infantilização das consciências, na negação do valor da experiência dos indivíduos e da capacidade crítica da razão. O problema não reside em que cada um acredita no que quer, isso é apenas um sintoma marginal. A questão está na experiência da fé e na entrega ao espírito sentidas como um imperativo que, em cada um de nós, constitui o seu próprio e singular mistério. Talvez a Igreja Católica esteja demasiado instalada porque perdeu o sentido último daquilo que a constitui e o substituiu por uma moralidade e por uma estética de duvidoso gosto. Nós, os modernos, com a cultura da razão que os tempos permitiram, com a autonomia da consciência que se conquistou e com o livre-arbítrio dado por Deus não precisamos tanto da Igreja - a quem manifestamente falta autoridade para falar do assunto - para aconselhamento sobre a moralidade sexual ou a política, mas precisamos de uma Igreja madura na experiência do Espírito, capaz de acolher e orientar o caminho para Deus, sabendo discernir os espíritos, digamos assim. O perigo de secularização não vem do século, mas de dentro das próprias instituições religiosas, onde parece que, há muito, tudo se tornou insípido, vulgar e banal. Basta escutar as homilias das missas dominicais. Como tocar os homens modernos se o discurso é estereotipado, vagamente moralizador, adocicado e onde não há sinal da presença do mistério que faz do homem um ser à imagem e semelhança de Deus?

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Poemas do Viandante

218. TEMPO

a hora avança
traz no seio
a flor nocturna
uma luz
a casa esquecida
os bancos de pedra
sobre o tumulto
desfeito
das águas paradas
do rio

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Poemas do Viandante


217. PODERES

os teus poderes
tão exíguos
balançam
ao vento norte
ressoam
são sinos
nas manhãs frias
se acaba
a primavera

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Haikai do Viandante (5)


Noite e ruídos
sussurram entre as tílias.
Coração caído.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Haikai do Viandante (4)



Árvore ao vento,
traço de sombra no monte.
Uma folha cai.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Poemas do Viandante


216. EXÍLIO

contar estrelas
e sob o império
da lua
calcular constelações
pequenos barcos
no mar
a dor do exílio
no descampado
da vida