quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Da realização do real

Albert Gleizes - Contemplação (1944)

Um estranho equívoco apoderou-se da ideia de contemplação. Pensa-se que é uma alienação do real, uma absorção do ego em si mesmo ou em algum objecto que o fascina e que, nesse fascínio, não é mais do que a projecção desse ego. A contemplação, porém, pouco tem a ver com os desvarios do ego. Contemplar é o encontro de duas presenças que, nesse instante, se tornam numa pura realidade. Não é uma alienação, mas, no verdadeiro sentido da palavra, uma realização. Na contemplação, a realidade realiza-se, torna-se efectiva, torna-se real.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Haikai do Viandante (172)

Piet Mondrian - Composition in Blue, Grey and Pink (1913)

azul cinza e rosas
desenham pela planície
ruas misteriosas

domingo, 19 de janeiro de 2014

Do caminho rochoso

David Teniers the Younger - Landscape with Rocks

Se o deserto é o lugar da tentação, as paisagens rochosas convocam o viandante à elevação, à ultrapassagem. O monotonia da identidade - essa aparência de imutabilidade que o deserto faz nascer - tenta aquele que por ali se perde. O mundo rochoso e escarpado desafia o caminhante a cada instante, propõe-lhe novos e novos enigmas, esmaga-o com a inúmera diferenciação de tudo o que existe. Cada diferença na paisagem é uma provação. Caminhar é, então, vencer cada uma das diferenças que a paisagem traz e elevar-se ao lugar onde as pode contemplar na sua invencível diferenciação.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Anunciar e aproximar

Rafael Barradas - Anunciação (1928)

Em toda a anunciação há um dar a conhecer. Neste dar a conhecer encontramos um acto de partilha do conhecimento, um exercício de aproximação entre o anunciador e aquele que escuta. Este exercício de aproximação, porém, não basta para tornar o outro num próximo. É preciso que o outro se entregue activamente ao acto da escuta, o que inclui a escuta crítica, que se aproxima e se mantenha nessa proximidade.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O caminho na noite

Lucio Fontana - Ambiente espacial e luz negra (1948-49)

É nos dias em que a luz se tinge de negro, em que a escura noite desce sobre os sentidos e o coração, que o espaço se abre e intima o viandante a prosseguir a viagem. Cego, escuta o rumor e ouve o vento. O caminho é aquele que ele próprio, no espaço sem fim, desenha com cada um dos seus passos. A noite também é tempo de viagem.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Haikai do Viandante (171)


Serena e cansada
abre-se nesta manhã
a pele rasgada.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A cidade abandonada

Fernand Khnopff - A cidade abandonada (1904)

Ressoa na ideia de cidade abandonada algo tão cativante que o viandante fica fascinado e incapaz de lhe medir o perigo ou de lhe analisar o sentido. Vazia, a cidade torna-se o lugar de todos os possíveis, a esperança de todas as mitologias, o sítio onde se escondem os milagres. O viandante, ao longe, olha-a e é a si que se vê no abandono que a viagem lhe traz.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O homem livre

Ignacio Iturria - Armário genealógico (1998)

Todos transportamos o peso do passado. Nobres ou plebeus, os homens são verdadeiros armários genealógicos, de onde salta o passado para nos assombrar ou consolar, para nos oprimir ou incendiar o orgulho de casta. O homem livre, porém, deixou a árvore genealógica e, separado das raízes, é uma semente que vai onde o vento a levar. Não tem pai nem mãe, não tem genealogia.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Uma flor esquiva

Agnes Martin - Flor al viento (1963)

Há quem pense que um tratado sobre a vida ensinará a viver. Socorridos pela razão teórica, amparados na geometria dos argumentos, os homens tornar-se-iam sábios e prudentes. A vida, porém, é uma flor esquiva que ama a incerteza e que medra no caos e no desconcerto. Pega na razão e rasga cada um dos seus tratados. Senta-se e espera que o vento sopre.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Sabedoria

Francisco Soto Mesa - 1.98.1 (1984)

Há aqueles  que andam à deriva e não sabem que rumo tomar, entregues à errância e à perdição. Outros traçam objectivos e, pela força da razão e da vontade, cumprem-nos. Os terceiros, porém, não estão perdidos, mas também não têm objectivos. Escutam e seguem uma voz que não sabem de onde vem nem para que terra os impele. É nestes que desce a sabedoria.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

A terra da alegria


Deixar o silêncio branco da pedra chegar, abrir-lhe a porta, recolhê-lo no fundo do coração. Depois, cuidar dele, regá-lo dia a dia, até que floresça, se torne casa e pátria, o lugar que espera por ti. A terra da alegria.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O jardim abandonado

Raoul Dufy - O jardim abandonado (1913)

Quando se pensa no jardim do Éden, pensa-se sempre na história da expulsão do homem e do duro destino que lhe coube. O mito, com o fascínio que exerce, acaba por ocultar uma outra vertente da narrativa. O homem foi posto no jardim para cuidar dele. O jardim era, desse modo, algo que precisava do cuidado do homem. Ao ser expulso, o jardim foi abandonado. Podemos supor, na nossa imaginação, pois é a ela que os mitos se dirigem, que esse lugar, ao perder o jardineiro, se tornou selvagem e espera pelo retorno do homem. Dito de outra maneira, há um jardim que espera por nós, pois precisa do cuidado do homem.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Poemas do Viandante (445)

Benvenuto Benvenuti - Inverno - Manhã (1905)

445. Terrível a solidão do Inverno

Terrível o silêncio do Inverno.
Desce pela manhã
e abre clareiras de bruma
entre sombras e arvoredos.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Do caminho e da viagem

Wassily Kandinsky - À volta da linha (1943)

Talvez a viagem que cabe fazer a cada um de nós seja sempre por uma linha recta. Isso significaria que teríamos o dever de a fazer o mais rapidamente possível. Porém, à volta da linha amontoam-se os objectos, as solicitações, as miragens, tudo aquilo que desvia o desejo e torna o caminho perigoso e lento, tão lento que uma vida generosa em anos não chega para o percorrer e consumar a viagem.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Abrir caminhos

Ferdinand Hodler - Triunfo da técnica  (1897)

Talvez fosse de bom tom afirmar que a técnica esmaga o homem, que este fica preso no artifício dos dispositivos que inventa para tornar a vida menos pesada. Mas haverá ainda homem se o despojarmos de todo e qualquer dispositivo técnico? Não é já a linguagem uma prótese técnica? Pensa-se, por vezes e não sem ingenuidade, que meditar e contemplar seria entrar num mundo não técnico, num mundo desprovido de dispositivos e próteses. Mas a mais singela meditação ou a mais profunda contemplação são fruto de um artifício técnico, como se o acesso ao "não técnico" exigisse a mediação da técnica, dos dispositivos e próteses que, pertencendo ao mundo dos objectos mecânicos ou ao mundo das técnicas do espírito, abrem caminho por entre as limitações da condição humana.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Haikai do Viandante (170)


Um pássaro canta
no musgo verde da rocha:
a onda o levanta.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O caminho tortuoso

Remedios Varo - Caminhos tortuosos (1957)

É um desejo infantil que nada na vida seja sinuoso, que tudo se desdobre segundo o desejo do momento, que o caminho seja linear e desprovido de embustes, ilusões e obstáculos. Para que serviria, porém, tal caminho? É na sinuosidade da viagem que o viandante escuta o sopro do vento e, na dificuldade dos obstáculos, aprende a obedecer àquilo que o caminho impõe. Na curva inesperada não está apenas a ameaça de morte, mas também a surpresa que o espera e lhe dá alento e vigor para continuar a viagem.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O tempo dos viajantes

Liubov Popova - The Traveler (1915)

Vivemos em tempos de nomadismo. Não se trata apenas daqueles que, pela imposição da estrita necessidade, se vêem obrigados a emigrar, mas do culto pela viagem induzido pela moderna indústria do turismo. Este viajar, porém, acaba por fragmentar o viajante, pois, levado pelo desejo, submete-se à multiplicidade de sensações sem nunca poder aceder ao centro nevrálgico que unifica os mundos pelos quais passa, nem encontrar o caminho para si mesmo. Viajar não passa de um divertissement, tal como o entendia Pascal, uma estratégia de esquiva perante a efectiva realidade humana. Viajar tornou-se um exercício de ideologia, se entendermos por esta uma visão distorcida da realidade.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

A luz da verdade

George Inness - Winter, Close of Day (1866)

Os dias já começaram a crescer, mas a chuva persistente traz consigo a nostalgia de um tempo que parece ter acabado. Não a nostalgia do passado, mas a memória viva de um relação mais funda com a terra e o céu. Recolhido no dia, o viandante medita sobre a verdade, sobre essa estranha promessa que une o que está em cima e o que está em baixo. Nestes dias, tudo parece mais autêntico, como se a nossa verdade estivesse na luz contida e espessa que do alto se derrama sobre nós.

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Poemas do Viandante (444)

Joaquin Sorolla y Bastida - Mar cinzento (1908)

444. Ano velho

Acaba cinzento o ano,
vestido de sombra,
coberto de cinza.

Nuvem obscura
no silêncio do calendário,
no rumor do tempo.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Construir pontes

Pierre Bonnard - Le Pont des arts (1905)

Construir pontes, estabelecer relações, ligar o que está desligado, enfrentar a separação. Na ideia de separação pensa-se o corte que o homem instaura com a envolvência, tornando-a estranha a si mesmo. É esta mesma estranheza que se torna inquietante e que desencadeia as tentativas sempre frustradas de dominar a realidade da qual o homem se cindiu. Qual a verdadeira destinação de cada homem? A de ser um pontífice, um construtor de pontes, a de unir aquilo que ele mesmo separou.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Abandonar-se ao vento

Felix Vallotton - The Wind (1910)

Talvez o primeiro chamamento do espírito, chamamento audível, se dê com a primeira grande decepção consigo mesmo. Pensa-se que é possível parar o vento com a forças das próprias mãos, mas, indomável e imperturbado, o vento segue o seu caminho. O ego faz a experiência da sua pequenez, da irrelevância dos seus desejos, do nada que na verdade é. Tudo se joga então nessa hora. Ou esse pequeno eu procura proteger-se e entregar-se à solidificação - ou à petrificação - de si mesmo, ou, aceitando a morte, abandona-se ao sopro do vento, tornando-se vento com o vento, espírito com o espírito.

sábado, 28 de dezembro de 2013

A onda e a vida

Frantisek Kupka - The Wave (1902)

Pensar a vida a partir da metáfora da onda. Como deve o viandante lidar com a onda? Enfrentá-la a pé firme? Cavalgá-la como um surfista? Atravessá-la como um exímio mergulhador? Não, o caminho do viandante não é o do poder nem o da dominação, tão pouco é o da destreza. A força para nada lhe serve e a habilidade não o salva. Ao viandante resta-lhe ser onda na onda, vida na vida. 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Sobre a memória

Sendo - Da memória (1995)

É possível que possamos simbolizar a memória pela ruína. O que resta da vida vivida é essa ruína a que damos o nome de memória. É com Platão que surge a referência a uma outra memória, aquela que a alma teria da contemplação das Ideias, essas realidades que estão para além da vida vivida, seja no plano biológico, seja no plano social. É a memória de algo que a experiência existencial não poderia nunca pôr à nossa disposição, de algo que a própria vida representa já uma ruína e uma degradação. A partir desta concepção, pode-se pensar a memória já não como uma faculdade passiva e impotente perante a vida, mera produtora de imagens da ruína do real, mas como uma faculdade activa que, entre as ruínas da vida, nos abre para o essencial, para o que é efectivamente real.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

A sombra do Natal

Kings College Choir - Christmas Carols 24 dec 2011

Talvez no dia 26 de Dezembro tudo volte ao que está e isso representará para muitos uma decepção, como se o Natal fosse uma trégua, mas uma trégua que não anuncia o fim da guerra. Essa decepção, porém, está fundada numa imagem infantil e mágica do Natal, imagem essa que se projecta na compreensão da vida e do mundo. Não se compreende que o milagre não está em o Natal transformar magicamente a vida com o seu cortejo de necessidades e malevolências, mas na sua própria existência. O milagre está em se ter descoberto uma noite e um dia onde a desumanidade contumaz da humanidade é questionada. Essa luz, ao embater na dura realidade de 26 de Dezembro, projectará uma sombra que, aqui e ali, lembrará aos homens que a vida não tem de ser um exercício contínuo de maldade e servidão. Exultemos. Um feliz Natal.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Poemas do Viandante (443)

Marc Chagall - Jew at Prayer (1912-13)

443. Descer mais e mais ainda

Descer mais e mais ainda.
Descer à fonte onde o dia nasce.
Descer à foz onde a vida finda.
Descer à caverna onde a noite cresce.

Assim inicio a minha prece,
Na noite fria, na tempestade do coração,
No vazio que o mundo oferece,
No nada criado para a solidão.

E embarcado no navio da eternidade,
Sulco, entre ondas e brumas, oceanos.
E adentrando-me na idade,
Esqueço o jardim onde plantei os anos.

Descer mais e mais no mar da memória.
Descer à luz que rasga o dia.
Descer à tormenta que faz a história.
Descer ao lugar onde nasce a alegria.

domingo, 22 de dezembro de 2013

O Magnum Mysterium

Tomás Luis de Victoria - O Magnum Mysterium (The Cambridge Singers)

Poder-se-ia pensar que o mistério maior seria o da Virgem trazer no seio e dar à luz o filho de Deus. Isso, contudo, seria ficar pelo sentido literal das narrativas. Mas as narrativas apenas simbolizam o mistério decisivo da existência do mundo e de nele haver seres dotados de razão. Para nós, que somos filhos de uma educação iluminista e racionalista, na qual a ciência joga o papel central, nada é mais estranho do que falar de mistério. A ciência enfrenta e resolve quebra-cabeças (puzzles), o mistério é-lhe estranho. Mas talvez tudo o que é decisivo para o destino de cada um seja do domínio do mistério e não do quebra-cabeças racional. Dito de forma dogmática: tudo o que é decisivo na vida do homem é um magnum mysterium, e é isso que está em jogo nestes dias de Natal.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Poemas do Viandante (442)

Paul Cézanne - Morning in Provence (1900-1906)

442. Solstício de Inverno

Chegámos ao dia mais pequeno do ano
e, presos na fraqueza da luz, aguardamos
o barco que nos levará ao mar aberto,
à luminosa água dos dias que hão-de vir.

Tudo se transfigura nestas terras de musgo.
As rochas crescem para a desmesura da noite,
os rebanhos seguem o caminho eterno,
os anjos velam o dia em que cantarão.

Nas terras altas, haverá neve e frio.
A luz bruxuleante que se vê ao longe
começa a crescer sobre a solidão da terra,
inscrevendo nas trevas o sol da madrugada.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Anunciação e prescrição

Edward Burne Jones - Anunciação (1876-79)

Ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum verbum tuum (Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra). Lucas, 1, 38.

A narrativa de Lucas estabelece, pelos menos nas traduções em português, uma surpreendente relação entre dois actos de linguagem, a anunciação e a prescrição, cujos efeitos solicitam sempre e mais uma vez o trabalho de interpretação. O arcanjo Gabriel, o mensageiro divino, anuncia algo que irá suceder, que Maria irá conceber sem que tenha conhecido homem. Isso acontecerá por vontade do Altíssimo. Nesta anunciação, há dois aspectos centrais. Por um lado, o facto de Maria ir conceber não deriva do seu livre-arbítrio, da sua aquiescência, nem de qualquer jogo tensional entre desejo e vontade. Há uma não-humanidade nesta anunciação. Por outro, aquilo que a anunciação anuncia apresenta-se como um acontecimento natural, que se impõe aos homens, independentemente da sua vontade e da sua liberdade. É como se a natureza - entendida como hiper-natureza ou sobre-natureza - recobrasse a sua ascendência sobre a liberdade humana. A anunciação do arcanjo a Maria é do domínio da pura factualidade. Nada é prescrito a Maria, nenhuma norma ou mandamento está presente na anunciação. Do ponto de vista linguístico, a anunciação do arcanjo Gabriel em nada difere da informação, também ela uma anunciação,  que um meteorologista fornece sobre a aproximação de um furacão.

Onde surge a prescrição é na resposta de Maria. Ela começa com uma declaração, Eis a escrava do Senhor, e é concluída de forma imperativa: faça-se em mim segundo a tua palavra. Não se trata de um simples assentimento ou a expressão de um mero consentimento. Trata-se agora de uma vontade que afirma imperativamente, a partir do seu livre-arbítrio, querer a vontade que, como uma sobre-natureza, se lhe impõe necessariamente. Esta prescrição não a dirige ela a si mesma, mas é uma prescrição que é dirigida, através do arcanjo Gabriel, a Deus, ao Senhor da escrava. Podem-se interpretar as palavras de Maria do seguinte modo: Quero que a Tua palavra seja mantida, que a cumpras. Num estranho exemplo da dialéctica do senhor e do escravo, a escrava eleva-se ao senhorio ao prescrever ao Senhor a vontade deste. É neste acto prescritivo que Maria se liberta da sua condição de escrava, assumindo em si a Vontade que o arcanjo lhe anunciara como Vontade sobre natural marcada pela sua inviolável necessidade. Este processo, que se inicia com a anunciação, passa pela prescrição, termina com a libertação de Maria. O que significa esta libertação? Significa que ela transformou, ao prescrever ao Senhor a vontade deste, o livre-arbírtrio, essa possibilidade de escolher sem ser coagida, em liberdade de realização e de criação. Ela trouxe ao mundo dos homens aquilo que o ultrapassa.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Sobre a festa

Raoul Dufy - Dia de festa (1906)

Perdemos o sentido da festa. Esta perda deve-se à banalização daquilo que deveria ser do âmbito do excepcional. Pode-se dizer, como Walter Benjamin o disse da arte, que a festa perdeu a aura. Perder a aura significa que se dessacralizou e se desligou daquilo que, no fundo do ser humano, a ligava ao essencial. O que procura o viandante? Recuperar o sentido último e decisivo da festa. Significará isso que a festividade deva ser remetida para certos e escassos dias do calendário? Também não. Isso é já o início da degradação. Recuperar o sentido último e decisivo da festa significa tornar todos os dias festivos. Mas não é isso banalizar a festa? Não, se cada dia for vivido com um dia de excepção, um dia em que o espírito se abre ao essencial e ao decisivo. O que causa a banalização da festa, a sua perda de aura, não é a multiplicação das suas ocorrências, mas o vazio com que nos entregamos a ela.