terça-feira, 25 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (365)

Odilon Redon - Port Breton

365. OS GESTOS COM QUE DESENHAVAS A LEVEZA DOS DIAS

Os gestos com que desenhavas a leveza dos dias
tornaram-se pesados. A tirânica ofensa trazida
pelo passar do tempo, pelo rumor inquieto das águas,
as que correm enfurecidas sob o véu da tempestade,
tornou-se gelo, pedra, chumbo em teus ombros.

O fulgor que te habitava apagou-se
e a linha do horizonte perdeu distância.
Os barcos não passam de sombras no mar,
onde já não distingues neblinas e crepúsculos,
a promessa de um mundo para lá das frias águas.

Tudo isso estava cifrado na carne vigorosa,
uma ameaça suspensa na verdura dos anos,
o grito do corvo na aurora vazia do mundo.
Mas que importa aos que exultam de saúde
a herança sombria que transportam consigo?

O peso que te comprime e inclina o corpo
é a vida triunfante que, cansada do velho olhar,
corre lúcida e bela para um novo cais.
Os barcos virão num lampejo de céu azul
e como tu outro sentirá o vento da primavera.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (364)

Ana Peters - Niebla (1998)

364. CHEGO AO LIMITE ONDE A PAISAGEM SE DESVANECE

Chego ao limite onde a paisagem se desvanece
e os trilhos, em que caminhei, se apagam.
Olho e a tudo a névoa cobriu,
instalando sobre o mundo um véu igualitário,
ao geminar planícies e vales, montanhas e rios,
o mar com as suas trevas de sal e areia.

Nesse exercício de cegueira espero por ti,
e na queda de cada folha suspeito passos,
um bater de coração, a ruidosa pulsação do amor.
Mas o tempo, adverso ao desejo, rasga o papel
da esperança, a anunciadora do óbito a vir,
e joga-me no fundo das masmorras da terra.

Não há metáfora que ilumine esse lugar,
nem símbolo que indique a ascensão.
Resta ao viandante a cegueira por guia
e, na cerração que o envolve, caminhar,
traçar itinerários a que nunca voltará,
vigiar no fundo da alma a ilusão da manhã.

domingo, 23 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (363)

Max Ernst - At the First Clear Word (1923)

363. AS MINHAS PALAVRAS PERDERAM A ANTIGA CASA

As minhas palavras perderam a antiga casa,
são agora trapos a errar por sendas escarpadas,
caminhos desconhecidos,
sem promessa ou imperativo que as guie,
retire da escuridão e as abra
para a luminosa praça da compreensão.

Pobres e loucas palavras chegadas ao outono,
perdidas no jardim do verão,
a deambular por ruas destroçadas
e praças vazias.
Para elas não há sentido disponível
nem estrela polar, não há fonte
onde matem a sede e a vida retorne.

Por vezes o poema era um sonho de ressurreição,
a esperança do corpo descobrir,
no vão escuro de uma viela,
o espírito antigo, a tensão viva
que iluminava estrelas
e incendiava o sol nocturno do inverno.

Agora sinto em cada palavra dita
a cegueira que chega,
que se eleva para o mundo,
traça uma rota de solidão,
e cai, sílaba a sílaba, sobre os ombros,
inclinando a vida para toca da morte.

sábado, 22 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (362)

Ben Shahn - Sing Sorrow (1946)

362. MUITAS HORAS VAGUEEI PELAS RUAS

Muitas horas vagueei pelas ruas.
Procurava um gesto,
a sombra de uma árvore,
o indício de uma voz,
o mar encapelado que me traria
o teu rosto.

Em vão passaram dias e meses.
Uma úlcera nasceu na alma,
cresceu pelo corpo,
traçou caminhos sem destino,
a terra queimada,
lâmina a sangrar-me os pés.

Peço-te a gangrena de uma palavra,
a prova inútil da solidão,
o cadáver do amor,
para que o luto desça
nos meus olhos,
que derrotados possam descansar.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (361)

Julio Gómez Biedma - Un agujero negro

361. SOBRE AS FALÉSIA DO SENTIMENTO, A NOITE ABRE-SE

Sobre as falésias do sentimento, a noite abre-se
para te acolher num jardim moldado na terra,
o lento trabalho do secreto formigueiro
sob o abençoado cântico da cigarra.
Para que servem as alegorias nesta hora?
Ouvem-se os pássaros na rocha negra,
e no areal rasgado pelas águas espalham-se
algas, conchas, restos de plástico e madeiras
carcomidas, o ardil antigo do comércio.

Todos se acercam, ociosos, do seu destino,
e vão triunfantes sobre ervas e caminhos,
esquecidos de quem no fim os espera para entoar
a canção, a vitória desolada sobre a vida.
Leio o livro do Êxodo e adormeço tranquilo,
as portas fecham-se e os teus olhos cobrem-me
com a seda amena que te nasce no coração.
Sonho inquieto com a volúpia estendida no umbral
e oiço o pulsar brando da melancolia da manhã,
a voz tecida no uivo que ressoa em cada palavra.

Uma lacuna de sangue abre-se na memória,
poço negro e frio, ventoso e sem fundo.
Grito, mas o eco não me devolve a voz
e uma vertigem traça-me a fogo o ventre,
cresce nos ombros e derrama-se no cérebro.
Por ali, entra a serra que o distante passado me dera
e a infância vazia de tudo o que nela crescera,
o jardim que as mãos desenhavam num caderno
sem folhas nem capas, apenas uma breve memória,
a falésia escarpada na volúpia da aurora.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (360)

Paul Cezanne - Mountains in Provence (1886-890)

360. A COR MUSICAL DAS TUAS PALAVRAS ERGUE-SE

A cor musical das tuas palavras ergue-se,
risca a casa de uma ondulação suave,
o mar avistado de longe sob o império
da neblina, meio caminho entre luz e trevas,
argúcia da vida ao proteger-nos do fogo
ou do frio das intempéries vindas pelos dedos,
para rasgar o lençol molhado da solidão.

Retomo o caminho que me deste na infância.
Só assim te oiço cantar na lonjura deserta,
os caminhos cortados e rios intransitáveis,
a música que vinha desabar em mim
e me lembrava de que teria um corpo e uma alma,
as faces descobertas voltadas para o sol,
a recordação de cada povo que dorme em mim.

Pego-te na mão em silêncio e olho as árvores.
Aguardo que a boca se abra para o fogo
da montanha, onde uma casa de colmo espera
por nós, as janelas inclinadas ao vento,
o segredo que um deus te deixou nos lábios.
O solo coberto de ervas frescas abre-se aos teus
passos, e uma estrela murmura na tarde: vem.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (359)

Paul Gauguin - Y el oro de sus cuerpos (1901)

359. TODAS ESSAS PERPLEXIDADES TRAZIDAS NO CORPO

Todas essas perplexidades trazidas no corpo,
a angústia fabricada pelo passar das horas,
uma dor estranha ao dobrar da esquina,
os músculos que se deslassam ou os ossos
doridos, ateando pesadelos na noite,
a face entrecortada aberta no salitre da casa.

Sempre que o outono se aproxima, o calor redobra,
desenha matagais em fogo, tragédias luminosas,
abre sulcos na pele e sobressaltos no coração.
São violentos para a tua alma os meses do estio
e nessa violência se despedem e entregam ao ocaso,
o suspiro aberto no peito, as águas que virão.

De olhos abertos, escondes-me o segredo,
a pele lêveda, o desejo insaciável na noite fria.
Dolente, estendes a mão e tocas-me ao de leve.
Um sino dobra no fausto do passado,
desenha uma canção que a vida esquecera
e agora brilha na caruma baça do dia.

Abre o alvoroço  da tua casa à minha mão
e deixa que o vento sossegue o incêndio.
De todas as coisas que nos cabem, a mais difícil
é a verdade do que somos, a luz impiedosa sobre
a cabeça, o lugar onde o esquecimento nasce
e se derrama para nos salvar, náufragos da ilusão.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (358)

Salvador Dali - Lilas del tiempo

358. O TEMPO NÃO É UMA HASTE OU UM BARCO

O tempo não é uma haste ou um barco,
não é a mão estendida sobre a vida
ou o sopro do vento contra a parede da tarde.
Feroz labirinto de sentido único,
ondulação que vai mas não volta,
espuma tão frágil que logo se dissolve.

Não sabemos de onde veio nem o destino,
apenas as rugas que sulcam a pele,
os dentes cariados com que o mundo devora
a vida, precária flor sobre a terra abandonada.
Lançamos-lhe armadilhas, metáforas, metonímias,
e ele corre serenamente sobre a paisagem,

traça sulcos e chama-lhe rios da memória,
por vezes toma um ar sério e glorioso,
outras não passa do velho andrajoso
que desenha ruínas a que chama história.
Ou gesta ou caminho ou outra coisa sem sentido,
pois o tempo é inimigo da semântica,

cavaleiro que não repousa sobre a terra,
sempre a meio caminho entre o nada que fabricou
e o outro nada que de longe o chama.
O tempo não é uma casa branca de orvalho
nem o rosto da lua na vastidão negra do céu,
mas o desejo que me prende ao que não aconteceu.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (357)

Julio Romero de Torres - Canto de Amor

357. NÃO É VÃO AQUILO EM QUE O AMOR SE DEPOSITA

Não é vão aquilo em que o amor se deposita
e traz da invisível obscuridade para a luz,
fazendo eclodir sobre as águas uma sombra,
o cântico sereno do que chega à plenitude.
Nesse extremo cuidado de tudo cuidar abre-se
a lâmpada radiosa e sem mácula do meio-dia,
a hora em que o universo, por instantes, suspende
a marcha que o impele sempre mais além,
para redesenhar fronteiras e criar, onde nada
havia, o espaço para a nossa funda interrogação.

Aqueles que mais amam são os que perguntam.
Em cada pergunta cindem um átomo de amor,
pura energia libertada sobre as paisagens,
que se levantam perante os olhos da alma,
que assim vislumbra o mundo e a matéria,
as flores recolhidas no abraço de um ramo
deixado, como sempre fizeste, junto à parede
do fundo, a antecâmara dos dias felizes,
as horas em que, crianças sem ocupação,
nada sabíamos da nossa eterna sabedoria.

E logo que o nosso amor toca na raiz,
a árvore floresce e desdobra-se depois
em frutos, as tuas mãos presas nas minhas,
o teu corpo despido sugado pelo meu.
E a tudo o amor liberta da ávida servidão,
aos homens que perante o nada se ajoelham,
aos anjos que se calam diante do desastre,
a Deus preso no silêncio com que cobre a vida,
a deixa levedar entre miasmas de dor
e as rosadas pústulas do incerto prazer.

Canto nesta manhã a pura ascese da matéria,
o triunfo de cada corpo sobre o caos,
o ronronar flébil das agulhas na vastidão do
pinhal, breve pomar de antigas caravelas,
promessas que o tempo trouxe e logo desfez.
O fogo decanta o amor da impura inclinação
e abre-o para as paisagens que o amante
descobre na terrível solidão da coisa amada,
pomar vazio à espera de um olhar incendiado,
uma porta para a clareira do súbito fervor.

domingo, 16 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (356)

Jean-Michel Basquiat - Earth (1984)

356. CELEBRAMOS O AÇO QUE PERFURA O ROSTO DA TERRA

Celebramos o aço que perfura o rosto da terra
e, incapazes de escutar os anjos,
não ouvimos os gritos que dela chegam,
inundam as florestas que perderam a bênção,
o gesto com que ungias o coração do mundo
e asseguravas a todas as coisas a ordem.

Somos os irados peregrinos que olham
para o incêndio que te lavra nas entranhas,
e descobrem na lava os escombros
com que escondes a abissal cicatriz que nós,
filhos pobres e insaciáveis do velho Prometeu,
pelo aço não mais deixaremos de tracejar.

A precária caravela perdeu-se no mar de trevas,
e as ruas são apenas uma ferida aberta
em teu corpo esguio de mulher tardia,
aquela que chegou dentro de um segredo,
o rumor nascido para além da fronteira,
a noite polar em que dormindo aguardavas.

Mater silenciosa, o que fizeram do teu silêncio?
Ouve-se o ruir das paredes na planície fria
e mil anátemas são lançados sobre o portal,
onde o dia e a noite em discórdia se separam,
rasgando mais e mais a pele suave da tua face,
que o aço incansável não para de perfurar.