sábado, 18 de outubro de 2014

Derrubar o muro

JCM - Distopia (The Wall) (2007)

O pior na viagem são os muros. Não são apenas divisórias, linhas de fronteira e de fractura de territórios. São formas de oclusão, de fechamento, de incapacidade de perceber os outros. E quem não é capaz de ouvir os outros será capaz de ouvir esse totalmente Outro que fala para lá de todos os muros? Será capaz de discernir o seu chamamento? A viagem é também um derrubar de muros, uma purificação do espaço, um refazer de geografias. Para quê? Para que possamos escutar o outro e na voz desse outro escutar a voz que chama dentro de mim.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Poemas do Viandante (480)

Ferdinand Hodler - Tristeza (1892)

480. ouvir-te na terra triste

ouvir-te na terra triste
da volúpia

e adormecer nos braços
da noite

como se aguardasse
num sonho

a água da tua voz no calor
do verão

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Uma composição

Alexander Mikhailovich - Composição (1943)

Muitas vezes o viandante julga perder-se no caminho. Entra numa senda, depois noutra e ainda noutra. O espírito é tomado pelo pânico que todo o labirinto traz consigo. Tudo isso não passa, porém, de uma questão de perspectiva. Vistos de perto, esses caminhos que se cruzam e bifurcam parecem, de facto, constituir um labirinto, mas se o viandante se dispõe a subir a montanha tudo se apazigua e, com o progresso da subida, começa a ganhar sentido, como se fosse uma deliberada composição.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Haikai do Viandante (208)

JCM - Mitologias (firebird) (2007)

pássaros de fogo
no silêncio do inverno
assim me comovo

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Da função do sonho

Noriko Kiyozuka - Cena de um sonho (1976)

Há duas maneiras bem distintas de considerar o sonho, tomando-o na sua polissemia, na vida espiritual dos homens. Esta pode ser vista como um sonho, no sentido de um corte com a realidade, aquela realidade que se abre aos homens no estado de vigília. Aqui, porém, o sonho toma o sentido de uma utopia, de uma ruptura com o concreto da vida humana. É uma ilusão alienante da situação em que se vive, como se o estado de vigília desse lugar a uma espécie de sonambulismo. Um segundo modo prende-se com a própria actividade onírica. O sonho surge como uma metamorfose da realidade, a qual se constitui em enigma. Esta função enigmática do sonho abre-se à meditação. Melhor, ela apela à meditação para que aquele que medita encontre resposta aos enigmas que ele  a si mesmo coloca. Estes enigmas não são outra coisa do que encruzilhadas no caminho que segue.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Tudo é uno

Kenneth Noland - Caminho interior (1961)

Um dia o viandante descobre a futilidade de dividir a vida em vida do corpo e vida do espírito, em caminho exterior e caminho interior. Não há dois caminhos como não há duas vidas. Tudo é uno. Os passos que dou no mundo são ainda uma aventura do espírito e aquilo que vejo, por objectivo que seja, não deixa de ser a projecção do meu espírito.

domingo, 12 de outubro de 2014

Perdido no nevoeiro

JCM - Mitologias (presenças) (2014)

Perdido no nevoeiro, o viandante sente presenças reais, mas não consegue determinar-lhes os contornos nem descobrir o caminho que seguem. E ele não é diferente dessas presenças. Dias após dia, ano após ano, caminha, mas raramente o nevoeiro se levanta e o caminho se mostra nítido e luminoso. Viver no nevoeiro é o seu estranho destino. Sente presenças reais à sua volta e aspira a que, um dia, a luz rompa a densa muralha da névoa.

sábado, 11 de outubro de 2014

Poemas do Viandante (480)

JCM - Mitologias (passagens) (2014)

480. adormeço no lugar onde

adormeço no lugar onde
estranhas passagens

evocam sobre a água
noites de estio

e com elas o velho sonho
de antigas viagens

de barcos incendiados
no fogo do rio

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Poemas do Viandante (479)

JCM - Mitologias (a luz e as trevas) (2006)

479. deixar o outono destilar

deixar o outono destilar 
ao anoitecer

e cantar o destino avaro 
pelas ruas

deixar que o perfume desça
ao amanhecer

e as minhas mãos se abram
nas tuas

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Algumas questões cruciais

JCM - Black & White Dreams, Belmonte (2008)

Será o cristianismo, como pretende Nietzsche, uma forma de ressentimento e uma negação da vida? Esta pergunta tem outra como resposta. Como poderia uma religião negadora da vida criar a civilização com maior vitalidade e onde a vida foi mais exuberante na sua afirmação e nas suas realizações? E a esta pergunta duas outras se devem juntar. Como pôde um símbolo de morte, a cruz, tornar-se semente de vida, criatividade e realização existencial plena? Como compreender, com a diminuição do influência do cristianismo e da perda de sentido simbólico da cruz para muitos ocidentais, e apesar do poderio e a riqueza actual das sociedades pós-cristãs, que estas sejam percebidas como estando em profunda crise e ameaçadas de morte?

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

A raiz luminosa

JCM - Raiz e Utopia (a descida da luz) (2007)

Muito facilmente se toma a raiz como o símbolo daquilo que liga o homem ao que é obscuro, à profundidade tenebrosa dos elementos telúricos, ao que se esconde e não se deve, em si mesmo, manifestar. Mas se as raízes do homem estiverem não nas trevas mas na luz, como compreender então a simbologia da raiz? A raiz será, nesse caso, a luz que desce para iluminar até aquilo que há de mais obscuro, será uma raiz luminosa.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Haikai do Viandante (207)

JCM - Mitologias (sea and sky) (2014)

entre mar e céu
a  manhã de nevoeiro
luz sombra e véu

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Do aparente improviso

Albert Bloch - Impromptu (1959)

Não, não é improviso aquilo que, na viagem, pode ter essa aparência, por ausência de planeamento prévio. Não se trata de responder às solicitações do caminho, da vida, ao acaso ou de forma casuística. Aquilo que tem a aparência de um improviso, como um impromptu musical, não é mais do que a expressão da mais funda liberdade do viandante, daquilo que, através dessa liberdade, necessariamente se exprime. Em todo o aparente improviso, devemos aprender a ler a expressão de uma ordem que antecede e supera as pequenas ordens que o pobre planeamento humano traz consigo.

domingo, 5 de outubro de 2014

Signo sinal 6. No mais inesperado dos lugares

Ana Peters - Azul Prusi (1993)

Múltiplos são os matizes que se abrem na viagem. Aquilo que aos olhos do turista se mostra como insuportável uniformidade, o viandante vê-o com inúmeros cambiantes. A este não lhe interessa o pitoresco ou a descoberta de culturas diferentes, essa frouxa justificação para dar vazão ao medo da monotonia. A viagem é a própria vida em busca das raízes do ser, em busca da palavra que chamou o viandante à existência. Por isso, o olhar deste, ao contrário do turista, é profundo e demorado. Um sinal pode ser encontrado no mais inesperado dos lugares.

sábado, 4 de outubro de 2014

Poemas do Viandante (478)

JCM - Mitologias (tempo de Outono) (2007)

478. chegaram os dias de penumbra

chegaram os dias de penumbra
sob os plátanos

sentados no jardim aguardamos
o cair da noite

ouvindo pássaros e folhas secas
o sussurro do vento

escutando a voz do coração
no rumor do bosque

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A extravagância do acontecer

JCM - Time on space. Porto Batel (2008)

Quantas vezes se pensa que a vida não passa de um amontoado extravagante de acontecimentos, fruto do acaso e do cego desejo. O viandante, porém, deve aprender a afinar o olhar e a observar nexos e configurações onde elas não são visíveis. Isso significa elevar-se para poder abarcar num relance aquilo que em baixo é imperceptível. A extravagância do acontecer revela-se-lhe então em fulgurações plenas de sentido.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A fenda

JCM - Mitologias (a fenda) (2007)

Pensa-se muitas vezes a fenda como  manifestação da entropia de um determinado sistema, digamos assim. Diz-se que se abriram fendas em qualquer coisa e entende-se que esse acontecimento contém uma ameaça. Mas, como em tudo aquilo que contém um excessivo poder simbólico, ela representa também uma abertura para uma outra luz, uma outra realidade. E estas duas faces, a do perigo que espreita e da luz que  chama, estão plenamente presentes quando se convoca a fenda para simbolizar o perigo de derrocada ou o início da iluminação.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Ser de todos os lugares

JCM - Mitologias (com vista para o mar) (2014)

A solidez do mundo, a sua estrutura e organização são frágeis e impotentes perante o contínuo crescimento da entropia. De um momento para o outro, tudo começa a dissolver-se e a precipitar-se na água, liquefazendo-se. Mesmo que seja alguém da terra, o viandante deve aprender não a nadar mas a tornar-se água. O seu destino é tornar-se água na água, terra na terra, ar no ar e fogo no fogo, pois ele não pertence a lado nenhum e, por isso, é de todos os lugares.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Haikai do Viandante (206)

Esteban Vicente - Series Alison - Armonía (1976)

nesta harmonia
um traço de azul desenha
a luz de outro dia

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O preço da alegria

JCM - Black & White Dreams (2014)

Nós somos apenas
desespero e sombra.
(Federigo Della Vale)

Talvez tenha sido uma percepção idêntica à do autor do barroco italiano que tenha estado presente na criação da tragédia grega ou dos textos neotestamentários. Desespero e sombra assediam o homem e ele teme que não seja, ele próprio, outra coisa. A tragédia grega, na lição de Nietzsche, é a plena aceitação desse desespero e dessa sombra que se manifestará na alegria do espectador trágico perante o destino do herói. Nos textos do Novo Testamento o desespero e a sombra são desafiados, e a simbólica que se desprende daquelas palavras é um dispositivo para abrir um buraco por onde a luz possa chegar e banhar o desespero e a sombra humanas. Tanto na tragédia grega como nos textos evangélicos, o herói tem um trágico destino, mas esse foi o preço a pagar pela chegada da alegria.

domingo, 28 de setembro de 2014

Metáforas, metáforas

JCM - Time on space (2006)

Devo a Joseph Campbell a visão de que os enunciados fundamentais das religiões - os mitos - são enunciados metafóricos. E todo o equívoco dos não crentes bem como o de muitos crentes é tomarem essas enunciações como referências materiais, enunciados históricos. Ora não o são. Eles dirigem-se a uma outra ordem de realidade que não a mera facticidade. As metáforas condensadas nos mitos são guias para a aventura espiritual, traçam estranhos sinais na pedra onde aquele que se entrega à viagem poderá encontrar, perante a multiplicidade de vias, uma indicação do caminho a seguir. É para isso que servem as metáforas e não tanto para redescrever a realidade.

sábado, 27 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (477)

JCM - Heimat VI (2007)

477. havia naqueles dias uma fronteira

havia naqueles dias uma fronteira
coberta de fogo e rosas

havia um plátano a sombrear a casa
adormecido no jardim

havia a memória  do vento outonal
no silêncio das ramadas

havia a vida inteira e sem mácula
que se abria para mim

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

A luz e as trevas

JCM - Mitologias (the light shines in darkness II) (2006)

A luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam (João 1:5).

Nunca se pensa radicalmente o jogo que nos é trazido pelas múltiplas aproximações ao mistério da relação entre luz e trevas. Tanto a luz como as trevas fascinam o homem desde tempos cuja memória há muito se apagou. Com elas foram compondo mitos, poemas, narrativas morais ou soteriológicas, mas a simbologia que luz e trevas introduzem abre para um universo infinito e inesgotável de significações. 

O versículo de João mais do que dilucidar o mistério torna claro a sua natureza mistérica através de um sábio, embora não muito explícito, recurso ao paradoxo. Onde reside esse paradoxo? A primeira afirmação - a luz resplandece nas trevas - constata um facto, mas essa constatação factual é o reconhecimento de uma necessidade. Para resplandecer, a luz necessita das trevas. O paradoxo é introduzido na segunda proposição - as trevas não a compreenderam. O paradoxo não reside no facto de as trevas não terem compreendido a luz, mas no tom marcadamente de censura que resulta da leitura do versículo e de todo o seu contexto. 

O que seria necessário para que as trevas compreendessem a luz? Que nelas houvesse já luz, que elas não fossem trevas. Isso, porém, entra em contradição com a necessidade que luz tem das trevas para resplandecer. O texto de João traz inscrita, no seu cerne, uma contradição: as trevas devem e não devem ser, ao mesmo tempo, trevas. Esta contradição não é um erro lógico, um equívoco da razão. Ela é uma injunção a que o homem, mantendo a contradição, medite nela e entre no mistério que ela encerra, não com a razão, mas com a totalidade do seu ser aberto ao e pelo paradoxo.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Haikai do Viandante (205)

JCM - Black & White Dreams (Serra da Estrela) (2008)

a velha floresta
na clareira da montanha
esp'rança que resta

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

A vida e o outo

JCM - Distopia (a silent city) (2007)

Eu dou-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros (Jo 13,34).

Qual o padrão que deve orientar a nossa relação com o outro, esse outro que é também um próximo? O judaísmo tinha codificado essa relação na lei mosaica, a qual, com os seus mandamentos, estabelecia o padrão que deveria presidir às relações com o outro e o Outro. Esse padrão, mesmo quando fala no amor a Deus, assenta na ideia de respeito. Pela lei mosaica, o respeito pelo outro é a pedra angular da relação ao próximo. Ora o cristianismo traz um novo mandamento, o do amor ao próximo. E qual é o padrão deste amor? O padrão é o amor que Cristo terá devotado aos homens. Ora esse amor está muito longe de ser um delíquio  afectivo, uma vaga sentimentalidade tão ao gosto da nossa época. Para além da aceitação do outro figurada no perdão, o amor crístico reside na dádiva da vida. Toca na raiz daquilo que nos é mais precioso, a vida. Qual é o padrão de amor ao próximo que o cristianismo traz consigo? O dar a vida, morrer por esse outro. Que tal mandamento tenho colonizado parte do mundo, mesmo que a generalidade dos crentes não esteja disponível ou seja impotente para o cumprir, não deixa de ser um mistério.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

No fluir da existência

JCM - Humanitas XI (2014)

Deixai vir a mim as crianças, não as impeçais, pois o Reino dos céus pertence aos que se tornam semelhantes a elas (Mateus 19:14).

Que semelhança deve o homem buscar para que se torne como as crianças? Não mentem as crianças? Não fazem elas o mal e, por vezes, de forma tão terrível? Por certo, e apesar do nosso tempo divinizar a moralidade da criança, não será a mentira, o egoísmo e o mal presentes em todas as crianças que os homens são convidados, por Cristo, a emular. Os homens são incitados a devir crianças para que, como elas, se entreguem livremente ao fluir da existência, reaprendam a ingenuidade de dançar, sem ideias preconcebidas ou metas a atingir, com os elementos da vida. São intimados a abrirem-se perante o mistério das coisas como o fazem as crianças. No versículo de Mateus não está em questão uma moralidade mas um modo de ser, uma forma de entrega à existência.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (476)

JCM - Símbolos, segredos e sinais (2014)

476. símbolos segredos e sinais

símbolos segredos e sinais
riscam o caminho

e na via assim tracejada
descerra-se o destino

desenhando na floresta
a breve clareira

onde a rosa se abre para
o pão e o vinho

domingo, 21 de setembro de 2014

Revelação de si

Esteban Vicente - Descubrimiento (1992)

A viagem do viandante é sempre uma aventura de descobrimento. Descobrir aquilo que está em si oculto, como se fosse uma cifra ou um enigma. Na viagem, o que se revela é uma paisagem interior. O viandante, no caminho que toma, revela-se a si mesmo e revela aquilo que o envia.

sábado, 20 de setembro de 2014

Para além das muralhas

JCM - Heimat V. Torres Novas (Castelo) (2007)

Erguer muralhas é ainda um sinal de menoridade do espírito. Preso em si mesmo, tem medo de se abrir à vida plena. Então, fecha-se e olha vida e mundo a partir das torres onde se encastelou. A viagem do Viandante não é outra coisa senão a contínua destruição das muralhas que o medo ergue. Medo da sua própria destinação, medo que o entrega à errância e à dissipação. Porém, para lá das torres do castelo uma voz ecoa no deserto.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O elo da aliança

JCM - Mitologias (o arco da aliança) (2014)

Quando o homem descobriu o arco-íris como símbolo da aliança entre os homens e a divindade talvez tenha compreendido uma outra coisa. Talvez tenha compreendido que, na sua multiplicidade, o homem é o próprio arco-íris, esse elo que estabelece a relação entre as forças da terra e os poderes do céu. E fá-lo-á  tanto mais eficazmente quanto mais frágil e vazio ele for, tão frágil e vazio quanto o arco-íris.