sábado, 17 de agosto de 2013

A sombra da floresta

George Seurat - Floresta em Pontaubert (1881)

A floresta nunca deixa de atrair a imaginação dos homens. Se pensarmos sobre a razão de tal atracção não será a flora e a fauna as razões fundamentais dessa ligação. Se flora e fauna da floresta são interessantes para o homem, isso deve-se a estarem inscritas na floresta. A floresta é o sinal do que há de misterioso na vida dos homens, daquilo que não é completamente tenebroso, mas também não é luminoso, aquilo onde a razão com a sua luz penetra com dificuldade. Na floresta, o que atrai o homem é a sombra, essa combinação de luz e trevas. A sombra representa o enigma da existência e chama cada um a dar-lhe uma resposta. Há quem se embrenhe floresta fora, há quem prefira as auto-estradas e passar ao largo.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Poemas do Viandante (429)

Julio Romero de Torres - Canto de amor

429. A súbita queda

A súbita queda
de um vidro
estremece o coração.
Traz ao mundo
a luz funda
de um amor esquecido.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A virtude da atenção

Henri Edmond Delacroix Cross - O naufrágio (1907)

O naufrágio representa uma das metáforas correntes para referir uma vida desperdiçada. Apesar de ser corrente - quase uma metáfora morta - ela continua a ter força e a dar que pensar. Um naufrágio pode ocorrer devido às condições ambientais (o mar e os ventos), ou a um problema na embarcação, ou a um erro humano. Também uma vida pode ser desperdiçada devido ao ambiente, aos dispositivos que escolhemos para navegar na existência, ou devido à má direcção que lhe impomos. O espírito não deve, contudo, ver o ambiente e os dispositivos existenciais como algo fora de si. Isto não quer dizer que possamos controlar tudo o que nos é exterior. Não podemos. Apenas significa que a atenção é uma virtude central na aventura espiritual do homem.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

O espírito e a liberdade

George Seurat - Cows in a Field (1882)

A ideia de disciplinar o espírito, de o submeter a uma pesada e rigorosa regra, pode ter um certo valor instrumental. Amestrado, poderá servir para fins que lhe são estranhos. Um espírito que serve fins que lhe são estranhos nunca deixará de ser um espírito servil. A rigorosa disciplina pode ser o mais terrível dos equívocos. A vaca que queremos prender revolta-se, esperneia, fustiga o agressor. Livre, em campo aberto, ela encontra o seu lugar e tranquilamente faz o seu caminho. Assim é o espírito. Desacorrentado, aberto à liberdade, esquecido das servidões, ele encontrará o seu caminho e o seu lugar, que não é outro senão o caminho que encontrar. Quantas vezes, porém, para descobrir a liberdade, o espírito precisa de passar pela servidão da disciplina?

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Haikai do Viandante (154)

Thomas Cole - A wild scene (1831-32)

A vida selvagem,
dura, feroz, leva a guerra
duma a outra margem.

domingo, 11 de agosto de 2013

Simbolizações

Henri Delacroix - Ciprestes em Gagnes (1908)

A imaginação humana possui tal plasticidade que, querendo-o, de qualquer coisa faz símbolo de uma outra. Esta intermutabilidade simbólica das coisas, devido à plasticidade da nossa imaginação, mostra-nos, não nos mostrando, a ligação que, de forma mais ou menos oculta, existe entre toda a realidade. Mostra-nos ainda outra coisa: a construção de um símbolo é também a produção de uma indicação no caminho que o viandante deve percorrer. 

Tomemos os ciprestes como exemplo. Devido à sua presença nos cemitérios, são associados à morte, talvez à indicação do caminho ascendente da alma que, segundo múltiplas tradições, se eleva para os céus. Se olharmos com atenção para um cipreste, se deixarmos a imaginação entrar no livre jogo das associações somos levados a um outro lado. 

O cipreste simboliza o homem naquilo que tem de terreno (as raízes que o prendem à terra), mas ao mesmo tempo revela-lhe as suas aspirações mais elevadas, ao apontar para o alto. No cipreste descubro a radicalidade da pertença à terra e, ao mesmo tempo, o desejo (dado no carácter erecto, viril da árvore) que aspira ao que é elevado. Talvez por isso tenha sido plantado nos cemitérios, mas o que nele se manifesta não é a morte, mas a vida, uma vida desejante, potente, elevada. A vida, aprendemos, é um elevar-se da terra às alturas.

sábado, 10 de agosto de 2013

A metafísica estival

Benvenuto Benvenuti - Estio (1907)

A nostalgia dos dias de Verão é associada, quase sempre, à estadia junto do mar, à vida social que aí ocorria, aos amores e desamores dos primeiros tempos, a uma espécie de Bildungsroman trivial e patético. Ao olhar, porém, o quadro de Benvenuto Benvenuti, descobre-se uma outra nostalgia estival, a nostalgia de um tempo em que os campos ainda tinham um papel central na vida dos homens. Tudo seria mais lento, mais denso, mais profundo. Um tempo para semear, outro para cuidar e outro para colher, segundo rituais que a ciência e a indústria ainda não tinham desfigurado. Nesse ritmo, o espírito ordenava-se e elevava-se daquilo que era terrestre para aquilo que o ultrapassava. Era o tempo da metafísica.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Signo sinal 1. Olhar o mar

Georges Lemmen - Beach at Heist (1881-82)

Nestes dias de Agosto sento-me virado para o mar e deixo que as cores cheguem até mim. No oceano encontro todo o mistério do ser, a sua profundidade, o perigo que há nele, a bênção para quem o sabe navegar. Nessas horas, é impossível não crer em Deus, é impossível não ver no barco que passa ao longe um sinal que o Altíssimo envia aos pobres homens perdidos sobre a Terra.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Noites de Agosto

Benvenuto Benvenuti - Agosto. Sera (1901)

Nas noites de Agosto, o espírito sente-se convocado pelo rumor da floresta. Ali, orlados pelas árvores, os corpos despem-se e, no silêncio do mundo, entregam-se ao desvario do amor. O espírito, iluminado e incendiado, descobre-se na sua própria casa.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Poemas do Viandante (428)

Edward Burne Jones - The Godhead Fires (1878)

428. O gesto com que ocultas os dias

O gesto com que ocultas os dias
e deixas crescer no fulgor dos olhos
o desejo irreprimível do amor,
secreto segredo de mármore perdido
entre pedras de granito e águas de calcário.

Descubro-te lentamente,
levado pelo ritmo dos teus dedos,
a máquina silenciosa que abre a noite
à cegueira do provir e
dispara relâmpagos de cristal sobre

a resina turva e cega do olhar, sobre 
o traço que compõe o horizonte onde
o teu corpo brilha e chama o meu:
água  secreta, floresta de luz, o desejo cresce 
e transborda no dia que declina incendiado.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Uma beleza não humana

Francesco Hayez - Bagnante (1832)

A arte não visa conferir ao corpo um enquadramento artístico. A arte limita-se a revelar a dimensão estética do corpo, dimensão presente a priori e que a convenção social, na encruzilhada do preconceito e do desejo, oculta e dissimula. Esta revelação é um passo para libertar o corpo e deixar que ele venha desassossegar os sentidos e os sonhos, como se uma beleza não humana espreitasse dali e nos convocasse para assim nos elevarmos até ela.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Da condição do Homem

Vincent Van Gogh - Naturaleza muerta con pan (1887)

Então eles lhe disseram: Não temos aqui senão cinco pães e dois peixes. (Mateus, 14:17)

Poderemos a partir desta citação de Mateus pensar a condição humana sobre a Terra? A questão central não será, nesse caso, os pães e os peixes, mas o senão. Ele remete-nos para o limite do que possuímos, para o limite dos nossos poderes, para a limitação do nosso ser. Neste senão ou num qualquer apenas expressa-se a natureza humana na sua finitude. Seja o que for o que possuirmos será sempre apenas isso. O que está para além disso é infinitamente mais e incomensurável com o nosso próprio ser. Mas este limite dado pela finitude é a única condição de possibilidade que o homem possui para ir além desse limite. Esta condição de possibilidade reside no reconhecimento da verdadeira situação humana. Só esse reconhecimento permite que algo desça sobre o homem e o multiplique, tal como a bênção do Cristo multiplicou pães e peixes.

domingo, 4 de agosto de 2013

Haikai do Viandante (153)

Vincent Van Gogh - Alameda no Outono (1884)

Mistério sombrio.
Árvores, ventos d'Outono,
anunciam o frio.

sábado, 3 de agosto de 2013

A ordem do desejo

Gustavo de Maeztu - A ordem (1918-1919)

No século passado, porventura devido à crescente influência de Nietzsche e ao prestígio da psicanálise inventada por Freud, emergiu a polémica sobre o desejo, se este era carência, falta, ou se, pelo contrário, excesso. Platão foi muitas vezes - e ainda o será - apontado como o pensador do desejo enquanto carência. Nessa carência pensa-se o mundo sensível em que habitamos como imperfeito, marcado pela falta presente em tudo o que é finito e limitado. Seria essa imperfeição do mundo que levava Platão a ficcionalizar o Mundo das Ideias, perfeito e imutável, objecto do desejo de todos aqueles que se dedicam à filosofia.

Esta leitura de Platão acaba por não dar conta da real dimensão da ordem do desejo que se expressa no platonismo. A ordem do desejo é balanceada entre o momento da carência e o momento do excesso. A carência de perfeição do mundo sensível que é o nosso e o excesso que se manifesta na ficcionalização desse mundo inteligível perfeito e imutável. Ficcionalizar o além, instaurar uma ordem metafísica, não é, ao contrário do que pensou Nietzsche, caluniar o real, depreciá-lo, mas encontrar a sua completude, tal como ela se manifesta na ordem desejante.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Da dinâmica do desejo

Max Pechstein - Três nus numa paisagem (1912)

Os objectos mundanos que solicitam o nosso desejo têm uma dupla característica. Inscrevem-se sempre numa dada paisagem, que pode atenuar ou intensificar, por vezes até ao paroxismo, o desejo. São múltiplos e, desse modo, estilhaçam a intencionalidade do desejo, solicitado por múltiplos focos desejáveis. Descobrimos assim que, devido à inscrição numa paisagem, não há, no nosso estar no mundo, um desejo puro, mas sempre um desejo revestido pela ambiência. Descobrimos ainda que a multiplicidade dos objectos desejáveis fragmenta o desejo e cinde a vontade. Impuro e fragmentário, o desejo abre em nós uma brecha que a vida parece incapaz de cerzir.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Corpo crepuscular

Jorge Apperley - Crepúsculo (1922)

Pelo desejo, compreendemos a natureza crepuscular do corpo. A sua luz, mesmo nas horas de maior vigor, indica sempre a incompletude, a ausência de alguma coisa que se manifesta na dinâmica desejante. O corpo nunca é dia pleno nem noite fechada. É apenas aquela luz frouxa e indecisa que parece hesitar na fronteira entre dois mundos.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Suspender a gravidade

Caspar David Friedrich - Angels in Adoration (1826)

Nas explicações do senso comum irreligioso, a religião surge muitas vezes como o produto do medo perante o desconhecido ou, no melhor dos casos, como uma resposta ingénua aos mistérios do mundo e da vida. Não se quer, desse modo, perceber a dinâmica biológica da religião. Ela é - para além de outras coisas - uma luta contra as limitações da nossa natureza biológica, um protesto contra a humilhação que o espírito do homem sente perante o peso do corpo. No acto religioso - na oração, por exemplo - manifesta-se o desejo de suspender a gravidade, como se o homem respondesse a uma solicitação das alturas.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Poemas do Viandante (427)

Lluis Rigalt - Ruínas (1865)

427. Não sei o peso da ruína

Não sei o peso da ruína
sobre os ombros do mundo.
Não sei a cor do manto
com que os anjos se cobrem.

Transporto comigo a cegueira
e traço nas ruas letras de cal,
enquanto espero a loucura
que os dias me hão-de trazer.

Levanto a espada sobre o fogo
e aguardo a hora aprazada:
uma serpente ergue-se na luz
e o vento rodopia silencioso.

De sombra em sombra cavalgo,
perdido da pátria que achei.
Restam-me ruínas, anjos caídos,
a cal enlouquecido pela luz.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

A desmedida da fantasia

Alexandre de Riquer - Fantasia

A fantasia liga-se muitas vezes ao delírio da imaginação, à suspensão das reais condições de possibilidade da experiência humana, isto é, à anulação dos efeitos do espaço e do tempo. Nessa suspensão, o desejo entrega-se livre ao devaneio com os objectos que o solicitam e lhe dão intenção e conteúdo, objectos que também eles deixam de estar condicionados pelos limites espácio-temporais, como se a imaginação fantasiosa nos segredasse a existência de um mundo no qual os corpos, não deixando de ser corpos, se tornassem etéreos, livres e desmedidos.

domingo, 28 de julho de 2013

Águas estivais

Carlo Carra - Estio (1930)

No Verão, os corpos, subjugados pela densidade do calor, anseiam  a leveza do espírito. Tudo os incomoda, tornando insuportável cada passo dado no caminho. Ao mergulhar na água, porém, tudo se torna possível, como se a gravidade fosse perdoada e o corpo, agora puro e inocente espírito, se elevasse da terra e prosseguisse no caminho que ao alto da montanha conduz.

sábado, 27 de julho de 2013

Árvore sagrada

Antonio Muñoz Degrain - El arból sagrada

Na expressão árvore sagrada não devemos ver o sagrado como uma adjectivação extrínseca - que se junta por uma qualquer hierofania - à árvore. A experiência ancestral do homem é a de ver já em cada árvore uma manifestação do sagrado, um símbolo de algo que ultrapassa em muito a mera experiência empírica. Juntas, as árvores, formam a floresta, essa mesma que ecoa no verso de Baudelaire L'homme y passe à travers des forêts de symboles. 

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Sobre a cegueira

Karl Weschke - Blind man (1948)

Mais que patologia, a cegueira é condição humana. Por muita acuidade que possuam os olhos de um homem, é sempre muito maior o campo que se subtrai à sua visão do que aquele que, com olhar agudo e espírito penetrante, consegue abarcar. E isto torna risível quem se louva na sua inteligência ou na sabedoria que acumulou. Seríamos todos mais sábios se andássemos de bengala e tivéssemos, como guia, um cão.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

O Verbo e o Jardim

Pierre Bonnard - O grande jardim (1898)

Um jardim não é apenas um lugar onde se cultivam plantas ornamentais ou um sítio dado à fruição humana pelos poderes públicos ou pelos haveres privados. É uma imagem que materializa no espaço e no tempo a nostalgia que já se exprimia na narrativa mítica do jardim do Éden, no Génesis bíblico. Do ponto de vista da ordem da existência em geral, podemos dizer que no princípio era o Verbo, mas do ponto de vista estritamente humano, contudo, será mais prudente dizer que no princípio era um Jardim. O  viandante perplexo, porém, pergunta se o Verbo e o Jardim não serão a mesma e única coisa.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Haikai do Viandante (152)

Pierre-Albert Marquet - Assouan, Morning

Divina manhã.
A água abre-se ao sol,
dele se faz irmã.

E com este singelo haikai, o blogger entra numas curtas férias até quinta-feira que vem, se tudo correr como o previsto. Os visitantes sempre podem contemplar o belíssimo quadro de Albert Marquet.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Arquitecto de labirintos

Virginia Lasheras - O Arquitecto (1993)

O viandante não é apenas aquele que caminha em direcção ao seu destino. O viandante sabe que tem um destino, mas não qual é. Ao caminhar, ele é o arquitecto do labirinto pelo qual passa, pois a viagem é o trânsito pelo labirinto. Em cada momento o viandante constrói uma nova passagem, e não sabe se ela leva a um beco sem saída ou se abre o caminho em direcção àquilo que o chama. Espera a graça da sagacidade e o talento do construtor para que, desprovido do fio de Ariadne, não tenha que voltar ao início do caminho.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Poemas Viandante (426)

Pablo Picasso - A vida (1903)

426. Um fio que se quebra e abra para a morte

Um fio que se quebra e abre para a morte,
o desejo impossível sobre a varanda,
o rumor de julho na planície incendiada.

A vida chega a arder nos dedos de cristal,
rodopia sob a fadiga do vento,
ri-se desfigurada pela ânsia perpétua.

O silêncio da criança nos braços da mulher,
a memória traçada de fronteiras e rios,
o animal que se inclina e pede água.

Trago no labirinto toda a vida que me foi dada,
olho-a aterrorizado pelo que anoiteceu,
e sento-me escutando o tropel do que há-de vir.

Ó a vida nua, pura, delicada e breve:
ébria, uma erva pende para a terra
e no céu um anjo voa no silêncio eterno.

domingo, 14 de julho de 2013

Liberdade e reconhecimento

Vincent Van Gogh - O bom samaritano (1890)

Qual destes três (o sacerdote, o levita e o samaritano) te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? (Lucas 10:36)

Esta pergunta dirigida a um doutor da Lei vem na sequência da parábola do bom samaritano (ler aqui, vv. 25-37). Esta é suscitada pela interrogação do doutor da Lei Quem é o meu próximo? A resposta é vista como a construção de um modelo de compaixão. Contudo, para além  das benfeitorias realizadas, o texto fornece uma antítese prática que baliza o modo de agir perante o outro. Afastamento ou aproximação. O meu próximo é aquele de quem me aproximo, de quem não me afasto. Isto significa que o próximo não é estipulado pelas estruturas sociais, como a família, a classe social ou casta a que se pertence, ou pelas convenções diferenciadoras dos homens. O próximo é o desígnio da minha liberdade, do meu livre-arbítrio que me permite aproximar-me do outro (como o samaritano) ou afastar-me (como o fizeram o sacerdote e o levita).

O próximo é a obra da minha liberdade, mas também daquilo que inclina a minha liberdade para me aproximar e não para me afastar. Quando no versículo 33 (10:33) Lucas escreve Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão, não é a compaixão que é central. A compaixão é já o resultado de algo mais fundamental, é o fruto daquilo que se manifesta na expressão vendo-o. No verbo ver ressoa a abertura ao outro - pois a visão, como os outros sentidos, são uma abertura para o exterior - e no pronome pessoal o expressa-se o acto de reconhecimento. O próximo é, deste modo, o fruto de uma liberdade que se abre ao reconhecimento do outro, e nesse reconhecimento dissolve fronteiras e diferenças que os mecanismos sociais estabelecem e petrificam, gerando o afastamento, a indiferença e a negação do reconhecimento do outro, do outro que sofre.

sábado, 13 de julho de 2013

Um tempo de água e fogo

José Manuel Ciria - Água e Fogo (2000)

Água e fogo são dois símbolos primordiais. São, como todos os símbolos primordiais, fonte originária de sabedoria e fundamento de todas as racionalizações que permitem dar um sentido humano ao mundo. Na tradição ocidental, água e fogo não são apenas dois dos elementos centrais - juntamente com o a terra e o ar, por vezes, com o éter - da teoria dos elementos que animou as primeiras especulações dos gregos. Eles surgem também no cristianismo, a água do baptismo, o fogo onde se manifesta o Espírito Santo. A água que purifica e torna inocente, o fogo que confere sabedoria.

A história do mundo, nos últimos decénios, tem sido marcada pela perda de solidez, pela fluidificação da vida e das instituições. É como se a terra sólida se transformasse em água, mas não na água que purifica, antes na água que anuncia um naufrágio. Mais uma vez os símbolos originários são chamados para dar sentido ao acontecer. É esta água que anuncia o naufrágio - ou um dilúvio - que está a reclamar a outra água, aquela que purifica e restaura a inocência. Mas no actual estado das coisas, não basta purificar, é necessário a sabedoria que só o fogo pode trazer. Este é, de novo, um tempo de água e fogo.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Inocência e prudência

Thomas Gainsborough - Study of a Sheep (1755-57)

Envio-vos como ovelhas para o meio dos lobos. Sede, pois, prudentes como as serpentes e simples como as pombas. (Mateus, 10:16)

O texto de Mateus - um único versículo, na verdade - desenha uma complexa rede de analogias para, em última análise, retratar a situação do homem no mundo social e para lhe propor um determinado modo de acção que está, ao mesmo tempo, ligado a um modo de ser. O que é de imediato visível, porém, nessa rede de analogias é que "aqueles que são enviados" são analogados com animais (ovelha, serpente e pomba) e "aqueles para o meio dos quais os enviados são remetidos" são também comparados com um animal (o lobo). Com isso, o texto sublinha de imediato a nossa condição animal e é perante ela que ele se torna significante.

A relação entre ovelha e lobo, entre presa e predador, está fundada também na analogia. O "ser como" de toda a analogia introduz uma ambiguidade na definição que reflecte uma ambiguidade ontológica. Os homens são como ovelhas ou como lobos. Isso significa um estatuto aberto na natureza humana, significa que o homem é dotado de livre-arbítrio. Nem as ovelhas são definitivamente ovelhas nem os lobos têm o destino fechado na lupinidade. E é por isso que as ovelhas, libertadas do rebanho, são enviadas para o meio da alcateia. De certa forma, todos nós somos enviados para o meio da alcateia, essa é a nossa condição.

Ao exercício da predação não é contraposto o sacrifício da presa. Pelo contrário, o texto liberta o homem da praxis sacrificial e propõe como caminho a prudência (a palavra usada para prudentes é φρόνιμοι) e a simplicidade (o termo usado para simples é ἀκέραιοι). Desta maneira, é resgatada a razão prática da filosofia grega, ao mesmo tempo que, com a analogia com a serpente, se dá a ver o seu limite. A prudência pode ser um mero cálculo da serpente e, por isso, não é suficiente para que a ovelha enviada não se transforme em lobo. A prudência deve ser incrustada na simplicidade, na pureza, na inocência. O modo de agir - ser prudente - deve ter a sua raiz nesse tornar-se inocente, simples, puro.

No mundo social, perante o eterno jogo do predador e da presa, perante o ciclo da animalidade e a visão sacrificial da existência, Cristo propõe uma ruptura onde se combina uma natureza inocente - que se inocenta - e uma atitude prudente, um ser puro e uma razão prática dele dependente, como caminho para a instauração de uma comunidade verdadeiramente humana.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Haikai do Viandante (151)

Pierre Bonnard - O Jardim (1937)

Jardim de mil flores,
verdes, azuis, assim são
os grandes amores.