quarta-feira, 19 de agosto de 2020

A rapariga do bar

Querubim Lapa, Bar, 1946
Frequentava um bar onde existiam raparigas para dançar com os clientes. Havia uma, esquiva e enigmática, que me fazia arder de desejo. Dançava apenas e nunca permitia sequer que a olhassem nos olhos. Ao contrário das outras, nunca saía acompanhada. Uma tarde, os seus olhos pousaram nos meus. Quase ceguei. Quando saiu, aceitou a minha companhia. Propus-lhe que viesse a minha casa. Anuiu. Mal fechei a porta, beijei-a. Entregou-se com volúpia aos meus lábios. Enquanto dançávamos, despia-a. Ao cair a última peça, descobri que não houvera corpo algum dentro daquela roupa. Nunca soube que lábios beijei ou que olhos me queimaram as entranhas. Uma voz dizia, diz ainda: eu sou a tua loucura. 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

A Sarça Ardente - 31

Thomas Joshua Cooper, Cabo Espichel, 1994

Parto para porto desconhecido.
Espera-me o Outono
e um cortejo de folhas mortas.

Parto para a ilha do esquecimento.
Escrevo o nome
no coral das cordas do coração.

Parto para a terra da abundância.
Escuto aquilo que é
na sombra do silêncio de uma rosa.

Julho de 2020

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Arqueologias do espírito 3

Manuela Marques, Espace 3, 2016
Chegados ao termo de um longo corredor sobressaltamo-nos. Uma porta interrompe a viagem e institui um enigma. Não é sem temor que a abrimos, pois não sabemos com que mundo nos vamos deparar, se benfazejo, se ameaçador, se desafiante. Cada porta, e muitas são as suas espécies, não é mais do que a projecção das portas com que deparamos quando viajamos dentro do nosso espírito. Seguimos a via e, a certa altura, somos confrontados por uma porta. Abri-la ou não é uma decisão de vida ou de morte. 

domingo, 16 de agosto de 2020

Diálogos morais 43. Expectativa

Emmerico Nunes, sem título, 1913
- O que estás a fazer deitado no chão?
- Chiu! Não quero acordar-te.
- Não vês que já acordaste.
- Não, não vejo nada.
- Pois não.
- Não passas de uma fingida.
- Como?
- Finges que estás a dormir para me expiar.
- Estás bêbado. Para te expiar? Ora... Ora...
- Sim, para que mais haveria de ser?
- Para ver se restou alguma coisa para mim.

sábado, 15 de agosto de 2020

Haikai urbano (59)

João Hogan, Casario de Lisboa, 1952
Casario de Lisboa,
sombra duma sombra antiga.
Pólen da memória.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Arqueologias do espírito 2

José Salís, Alta mar, 1920
O lugar onde um deus irado tem o reino despótico e a morada luxuosa, esse mesmo sítio onde barcos e homens desaparecem para sempre, é um reflexo do pélago perturbado que existe no mais fundo dos seres humanos. Olhamos o oceano, esmagados pela sua desmedida, temerosos das suas armadilhas, inquietos pelo sopro do vento que ondula as águas, e sentimos um frémito na fímbria do que somos. Se em nós se fizer silêncio, depressa descobrimos todos os perigos que há no recôndito da nossa alma.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

A Sarça Ardente - 30

Tal-Coat, Glauque, 1972
As dunas escondem o ir e vir do oceano.
Paredes de areia cobertas de cactos,
erva rala a tremer ao vento.

Alguém caminha por elas, solitário,
procura uma pedra, um pássaro,
a senda que leva ao poente.

As gaivotas voam como se cantassem.
Desenham círculos e espirais,
numa partitura de sombras e seixos.

Ao longe, ecoa o choro das sirenes.
Os pescadores são fantasmas,
balançando na música do nevoeiro.

A tarde rasga o lençol que vela a noite.
Do porto, saem os barcos.
Procuram cardumes de rosas no jardim do mar.

Julho de 2020

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Impressões 57. A mulher que dança

Gjon Mili, Study of nude female dancer. 1942
Ao dançar, a mulher deixa de ser mulher, perde a alma que a liga ao mundo humano e torna-se ave e anjo, cujas asas lhe nascerão na hora em que a gravidade queira fazê-la cair no imenso lodaçal da terra.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Micronarrativa (36) Amor trágico

Odilon Redon, Dos amantes en una barca, 1902
Foi um amor trágico, não porque os amantes morreram em nome de uma paixão impossível, mas porque fugiram para longe da convenção, consumaram o seu amor e logo descobriram o cansaço um do outro que nunca mais os abandonou.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Haikai urbano (58)

Francis Smith, Lisboa - Alfama, 1920
Gente sobe e desce
entre o casario de Alfama.
Ecos de Lisboa.

domingo, 9 de agosto de 2020

Impressões 56. A mulher de fumo

Jiri Georg Dokoupil, Desnudo de la ventana, 1989
Ao espreitar despida pela janela, a mulher torna-se incerta. O corpo esfuma-se e não é mais do que um esboço que a realidade atenuou, o fumo inquieto deixado pelo fogaréu rápido do desejo, pelo lume arrefecido do amor.

sábado, 8 de agosto de 2020

A Sarça Ardente - 29

Richard Diebenkorn, Ocean Park n.º 96, 1977
Traineiras rompem as águas,
voltam ao porto
carregadas de peixe,
enredadas em mistérios.

Sento-me no âmbar das areias
e deixo o murmúrio
das ondas
serenar em mim.

Junho de 2020

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Os jogadores de damas

Júlio Resende, Jogar às Damas, 1945
O que afligia o taberneiro era eles nunca beberem vinho. Não é que não fizessem despesa. Eram até clientes melhores que todos os outros, mas o seu negócio era vender vinho e eles acabavam por desprezar aquilo para que vivia. Chegavam à taberna, sentavam-se diante do tabuleiro e jogavam damas durante duas horas. Todos os dias. Bebiam café e refrigerantes. Comiam sempre qualquer coisa. Eram parcos em palavras, mas não hostis. Os jogos entre eles eram épicos. Tinham uma concentração enorme que os raptava do que se passava ao redor. Chegada a contenda ao fim, despediam-se e saíam. Não havia noite em que não fossem encontrados completamente embriagados, arrastando-se pelas ruas da aldeia.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Arqueologias do espírito 1

George Pierre Seurat, Forêt à Pontaubert, 1881
Nunca a floresta deixa de fascinar os homens. É o lugar onde se escondem os perigos ancestrais e, ao mesmo tempo, o abrigo perante o avanço da superficialidade que a vida civilizada traz consigo. Aquilo que toca os homens, no mais secreto que há neles, é a sensação de que viver nela, percorrê-la, conhecer-lhe os caminhos e as clareiras os torna mais autênticos, como se a autenticidade nascesse do sombrio, da súbita luz que o ramalhar do vento deixa passar, do húmus que cobre a terra.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Haikai urbano (57)

Nadir Afonso, Lisboa
 Tão leve Lisboa
nas asas sombrias do corvo.
Água, vento e luz.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Histórias sem nexo 10. Corpete

Horst P. Horst, Mainbocher Corset, 1939
Cresce, comedido e comovido, no côncavo colorido de um crepitante concerto, um corpo composto e comandado pela cruel crueza de um corpete.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

A Sarça Ardente - 28

Lucio Fontana, Ambiente spaziale (Labirinto bianco), 1968

Desenho as pétalas brancas
do porvir.
Com elas componho flores
e uma promessa
de água a correr.

Imóvel, enfrento a noite
e o futuro.
Levo na mão o peso
da luz
e a cicatriz do silêncio.

Abril de 2020

domingo, 2 de agosto de 2020

Meditação Breve (134) Fortuna

Dorothea Lange, Unemployed men stand in line to get a free dinner, 1932
Nunca sabemos por que razão se está ou não na terrível situação de ter de recorrer à caridade. Há quem pense que a razão está na injustiça social, há quem julgue que isso se deve ao mérito pessoal ou à falta dele. Talvez seja apenas uma questão de sorte e de uma disposição benevolente da deusa Fortuna. Esta é, para muitos, a pior das explicações, mas isso não faz dela a mais inverosímil.

sábado, 1 de agosto de 2020

Homicídio

Pablo Picasso - La muerte de Casagemas, 1901
Matou-o. Não há aqui um dr. Jekyll que se transforma em mr. Hyde. O caso é mais complexo do que a simples metamorfose. Tratou-se de um acidente ainda no outro mundo, um erro na distribuição. Duas almas, em versão masculina, foram enviadas para o mesmo corpo. Desde o nascimento que conflituam. A situação azedou quando um deles decidiu, agora que iria descobrir os prazeres do sexo, que o corpo seria apenas dele. Não se via a repartir os segredos de Vénus com aquele estranho com quem partilhava o corpo, mas não a alma. Este vendo-se ameaçado, não hesitou. Apontou a pistola à cabeça e matou-o. Não foi um crime passional, mas um acto de legítima defesa.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Meditação Breve (133) Espaço

Ansel Adams, Sand Fence, Keeler, California, c.1948
Como outros animais, também o homem vive fascinado pela limitação do território. Cercas, paliçadas, fronteiras, muros, tapumes, sebes, não têm fim os truques e dispositivos que se inventam. Depois, o tempo ou a tempestade devolvem o espaço à sua inteireza, libertando-o dos sonhos e pesadelos humanos.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Impressões 55. Vestígios desfocados

Jaime Morera y Galicia, Plaza de la iglesia de Santa Coloma de Queralt, 1887
O modo como as coisas eram no passado é tão estranho que mesmo os indícios mais fiéis, aqueles que se aprimoram para registar a realidade, não passam de vestígios desfocados, que um dedo cansado deixou sobre uma folha suja e gasta de papel pardo.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

A Sarça Ardente - 27

Ángel Orcajo, Arquitecturas pintadas, 1988

Sento-me sob a cinza do dia
e olho a cidade.
Cães dormem pelos passeios
e ao ouvir murmurar
vejo o navio da Primavera.

Uma sirene rasga o silêncio,
enche-o com a pedra
maculada da aflição.
Acácias e tílias, jacarandás,
canções na voz das cotovias.

Abril de 2020

terça-feira, 28 de julho de 2020

Haikai urbano (56)

Carlos Botelho, O Tejo, 1967
Lisboa sonhada
em ruas de cor e silêncio.
Murmúrios de luz.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Micronarrativa (35) O desejo

Emil Otto Hoppé, Seated Woman in Profile, 1928
Nem sempre o desejo se manifesta em turbilhão. Sentada, uma ânsia silenciosa trabalha dentro dela. Toma-lhe conta do corpo, tinge-lhe a alma e torna-se espírito. Ela apenas espera sentada e olha ao longe, mas nesse olhar mistura-se já o incêndio e o fogo que o apagará.

domingo, 26 de julho de 2020

O mordomo

Susan Rothenberg, Half and half, 1985-87
Chamávamos-lhe o mordomo, não por chiste, mas porque se apresentou assim. Quando voltou do estrangeiro, após reformar-se, ninguém o reconheceu. As maneiras que adquirira estavam nos antípodas das que levara daqui. Contava muitas histórias. Tinha servido uma condessa, onde fizera a formação, dizia, e depois um casal de artistas de Hollywood. Cultuava-os a ambos. Sempre pensámos que eram mentiras. Um dia, porém, chegaram aqui, à aldeia, a condessa e o casal de artistas. Ao vê-los, ficou em pânico. A quem servir agora? Foi aí que descobrimos o seu génio. Dividiu-se em dois. O tronco e a cabeça serviam os artistas, a parte debaixo, a condessa. Só nessa altura acreditámos que ele fora realmente um mordomo. 

sábado, 25 de julho de 2020

Diálogos morais 42. Falta de sono

Alfred Eisenstaedt, Woman napping among lunchtime
loungers relaxing at base of statue at New York Public Library, 
1944
- Queres um bolo?
- Sim, obrigado.
- O que tem ela para se isolar?
- Está a dormir.
- Estará a fazer dieta?
- Também devíamos, a continuar assim ninguém olha para nós.
- Não podemos fazer.
- Não?
- Não temos sono.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

A Sarça Ardente - 26

Fernando Lerín, sin título, 1963

Os dias tão devagar se deixam ir
levados pela cal sombria do tempo.
Demoram-se em esperas e delongas,
em conversas e súbitos silêncios.

Evitam a canícula fervente,
o Verão a trará no calendário,
a seda que na escarpa fria se tece
para que logo a noite seja dia.

Apressada demora a tudo move,
o mundo tão parado ainda corre.
Entre os dedos as águas e os ventos.

Vindo pela mudez da madrugada,
exausto, oiço a voz que não se vê
num fogaréu de luz, na sarça ardente.

Abril de 2020

quinta-feira, 23 de julho de 2020

A sonhadora

Imogen Cunningham, The Dream, 1910
Sentava-se todos os dias na mesma cadeira. Voltada para trás, segurava-se ao encosto e fechava os olhos. A luz lateral iluminava-lhe parte do rosto. Passada uma hora, levantava-se e saía. O que se passava nela não sei. Posso conjecturar, mas uma boa conjectura é mais autêntica que uma descrição factual. Sonhava. Sonhava sempre o mesmo sonho, não numa pura repetição do mesmo, mas como aquelas pessoas que se aventuram numa gruta inexplorada. Cada dia vão um pouco mais longe, antes de voltarem para o ar livre. Era assim que ela sonhava. Um dia, porém, não voltou do sonho. Perdeu-se nele e não tornou a levantar-se. Está ali há décadas. Espera por quem a traga para fora da gruta que sonhou. [23/7/2020]

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Histórias sem nexo 9. Ninfas

Emile Bernard, After the Bath, the Nymphs, 1908

Novembro. Nuas, as ninfas nadaram sob nuvens de níquel e nácar. Nenúfares da noite, níveas noivas que nenhum Narciso núbil navegará.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Meditação Breve (132) Ruínas

Karl Schmidt-Rottluff, Casa derruida, 1930
Há no coração do homem tanta nostalgia que, ao ver um mundo em ruínas, se ergue no peito um lamento e o espírito precipita-se para a elegia. Toda a ruína, porém, é mais do que um mundo que acabou. É a possibilidade de erguer um outro.