segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Poesia do Viandante (741)

Darío Villalba - Árbol Eléctrico II (1996)
741. a quarta árvore

a quarta árvore
trazia um
outono nos braços
embalava-o
na erva
da ramagem
soprada
pela
verdade do vento

(29/12/2016)

domingo, 15 de setembro de 2019

Haikai do Viandante (379)

Max Baur, From his series 'Studies with the camera', 1940-49
No silêncio poisa
o barco que te espera.
Secreta harmonia.

sábado, 14 de setembro de 2019

Meditação Breve (110) Curiosidade

Elliott Erwitt, Chateau de Versailles. Yvelines, France, 1975
A curiosidade é um animal esquivo e de desejo inclinado. Louvam-na como uma virtude. Se tivesse para isso o poder colocá-la-ia na lista das grandes perversões. Não é a presença que atrai o olhar e chama pelo coração, mas a ausência que abre a porta para que a mancha negra da curiosidade entre por ela.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Impressões 41. Mães

Alexander Rodchenko, Portrait of Mother, 1924
As mães são assim. Envelhecem escondidas nos corpos dos filhos. Quando se dá por elas, a pele está franzida, a carne flácida e os olhos impotentes para ver a realidade, mas continuam a ser mães, presas à glória imperecível da sua maternidade.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Impressões 40. Noites

Ara Güler, Traffic on the old Galata Bridge, Turkey, 1956
As noites cortadas pela luz dos faróis e dos candeeiros públicos são a casa onde habitam os fantasmas que, em silêncio, nos atormentam durante o dia. São manchas indecisas de luz e trevas, grandes telas onde pintores desconhecidos pintam as sombras, súbitas ameaças que vindas das águas ocupam, até ao amanhecer, a terra firme. 

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Poesia do Viandante (740)

Darío Villalba - Árbol Eléctrico I (1996)
740. a terceira árvore

a terceira árvore
tinha
uma vocação
                assassina
inscrita na
seiva selvagem
a borbulhar em botões
na raiva dos ramos

(29/12/2016)

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Meditação Breve (109) Trelas

André Kertész, MacDougal Alley, New York City, 1977
Uma trela une o homem ao cão. Sem ela perder-se-iam um do outro. Com ela guiam-se, intermitentemente, um ao outro. Também os seres humanos desenvolvem trelas simbólicas que os unem entre si. O mal começa quando a intermitência do que guia se perde e uns tornam-se pastores e os outros ovelhas de um numeroso rebanho.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Haikai urbano (50)

Pierre Bonnard, La Place de Clichy, 1912
A praça fervilha
no pulsar da multidão.
A cidade canta.

sábado, 7 de setembro de 2019

O sal do silêncio (26)

Julia Margaret Cameron, Woman in Robes Reading a Book, 1870
Oh o abandono com que te entregas à leitura e deixas cair a mão sobre a perna. Pelos teus olhos desfilam mistérios, crimes, pequenas traições que um autor esquecido pelos dias teceu. Recolhes tudo isso no palácio do teu silêncio, para que mais tarde te rumoreje no ventre, te murmure no coração.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Diálogos morais 22. No paraíso

Pierre Bonnard, Le paradis terrestre, 1916-20
- Estou nua e tenho frio.
- No paraíso não sabemos o que significa estar nu, nem o que é o frio ou o calor.
- Desejo-te, o meu corpo estremece se penso em ti.
- No paraíso nada nos falta, não temos o que desejar.
- A minha alma é uma girândola de anseios, sacia-me.
- Pensas que sou uma serpente?

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Poesia do Viandante (739)

Darío Villalba - Árbol Bergman II (1976)
739. a segunda árvore

a segunda árvore
nascia
na corda presa
à roldana
poço de água
a arder
no húmido húmus
da urgência

(29/12/2016)

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Diálogos morais 21. Uma questão de nome

Ruth Orkin, Tirza in the Mirror, 1952
- És parecida comigo.
- Fui feita à tua imagem e semelhança.
- Podias vir brincar para aqui.
- Não posso sair de casa, mas tu poder entrar pelo espelho.
- Impossível.
- A tua mãe não deixa? Tens  medo de uma casa desconhecida?
- Não. Nada disso é problema. Só não me chamo Alice.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Haikai do Viandante (378)

George Inness, Días de verano, 1857
O Verão declina
na sede dos animais.
Silêncio e água.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Diálogos morais 20. Asas

Gordon Parks, Ballerinas Renee (Zizi) Jeanmaire & Collette Marchand of the Ballet de Paris company. NY, 1949
- Se tivesse asas, também me elevaria como tu.
- Mas eu não tenho asas.
- Silêncio, se não cais.

domingo, 1 de setembro de 2019

Aparição

Sergey Borisov, Russia, 1988
Houve apenas duas testemunhas. Uma morreu passado dias, a outra sou eu. Na fotografia que correu mundo, nunca se soube quem a tirou, sou o que está perfilado. Sobre o acontecido, uns diziam que a fotografia era falsa, outros que se estava perante uma assumpção aos céus, outros que era a chegada de um emissário de Deus. Ninguém estava certo. A fotografia era verdadeira, mas a pessoa, se era uma pessoa, nem descia nem subia aos céus. Formou-se ali mesmo diante de mim. O ar tornou-se mais espesso, ganhou contornos, até que se modelou como um ser humano. Pairou alguns minutos à minha frente, depois caminhou pelos ares, dobrou uma esquina. Não há quem saiba o que lhe aconteceu.

sábado, 31 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (738)

Darío Villalba, Árbol Bergman I (1976)
738. a primeira árvore

a primeira árvore
um fogo
no ritmo dos ramos
nos ninhos
esquecidos
por pássaros de poeira
no incêndio do inverno

(29/12/2016)

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O sal do silêncio (25)

Philip Jones Griffith, Group of school children with their teacher waiting to board a bus. Liverpool,  1952
O silêncio que cresce nos rostos e transpira para o mundo traz uma mensagem feita de rugas, sorrisos tolhidos nos lábios, olhares abertos para o invisível. Não há luz que o ilumine nem trevas que o obscureça. É um silêncio habitado por larvas inquietas que nele encontram o sossego do seu casulo.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Impressões 39. Encarnação

Todd Webb, Broadway at Wall Street, New York, 1959
Sob a luz sonâmbula do candeeiro, sombras ganham carne e figura, um corpo, que logo se esconde na fantasia ociosa das roupas. É uma dança de uma tribo antiquíssima que então se vê, um rodopiar com pontos de fuga, o exercício sagrado da encarnação.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Pintura e haikus (12)

Michel Larionov, Calle con farolas, 1910
Dédalos de luz
brilham secretos na noite.
Rua fria e lívida.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

A espera

Edward Hopper, Summertime, 1943
Tinha-se apaixonado loucamente por um desconhecido, num daqueles dias de Verão em que tudo parece possível. Ele disse-lhe o nome, Godot, e que o esperasse à porta de casa. De chapéu na cabeça para enfrentar o sol, ela assim fez. As horas passaram, sem que o amado chegasse. Ela, porém, não desistiu. Passaram semanas, meses. O Verão declinou e o Outono deu lugar ao Inverno. O seu amor era de tal maneira grande que não arredou pé. Traziam-lhe comida e agasalhos, ela porém só tinha olhos para o fim da rua. As grandes chuvas não a intimidaram. Aquela era agora a sua vida. Quando Godot chegou, ela não era mais que uma fria estátua de pedra, coberta pelos grandes nevões de Fevereiro.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (737)

Tal-Coat, Vuelo, 1973
737. uma ave de tinta

uma ave de tinta
negra
voa no vigor
da brancura
no céu de azoto
no cordel cardado
pelas nuvens de novembro

(29/12/2016)

domingo, 25 de agosto de 2019

Diálogos morais 19. Os gémeos suicidas

Rodney Smith, Twins Leaning Outward, 1997
- Será muito fundo?
- Não me parece.
- Talvez seja arriscado mergulhar aqui.
- Sim, é um risco. Nada nos garante que não nos salvemos.
- Se eu morrer, como poderei ter a certeza que também tu morreste.
- Devolvo-te a pergunta.
- É um enigma irresolúvel. Saltas?
- Claro que sim, mas tenho um problema. O fato foi tão caro.
- Eu também salto, mas por nada deste mundo quero estragar o chapéu.
- Poderíamos tirá-los, fato e chapéu.
- Impossível, como, sem eles, saberíamos que somos nós?
- Tens razão. Aliás, o mar não me parece nada fundo.

sábado, 24 de agosto de 2019

Diálogos morais 18. Não

Dorothea Lange, Consumer relations, San Francisco, 1952
- Vamos mais depressa, anda.
- Não.
- Dá-me a mão.
- Não.
- Queres perder-te?
- Não.
- Queres ir ao colo?
- Não.
- Gostas da mamã?
- Não.
- A mamã é má?
- Não.
- Só sabes dizer não?
- Não.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Meditação Breve (108) O peso do passado

Gertrude Käsebie, Indian Chief, c. 1901
Sempre que se olha pausada e longamente para o futuro, o que dá profundidade e exactidão ao olhar é o peso que o passado deposita nele. Sem uma tradição, os olhos perdem-se na superfície móbil da existência e são incapazes de perscrutar o amanhã.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

O sal do silêncio (24)

Paul-Emile Pajot y Gilbert Pajot, A Concarneau, va- et- vient des bateaux de pêche
Feitos da matéria dos sonhos, os barcos deslizam nas águas. Vão e vêm, empurrados pelo vento, sonhados por sonhadores dedicados, que se entregam ao sono durante o dia, para que os pescadores não desesperem retidos em terra, sem que um sonho lhes mova a embarcação.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Poesia do Viandante (736)

Manuel Viola - Ardiendo (1973)
738. um fogo no pórtico

um  fogo no pórtico
a sombra
ergue-se
na erva do estio
e adormece
na água da aurora
no silvar das cigarras

(29/12/2016)

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Transfiguração

Giovanni Segantini, A messa prima, 1884-85
Era o mais popular dos sacerdotes que a paróquia já tivera. Todas as manhãs, bem antes da primeira missa, subia as escadas da Igreja e abria-a. Aos pobres, dava o que tinha. Vivia com pouco, apesar do muito que lhe davam. Aos ricos, ajudava-os a suportar o fardo do egoísmo, abrindo caminhos insuspeitados nos seus corações. Não havia quem não gostasse dele. Num domingo, porém, não o viram subir as escadas. A porta da Igreja, chegada a hora da missa, estava fechada. O tempo passava. Procuraram-no em casa. Não estava. Forçaram a porta do templo. Por trás do altar, ele pendia, sotaina a escorrer sangue, de uma cruz tosca. O rosto era o dele, mas nunca se parecera tanto com Cristo como naquela hora.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Micronarrativa (24) Aprendizagem

Stephan D. Colhoun, Laughing woman with a cup, around 1955
Não conteve o riso e explodiu numa gargalhada. Não sei o que mais me feriu, se o riso ostensivo, se o seio que, com o ímpeto, se desvelou. O som dessa explosão ecoou durante muitos anos dentro de mim. Talvez fosse apenas a voz da sabedoria que descia sobre mim. Naqueles dias, ainda não sabia quão ridículo é todo o amor.

domingo, 18 de agosto de 2019

Haikai do Viandante (377)

George Pierre Seurat, A Gray Day at the Grande Jatte, 1888
Cinzas matinais
caem nas águas do rio.
Voa o Verão.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Impressões 38. Memórias ancestrais

Martin Munkacsi, The Rent-Barracks, Budapest, c.1923
Por vezes, somos transportados para a infância. Como num sonho onde se é levado para o paraíso, damos os mãos e fazemos uma roda. Ao rodopiarmos cada vez mais rapidamente, uma música desprende-se das esferas celestes e escutamos velhas canções nascidas há muitos séculos. Sabemos cantá-las, pois em cada um de nós vive a memória ancestral da humanidade.