segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Haikai urbano (62)

Carlos Botelho, Lisboa, 1936
Os velhos telhados
jazem presos ao Outono.
Os dias de Lisboa.
 

domingo, 27 de setembro de 2020

A Sarça Ardente - 39

Renato Torres, Vénus (tapeçaria)

Uma mulher cruza
a aura da tarde.
Vai vagarosa
no ondular do oceano.
Sereia de luz
no marulhar da memória.
Sombra de sílfide
no rumor das ondas.
Ave de fogo
na água nupcial
dos meus olhos.
 
Setembro de 202
0

 

sábado, 26 de setembro de 2020

Micronarrativa (40) O caminho da vida

Fernando Taborda, Estrada da vida, 1954
De súbito, descobriu aquilo a que todos chamavam o caminho da vida. Entrou nele e caminhou sem parar. Subia e descia, para tornar a subir e a descer. Rodava continuamente e nem quando sentia que tinha a cabeça para baixo e os pés para o ar se deixava tentar pelo desejo de abandonar a senda que tomara. Afinal, esse era o seu caminho e a sua vida.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Arqueologias do espírito 7

Anónimo pré-histórico, Caballo ejecutado en el IV Estilo (Portel)

Desçamos no espírito do homem para nos deparamos com a hora em que nele aflorou a possibilidade de se emancipar do férreo desígnio da determinação e pensar-se como livre. Talvez tenha sido naquele instante em que, pela primeira, vez se deparou com o galope livre do cavalo, com a sua leveza, a sua graça, o rápido pisar da terra para nela se mover, para ir e vir segundo o mais íntimo arbítrio. Livre é o que se move na paisagem com a beleza pura e quase alada de um cavalo selvagem.
 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

A pianista

Emmerico Nunes, sem título, 1908

Entre todos os salões que frequentei havia um especial. Nele, uma pianista dava um pequeno recital. Nunca passava de meia-hora. Todos diziam ser perfeita a sua técnica e grande o talento com que nos fazia imaginar as mais diversas cenas. Muitas vezes me senti numa paisagem bucólica ou experimentei a vertigem causada pelo perigo que nos espreita no mar ou no alto de uma montanha escarpada. A última vez senti-me um gato. O pior é que os outros convivas passaram a ignorar-me ou enxotavam-me com rudeza. Se lhes dirigia a palavra, clamavam que o gato não parava de miar. Mesmo a dona da casa chegou a pegar-me ao colo, o que me desconcertou, e fazia-me festas como se eu ronronasse. 
 

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Impressões 61. Invocação

Francisco dos Santos, Invocação, 1916
Não a voz que clama no deserto, mas aquela que rompe o silêncio da noite e chama sem parar, aquela que fende o cerco dos lábios e deixa as sílabas perderem-se no vendaval, aquela que pela aurora grita sobre a terra e ninguém a escuta. Essa é a voz de onde nasce, palavra a palavra, toda a invocação. 

terça-feira, 22 de setembro de 2020

A Sarça Ardente - 38

Caspar David Friedrich, Easter Morning, 1833

Desejo páscoas transbordantes
às palavras que a cruz
do tempo matou.

Que o túmulo onde dormem
se abra na aurora
e um anjo guarde o lugar vazio.

Ressurrectas irão em busca
da festa perdida
e os seus lábios dirão noli me tangere.

Setembro de 2020

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Diálogos morais 46. Perturbação

José Salgado Veloso, Amor e Psyche, 1891
- Sinto-me perturbada.
- Muito?
- Tanto.
- Compreendo. Acontece-me o mesmo.
- Também tu, então?
- Também eu, quem diria?
- Pensei que fosses mais resistente.
- E sou, mas também estou perturbado.
- Vamo-nos, então, vestir.
- Vestir?
- Sim, sim, vestir. 
- Porquê?
- A aragem fresca perturba-me. 
- É isso que te perturba?
- Sim. E se apanho uma pneumonia?
 

domingo, 20 de setembro de 2020

Haikai do Viandante (400)

JCM, Ilha do Baleal, 2020

De súbito, a rocha
abre-se ao mar de Setembro.
Espuma e água.

sábado, 19 de setembro de 2020

Meditação Breve (139) O fundo obscuro

Salim Dabbagh, Pintura 33S, 1968

Todos julgam saber o que é uma coisa e têm ainda a pretensão de conhecer de onde provêm as coisas com que lidam. No entanto, se se perguntar a proveniência delas, a dificuldade em responder torna-se de imediato patente. Porquê? Porque todos os seres que nos rodeiam provêm de um lugar difuso, de uma semi-obscuridade, de onde irrompem lentamente, ganhando contornos, até que o hábito, criando uma ilusão, as apresenta aos nossos olhos como realidades definidas.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

A jogadora de damas

Abel Manta, Jogo de damas, 1927
Ela estava na sala de jogos do clube. Deve conhecer esse género de instituição de província. Nunca a vira ali. Não foi uma súbita atracção. Entrou vagarosamente no meu círculo. Um dia, estarão a fazer cinco anos, virou-se para mim e, olhando para o tabuleiro de damas, perguntou-me se sabia jogar. Respondi que sim, tinha até vencido vários torneios. Óptimo, disse, vamos jogar. Qual será o prémio, perguntei. Se ganhar, casarei consigo. Apaixonei-me por ela nesse momento. Começou então o meu suplício. Todos os dias ela joga uma partida comigo. Além de mim, ainda defronta mais meia dúzia de pretendentes, a quem fez a mesma promessa. O que me mantém vivo é ela continuar solteira.  

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

A Sarça Ardente - 37

António Carneiro, sem título, 1919

Se sonhados os meus sonhos
te descessem na pele,
dormiria eternamente.

Faria do sono um albergue,
o rude resguardo
para a tempestade e a noite.

Sonâmbulo barco de breu
levar-me-ia ao porto,
à morosa mansarda de tuas mãos.

Setembro de 2020

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Histórias sem nexo 13. Bruxas de branco

Alexey Titarenko, Untitled, (White Dresses), St. Petersburg, Russia, 1995
De Bruna e de Brigite, as bravias bruxas de branco, brotavam brioches, broas e brócolos. Brutais, brocavam braços, braçadeiras e braceletes. Brandiam no breu, a toda a brida, brocados e brúgias. Ó brumas de bromato. Ó bramir da breca. Ó brometo de bruxedos. 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Meditação Breve (138) Arte

Fernando Calhau, sem título #80, 2000

Todos trazemos no mais recôndito do ser estranhos territórios e inusitadas paisagens. Dormem, desde tempos imemoriais, um sono profundo. São transmitidos de geração em geração, sem que aqueles que os transmitem ou os recebem se dêem conta, até que um dia acordam na cadência de um poema, nas linhas de uma pintura, no ritmo de uma peça musical.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Micronarrativa (39) O fantasma carbonizado

Philip Jones Griffith, Quang Ngai, Civilian victim, South Vietnam, 1967
Estava no lugar errado na mais imprópria das horas. A loucura desmedida dos homens, um clarão infernal descido dos céus, e tornei-me um fantasma carbonizado, alguém que perdeu o rosto e cujos olhos entraram na mais negra das noites. O meu nome? Eu não tenho nome.

domingo, 13 de setembro de 2020

Haikai urbano (61)

Nadir Afonso, Babilónia, 1970
Pura Babilónia
vinda no vento da noite.
Promessa esquecida.

sábado, 12 de setembro de 2020

A Sarça Ardente - 36

Diogo de Macedo, Eva, 1923

Deixo-te a esmeralda da nostalgia
como herança
para os dias de Dezembro.

Entrego-te o que ganhei
e o que perdi
na névoa da noite.

Escuto-te entre limoeiros,
para receber
a graça de uma cereja.

Ofereço-te o rumor da melancolia
enrolado nos dedos
com que te abro ao silêncio.

Agosto de 2020

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Meditação Breve (137) Espera

Edward Burne Jones, Dorigen de Bretaña esperando el regreso de su marido, 1871
Em toda a espera por algo favorável existe uma combinação do desejo, da fé e da incerteza. Desejo de que o que se espera chegue. Fé na realização do desejo. Dúvida sobre essa chegada. A tensão entre fé e dúvida intensifica o desejo pela possibilidade da sua não consumação. A espera é, deste modo, uma modalidade de dilatação do tempo, pois o desejo intensificado sofre cada ainda não como se este anunciasse a eternidade de um nunca.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Impressões 60. O rio

Dordio Gomes, O rio Douro , 1935

Descido dos céus, um silêncio azul toca a superfície das águas. Então, o rio não é um rio, mas uma sombra divina a deslizar na Terra, o reflexo fugidio do paraíso perdido, o murmúrio de um coração preso ao terrível mistério de tudo o que é.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Diálogos morais 45. O dever

Bernardo Marques, Despedida de soldado, 1920
- Vais-te embora?
- O dever chama-me.
- O dever?
- Sim. O dever militar.
- Demoras muito?
- Não sei.
- Quando tiver saudades e te chamar, voltas?
- Tu não és o dever.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Arqueologias do espírito 6

Francisco de Goya, La hoguera

Para o homem, como para qualquer animal ou planta, o fogo é uma terrível ameaça. Contudo foi ele que, ao ser domesticado, se tornou a protecção que permitiu à espécie defender-se dos predadores e persistir na existência. Essa duplicidade é captada, simbolicamente, nas chamas do inferno e na sarça ardente, onde o Deus de Israel habita. A perda e a salvação, ambas residem no fogo. O fascínio por ele é de tal maneira constitutivo do espírito que o amor, o supremo sentimento, é visto como fogo devorador. 
 

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

A Sarça Ardente - 35

Ana Peters, Número seis, 1999
Fecho a janela sobre o mar.
Pelos vidros vejo
o voo das gaivotas,
as águas batidas
pelo vento,
limos e algas
perdidos no areal.
Um barco desliza
para o porto.
Leva-me em silêncio
preso ao âmbar da aurora.

Agosto de 2020

domingo, 6 de setembro de 2020

Histórias sem nexo 12. Sílfide

Olavo d'Eça Leal, sem título, 1931
Serena, Sílvia sentou-se. De súbito, a saia subiu. Seda ou cetim? Sem o saber, saltou do assento e saiu para o sacrifício do sol. Da sombra, sussurraram: Sílvia, Sílvia. Silêncio. Seria a Sílvia? Seria a Sara, a Selma, a Silvana, a Sofia, a Susana? Só uma sinuosa e singela sílfide.

sábado, 5 de setembro de 2020

Haikai do Viandante (399)

Tomás de Mello, Paisagem, 1955
Árvores despidas
 pelo vento frio do Outono
chamam o Inverno.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Impressões 59. O tocador

Nejar Salim, Rababa Player,1962
Preso no mistério da música que o atormenta, o tocador fia um cordão de aço que, com vagar, prende o corpo e o espírito de quem se deixou tocar pelo som saído do silêncio de suas mãos.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Os alegres cantores

Lucien Aigner, Paris, 1930
Primeiro, comiam e bebiam. Depois, bebiam e conversavam. De seguida, bebiam apenas. Por fim, cantavam estranhas canções e riam. Via-os todos os dias. Quando o concerto acabava, sempre com um Hosana, iam-se embora, em fila encabeçada pelo mais jovem Desapareciam do meu horizonte. Foram anos a fio. No dia em que começou a segunda guerra, não vieram. Nunca mais voltaram. O enigma nunca deixou de me atormentar. Quem seriam? Cheguei a imaginar que eram anjos, mas sou destituído de fé e acabo sempre por sorrir da conjectura. Por vezes, porém, oiço os seus cânticos. Nos dias em que a existência me é mais insuportável, as suas vozes descem sobre mim. Respiro fundo e a vida continua. 

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

A Sarça Ardente - 34

Vicente Vela, A las cinco de la tarde, 1990

O deus dos campos veio pela tarde.
Sentou-se no cansaço
polvilhado pela poeira do dia.

Incógnito, demorou-se no jardim.
Colheu a água das acácias,
a luz dos lírios, o vento das violetas.

Espera-o na noite de cristal
a deusa da sombra
tecida em murmúrios de seda e cetim.

Julho de 2020

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Micronarrativa (38) Uma mulher de autoridade

Gjon Mili, Double exposure of models wearing hat with heavy face veil, 1946
Subitamente, o rosto começou a desdobrar-se. Primeiro, apenas uma leve impressão, uma ilusão de óptica, dir-se-ia. Depois, uma pequena nuvem ganhou contornos ainda mal definidos, sugerindo olhos, boca, nariz. Por fim, um novo rosto juntou-se ao primeiro. Se as conversas lhe agradavam usava o original. Se a contrariavam, era com o novo que respondia ameaçadora. Nunca deixou de ser obedecida.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Arqueologias do espírito 5

Eduardo Nery, Escadas, 1970
O uso da escada terá sido antecedido pelo recurso a outros objectos que lhe fizeram a vez. No entanto, ela inscreve-se como um símbolo arquetípico no espírito humano. Nela se combina o impulso para ascender e a sabedoria tácita do esforço. Capturado no corpo, preso à terra, envolto nas necessidades da carne, o homem transporta no fundo de si a necessidade de se elevar. Uma experiência muito arcaica ter-lhe-á mostrado que, não sendo ave, só o poderá fazer degrau a degrau, numa escada sem fim. 

domingo, 30 de agosto de 2020

Meditação Breve (136) Café

Diogo de Macedo, sem título, 1923
O café, no tempo em que era a pedra angular de toda uma cultura pública, existia como um espaço onde as solidões se partilhavam, um portal que ligava a realidade e o sonho. Em rumorosos silêncios ou em sufocados ruídos, nele se alimentavam os desejos da carne, os devaneios da imaginação, os eflúvios do espírito.